Em “Jesus
Cristo bebia cerveja”, com frases de efeito e situações absurdas, Afonso Cruz
apresenta uma nova Jerusalém
> Por
RODRIGO
CASARIN
Amigo, se
o seu interesse por cerveja é zero, se sua curiosidade pela bebida é negativa,
pode pular para o segundo parágrafo do primeiro subtítulo, ok?
No
momento em que começo a escrever este texto, estou na garagem de casa, com uma
panela de 32 litros à minha frente, fervendo minha próxima leva de cerveja —
clarinha e bem defumada que, no copo, lembrará bacon ou churrasco. A água está
prestes a acabar em São Paulo, então, se ficar sem banho será inevitável,
previno para que não fique sem a bebida sagrada de cada dia (mentira, que de
segunda eu não bebo).
Fazer
cerveja em casa é simples, mas extremamente trabalhoso. Primeiro, preciso moer
cerca de cinco quilos de malte. Depois, fazer uma espécie de chá com os grãos
(daí vem o açúcar). Coado o chá, passo para outra panela e fervo o líquido
enquanto acrescento o lúpulo que vai amargar o negócio. Aí tem que resfriar,
passar para um balde, colocar o fermento e deixar que a levedura transforme os
açúcares em álcool — o que leva ao menos uma semana. Não acabou ainda. Alguns
dias de descanso para que a bebida mature são bem-vindos. Coloco mais um pouco
de açúcar e engarrafo. Outros quinze dias para que as leveduras consumam esse
novo açúcar e deixem a cerveja carbonatada na garrafa. Então é gelar — não
muito, dependendo do estilo — e, finalmente, beber.
Agora
você que não levou em conta o que escrevi no primeiro parágrafo e continuou
lendo até aqui me pergunta: tá, Rodrigo, e que diabos isso tem a ver com
literatura?
São duas
as respostas. Primeiro, cervejeiro caseiro é um bicho chato, bitolado e
exibido, e não perde uma oportunidade de falar sobre o seu hobby. Segundo, se
não fosse por isso, provavelmente não teria dado atenção ao livro que é alvo
desta resenha — se é que ainda podemos considerar isto uma resenha.
Jesus era
dos nossos
Daqui a pouco eu entro de fato no livro, prometo, mas antes, mais um pouco sobre cerveja. Sabe aquela história de que Jesus transformou água em vinho? Então, provavelmente é balela. Segundo historiadores — que talvez também sejam cervejeiros caseiros, vai saber —, os primeiros registros da passagem diziam que o milagreiro transformara água em uma bebida fermentada. Aí chegou o Império Romano, e a Igreja Católica se apropriou da história do carpinteiro e já tascou que a tal bebida fermentada era vinho. Contudo, pelos costumes e pela agricultura da região, esses historiadores apontam que a chance de que fosse cerveja é muito maior.
Daqui a pouco eu entro de fato no livro, prometo, mas antes, mais um pouco sobre cerveja. Sabe aquela história de que Jesus transformou água em vinho? Então, provavelmente é balela. Segundo historiadores — que talvez também sejam cervejeiros caseiros, vai saber —, os primeiros registros da passagem diziam que o milagreiro transformara água em uma bebida fermentada. Aí chegou o Império Romano, e a Igreja Católica se apropriou da história do carpinteiro e já tascou que a tal bebida fermentada era vinho. Contudo, pelos costumes e pela agricultura da região, esses historiadores apontam que a chance de que fosse cerveja é muito maior.
Daí que o
livro do português Afonso Cruz se chama Jesus Cristo bebia cerveja, e
quando o Pereira (saudades de ver o Julián Ana chamando assim o editor deste
jornal) me mandou a lista com trocentas opções de livros para resenhar,
obviamente que indiquei tal obra. E fiz bem.
Jesus
Cristo bebia cerveja traz a
história de Rosa, cuja mãe gostava de uísque e “preferia homens feitos de lama
e de trabalho, com as unhas sujas de bebedeiras de aguardante caseira, com
hálito de metanol”, e cujo pai (baixo e franzino, mas de grande força) “bebia
demasiado e depois saía para a rua a gritar com toda a gente, e ninguém se
atrevia a pará-lo. Se alguém lhe fazia frente, pegava num copo de vinho com a
mão esquerda e lutava usando a direita, sem nunca entornar uma gota” – ou seja,
um tipo bastante comum de pau d’água.
Enquanto
ele trabalhava, a esposa ficava em casa o chifrando. Foi presenciando uma
dessas cenas que Rosa orou a ponto de achar que sua mãe se transformara na
Virgem Maria, que viria a beber nas mesmas garrafas que a verdadeira mãe
bebera. Quando contou isso ao padre em sua primeira comunhão, teve as saias
puxadas e tomou “umas palmadas no rabo”. Dali pra frente a garota faria sucesso
entre os homens.
Já sem
mãe — que foge com um amante e morre pela ausência — e sem pai — que morre de
fato —, Rosa passa a viver somente com Antónia, a avó semisurda que precisa de
ajuda para praticamente tudo, inclusive ser transportada até a igreja em um
carrinho de mão, já que não gosta da cadeira de rodas. É o desejo da avó
conhecer a Terra Santa que move a narrativa. Sem dinheiro para a viagem — que
tampouco poderia ser feita por conta das condições físicas da velha —, Rosa
conta com a ajuda de homens que caem de amores aos seus pés — um professor, um
padre e um pastor de ovelhas — para ludibriar Antónia.
Resolvem
transformar uma pequena aldeia do Alentejo em Jerusalém, obrigando “as pessoas
a usarem camisa branca e fatos pretos, barbas postiças, chapéus e aqueles
caracolinhos que os judeus usam”, diz o professor. Um bar que funciona dentro
de um velho avião desativado é maquiado para que aparentasse ainda ser uma
aeronave funcional. Uma vez lá dentro, a velha é dopada para fingirem que
dormiu antes mesmo de decolarem e assim permaneceu ao longo de toda a viagem.
Abaixo o
vinho
Como é possível perceber, os absurdos fazem parte da narrativa de Cruz. O improvável se manifesta tanto em cenas quanto nos bons personagens. Um adolescente é espancado pelo pai após dizer que gostaria de ser padre. “Não quero preguiçosos na família”, previne o agressor, um “livre-pensador capaz de suportar tudo, menos a estupidez”. Já o professor entende que uma lata de tinta pode ser uma das armas mais poderosas do mundo. É com essa tinta que pinta versos de Diógenes de Oenoanda nas paredes da casa da qual Rato é o caseiro – e este “cerra os punhos” ao ver o “vandalismo filosófico, mais concretamente epicurista”.
Como é possível perceber, os absurdos fazem parte da narrativa de Cruz. O improvável se manifesta tanto em cenas quanto nos bons personagens. Um adolescente é espancado pelo pai após dizer que gostaria de ser padre. “Não quero preguiçosos na família”, previne o agressor, um “livre-pensador capaz de suportar tudo, menos a estupidez”. Já o professor entende que uma lata de tinta pode ser uma das armas mais poderosas do mundo. É com essa tinta que pinta versos de Diógenes de Oenoanda nas paredes da casa da qual Rato é o caseiro – e este “cerra os punhos” ao ver o “vandalismo filosófico, mais concretamente epicurista”.
Outra
preocupação recorrente de Cruz é trabalhar com frases de efeito, algo que
normalmente traz resultados péssimos. Mas não é o caso, o português é um bom
frasista. Algumas que me agradaram: “A alegria gasta-se como as velas acesas, e
apaga-se”, “A nossa morte não acontece quando somos enterrados, acontece
continuamente: os dentes caem, os joelhos solidificam, a pela engelha-se, os
amigos partem. Tudo isso é a morte. O momento final é apenas isso, um momento”,
“Um homem de ciência é uma verdade cercada de estupidez por todos os lados. O
segredo está cá dentro, não como os místicos de supermercado gostariam; mas
está cá dentro”. Dariam bons ímãs cafonas de geladeira.
Mas
voltemos à falsa Terra Santa. Da mesa em que se desenrola uma representação da
Santa Ceia, o professor repentinamente manda retirar o vinho e começa um
discurso:
— Ninguém
sabe, caros Jesus Cristo e seus apóstolos, por que razão o homem se
sedentarizou […], vou explica-vos[…]: foi a cerveja. Para ter cerveja era
preciso cultivar. E assim nasceu a sociedade como conhecemos. Graças à cerveja,
temos hospitais e bibliotecas. Não existiriam livros se não fosse a cerveja.
Não existiriam escritores nem ciência […]. O Egito tinha inúmeras cervejarias e
exportava grandes quantidades para a Palestina. O que se bebia no espaço
geográfico em que Cristo habitava era cerveja. O vinho era uma bebida de
romanos, dos invasores. Cristo não iria beber a bebida dos ricos, dos
opressores […], mas dos pobres, das putas e dos pecadores.
Sabe
tudo, professor! Depois passa aqui para tomar uma comigo.
Afonso Cruz
Nasceu em
1971, em Figueira da Foz (Portugal). Estudou na Faculdade de Belas-Artes da
Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Artes Plásticas de Madeira.
Venceu o Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco (com Enciclopédia da
estória universal, em 2010), o prêmio Maria Rosa Colaço de melhor livro
infantojuvenil (com Os livros que devoraram o meu pai, em 2009), o prêmio
SPA/RTP de literatura infantojuvenil (com A contradição humana, em 2011) e o
Prêmio da União Europeia de Literatura (com A boneca de Kokoschka, em 2012).
Vive em Alentejo, em Portugal.
É certo e
sabido que o final feliz é uma invenção humana, uma necessidade de obliterar a
morte. A vida nunca acaba bem. Porque todas as histórias de seres vivos acabam
misturadas com a terra, acabam com o caixão. Esta não é exceção, porque é fiel
ao fatalismo da nossa condição de mortais com pretensões a outras coisas. À
vida eterna, entre outras coisas.
RODRIGO CASARIN
É
jornalista e especialista em Jornalismo Literário. Atua profissionalmente como
freelancer e edita o blog Canto dos Livros. Como escritor, é co-autor de Punk –
o protesto não tem fim e de livros de memória empresarial e familia
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