Habemus iudicem – Temos um juiz
Por William Lacy Lane
Após a confirmação da indicação do ex-ministro André Mendonça à vaga do
Supremo Tribunal Federal (STF) nessa semana, senti que só faltou alguém
pronunciar Habemus iudicem – temos um juiz, como quando um novo papa da
Igreja Católica Apostólica Romana é escolhido pelo conclave e apresentado para
os fiéis e ao mundo, após pronunciamento público pelo cardeal protodiácono, Habemus
papam!
Embora longe de se comparar à escolha de um conclave do chefe supremo da Igreja
Católica, depois de uma longa espera, a confirmação da indicação foi celebrada
por muitos fiéis como uma nomeação de um líder supremo. Não só isso, alguns
líderes viram na nomeação de André Mendonça uma vitória não só do povo de Deus
brasileiro. Declararam a vitória de nossa luta que não é contra “carne e
sangue, mas contra principados e potestades, contra dominadores deste mundo
tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestiais”. A
nomeação foi vista como vitória em uma batalha contra as forças políticas e
espirituais.
A grande expectativa dessa nomeação foi alimentada, em parte, pela
desnecessária protelação do presidente da Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania em proceder à sabatina do candidato. Contribuiu para isso também as
especulações e tratativas dos partidos, as manobras e articulações de
lideranças evangélicas e, com certeza, as incisivas tentativas da mídia secular
de desconstruir a competência e o caráter do candidato.
É verdade que o próprio presidente da República pautou essa indicação como
oportunidade de constituir um juiz evangélico na suprema corte. Mas, tudo isso
ensejou uma disputa de narrativas que pode não ser benéfica nem para o Brasil
nem para a comunidade evangélica.
>> conheça a série Democracia e Fé Cristã <<
De um lado, grupos evangélicos veem na nomeação de André Mendonça uma
representatividade inédita no STF de uma visão comprometida com valores morais
e éticos da tradição cristã evangélica. O problema disso é que, ao contrário de
cargos públicos eletivos, um ministro do STF não é eleito pelo povo e,
portanto, não é nomeado para defender os interesses e pautas de um segmento da
sociedade civil.
Ainda assim muitos se empenharam em, se não fazer campanhas dentro de sua
esfera de influência, pelo menos, promover campanhas de oração e jejum pela
aprovação do ministro. Já que muitas vezes as práticas políticas dos
evangélicos não se distam muito das práticas de outros políticos, a infeliz e
desastrosa consequência de todo esse esforço é que alguma hora essa conta será
cobrada por seus apoiadores, e das formas mais promíscuas e comprometedoras
possíveis.
Do outro lado, a mídia secular não poupou críticas à associação explicitamente
evangélica de um ministro cujo mandato e exercício não se devem orientar por
questões de fé e crenças. Insistiram, com razão, na laicidade do estado. Porém,
muitas vezes transpareceu um minimalismo ou purismo constitucionalista que
insinua que o juiz não pode deixar suas questões pessoais e de crenças
influenciar o julgamento de uma matéria. Ora, é impossível juízes não serem
influenciados por suas convicções, sejam religiosas, a-religiosas ou
antirreligiosas, sociais, políticas, ideológicas etc. Julgamentos recentes do
STF demonstraram, que mesmo os juízes mais garantistas se orientam por suas
convicções ou por influências externas. A mídia secular faz um desfavor à
sociedade quando insinua um mau-caratismo de uma pessoa religiosa na esfera
pública.
Penso que a mídia secular sofre de um preconceito estrutural antievangélico,
pois levanta a bandeira da laicidade do estado quando envolve evangélicos, mas
raramente suscita essa questão quando envolve a religião predominante do país,
a presença de símbolos, feriados, festas, edificações religiosas em espaços
públicos, e muito menos quando se trata de nomeações de pessoas de outra
religião não evangélica, ainda que não explicitamente declarada. Além disso, a
mídia não compreende o peso e significado, muito menos, o sentimento da
comunidade evangélica, de se ter pela primeira vez um evangélico, pastor
presbiteriano, na mais alta corte do país.
Não conheço pessoalmente o ministro André Mendonça, mas tenho vários amigos que
são ou foram muito próximos dele. Só ouço coisas muito positivas da pessoa,
caráter e da competência profissional dele, e desejo que ele realmente seja um
esteio da justiça, igualdade e direitos humanos por muitos anos no STF,
inclusive dando seguimento à sua carreira pessoal de combate à corrupção no
país. Mas, em minha visão, há um incômodo digno de nota. É uma aparente
subserviência que notei em algumas de suas falas ao longo dos últimos dois
anos. Há de se observar se isso se reproduzirá no exercício de seu mandato no
STF e até que ponto cederá às pressões de seus apoiadores.
Isso tudo acontece na mesma semana em que o ex-presidente Lula, frequentemente
abominado por esse segmento evangélico, faz acenos e declarações de aproximação
dos evangélicos com vistas ao seu apoio para voltar ao Planalto. Parece que não
são só certas lideranças evangélicas que se capitalizam com a fé evangélica e
que misturam o público e o religioso.
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