A VIDA DO
JUDICIÁRIO
Não
almoço à custa do dinheiro do contribuinte", me disse certa vez o juiz
sueco Göran Lambertz, em tom quase indignado, na Suprema Corte da Suécia.
A
pergunta que inflamou a reação do magistrado era se, assim como ocorre no
Brasil, os juízes da instância máxima do Poder Judiciário sueco têm direito a
carro oficial com motorista e benefícios extra-salariais como auxílio-saúde,
auxílio-moradia, gratificação natalina, verbas de representação,
auxílio-funeral, auxílio pré-escolar para cada filho, abonos de permanência e
auxílio-alimentação.
"Não
consigo entender por que um ser humano gostaria de ter tais privilégios. Só
vivemos uma vez e, portanto, penso que a vida deve ser vivida com bons padrões
éticos. Não posso compreender um ser humano que tenta obter privilégios com o
dinheiro público", acrescentou Lambertz.
"Luxo pago com o dinheiro do
contribuinte é imoral e antiético", completou o juiz sueco.
Nesta
semana, o presidente Michel Temer sancionou
o reajuste de 16,38% nos salários dos ministros do STF (Supremo Tribunal
Federal) e da procuradora-geral da República, o que aumenta a remuneração dos magistrados de R$
33 mil para R$ 39 mil. O reajuste foi garantido após acordo que condicionou o
aumento do salário à revogação do auxílio-moradia de R$ 4,3 mil a juízes de
todo o país.
Na
sexta-feira, entretanto, a procuradora-geral da
República, Raquel Dodge, recorreu da decisão - o ministro do Supremo Luiz Fux suspendeu no
último dia 26 o benefício para todas as carreiras do Judiciário - e pede que o
auxílio-moradia seja mantido para os membros do Ministério Público.
Em um
Brasil em crise, o aumento terá um efeito cascata sobre a remuneração de todo o
funcionalismo público, e, segundo técnicos da Câmara, deverá produzir um
impacto de R$ 4,1 bilhões anuais nos cofres da União e dos Estados.
Na
Suécia, o salário dos magistrados da Suprema Corte - que não têm status de
ministro - é de 109,5 mil coroas suecas, o que equivale a aproximadamente R$ 46
mil. Uma vez descontados os altos impostos vigentes no país, os vencimentos de
cada juiz totalizam um valor líquido de 59 mil coroas suecas, segundo dados do
Poder Judiciário sueco - o equivalente a cerca de R$ 25 mil.
"Isso
é o que se ganha, e é um bom salário. Pode-se viver bem com vencimentos desse
porte, e é suficiente", diz Lambertz. Ex-professor de Direito da
Universidade de Uppsala e ex-Provedor de Justiça (Ombudsman) do Governo, Göran
Lambertz chefiou ainda uma das divisões do Ministério da Justiça antes de se
tornar juiz da Suprema Corte, cargo vitalício que ocupou até recentemente.
Benefícios
extra-salariais, oferecidos a juízes de todas as instâncias no Brasil, não
existem para juízes suecos de nenhuma instância.
Juiz Carsten Helland gargalhou ao ser questionado
se magistrados suecos considerariam reivindicar benefícios extra-salariais —
Foto: BBC
"Privilégios
como esses simplesmente não são necessários. E custariam muito caro para os
contribuintes", diz à BBC News Brasil o jurista sueco Hans Corell,
ex-Secretário-Geral Adjunto da ONU para Assuntos Jurídicos.
"Não quero emitir
julgamentos sobre sistemas de outros países, pois eles têm seus próprios
motivos e tradições. Mas não temos esse tipo de tradição na Suécia",
observa Corell.
Nas
demais instâncias do Judiciário, o salário médio bruto de um juiz na Suécia é
de 66 mil coroas suecas, o que equivale a aproximadamente R$ 28 mil. Em valores
líquidos, o salário médio dos juízes é de cerca de 41 mil coroas suecas -
aproximadamente R$ 17,4 mil. O salário médio no país é de 32,2 mil coroas
suecas (cerca de R$ 13 mil), de acordo com as estatísticas da confederação
sindical sueca LO (Landsorganisationen).
Negociações sindicais na Suécia
Para
reivindicar reajustes salariais, os juízes suecos seguem o mesmo procedimento
aplicado aos trabalhadores de qualquer outra categoria: as negociações
sindicais.
A
negociação dos reajustes salariais da magistratura se dá entre o sindicato dos
juízes suecos (Jusek) e o Domstolsverket, a autoridade estatal responsável pela
organização e o funcionamento do sistema de justiça.
O aumento
salarial dos magistrados trata normalmente da reposição da perda inflacionária
acumulada no período de um ano, e que se situa em geral entre 2% e 2,5%.
"Nossos
reajustes seguem geralmente os índices aplicados às demais categorias de
trabalhadores, que têm como base de cálculo os indicadores gerais da economia e
parâmetros como o nível de aumento salarial dos trabalhadores do IF Metall (o
poderoso sindicato dos metalúrgicos suecos)", explica o juiz Carsten
Helland, um dos representantes da categoria no sindicato dos juízes.
A
negociação depende essencialmente do orçamento do Domstolsverket, que é
determinado pelo Ministério das Finanças.
"Os
juízes têm influência limitada no processo de negociação salarial", diz
Carsten. "As autoridades estatais do Domstolsverket recebem a verba
repassada pelo governo, através do recolhimento dos impostos dos contribuintes,
e isso representa o orçamento total que o governo quer gastar com as Cortes. A
partir desse orçamento, o Domstolsverket se faz a pergunta: quanto podemos
gastar com o reajuste salarial dos juízes?", explica.
"Não
podemos, portanto, lutar por salários muito maiores. Podemos apenas querer que
seja possível ganhar mais", acrescenta ele.
Na
Suprema Corte sueca, os reajustes salariais seguem a mesma regra aplicada ao
restante da magistratura.
Perguntado
se juízes suecos considerariam reivindicar benefícios extra-salariais como
auxílio-alimentação e gratificação natalina, o juiz Carsten Helland dedica os
segundos iniciais da sua resposta a uma sessão de risos de incredulidade.
"Juízes
não podem agir em nome dos próprios interesses, particularmente em tamanho
grau, com tal ganância e egoísmo, e esperar que os cidadãos obedeçam à
lei", diz o juiz.
"Um
sistema de justiça deve ser justo", ele acrescenta.
"As Cortes de um país são o
último posto avançado da garantia de justiça em uma sociedade, e, por essa
razão, os magistrados devem ser fundamentalmente honestos e tratar os cidadãos
com respeito. Se os juízes e tribunais não forem capazes de transmitir essa
confiança e segurança básica aos cidadãos, os cidadãos não irão respeitar o
Judiciário. E, consequentemente, não irão respeitar a lei", enfatiza.
É
simplesmente impossível, segundo Carsten, imaginar a aprovação de benefícios
extra-salariais a juízes na Suécia.
"Porque
não temos um sistema imoral", ele diz. "Temos um sistema democrático,
que regulamenta o nível salarial da categoria dos magistrados, assim como dos
políticos. E temos uma opinião pública que não aceitaria atos imorais como a
concessão de benefícios para alimentar os juízes às custas do dinheiro
público", assinala Carsten Helland.
Juízes sem secretárias nem carros oficiais
No antigo
palacete que abriga a Suprema Corte sueca, próximo ao Palácio Real de
Estocolmo, imensas pinturas a óleo retratam nobres representantes da corte no
passado, como marcas de um tempo em que havia lacaios e a aristocracia era
predominante no Poder Judiciário. Nos pequenos escritórios dos juízes, não há secretária
na porta, nem assistentes particulares.
Período máximo de férias dos juízes na Suécia é de
35 dias - aqueles com até 29 anos não podem tirar mais de 28 dias — Foto:
Patrik Svedberg/Divulgação/BBC
No
sistema sueco, os magistrados contam com uma equipe de assistentes que
trabalha, em conjunto, para todos os 16 magistrados da corte. São mais de 30
profissionais da área de Direito, que auxiliam os juízes em todos os aspectos
de um caso jurídico.
O
tribunal conta ainda com uma equipe de cerca de quinze assistentes
administrativos, que auxiliam a todos os juízes. Ou seja: nenhum juiz tem
secretária ou assistente particular para prestar assistência exclusiva a ele, e
sim profissionais que lidam com aspectos específicos dos casos julgados pela
corte.
E nenhum
juiz - nem mesmo o presidente da Suprema Corte - tem direito a carro oficial
com motorista.
Para ir
ao trabalho na Suprema Corte, o agora aposentado Göran Lambertz pedalava 15
minutos todos os dias desde a sua casa até a estação central da bucólica cidade
de Uppsala, que fica a cerca de 70km de Estocolmo. De lá, tomava um trem e
viajava 40 minutos até o centro de Estocolmo, de onde caminhava a pé para a
Corte.
A casa do
juiz é surpreendentemente modesta. No pequeno jardim, ficam as bicicletas. A
porta de entrada dá acesso a uma estreita sala de estar, decorada com
mobiliário simples que remete aos anos 70. Ao fundo, uma escada em madeira liga
os dois andares da residência, cada um com 60 metros quadrados de área. Junto à
escada, um corredor conduz a uma minúscula cozinha, onde o juiz prepara seu
café e sua comida: não há empregados.
Férias: máximo de 35 dias
O período
máximo de férias a que os juízes suecos têm direito é de 35 dias por ano. A
variação depende da idade do magistrado: juízes de até 29 anos têm 28 dias de
férias, e a partir de 30 anos de idade o período é de 31 dias anuais. Juízes
acima de 40 anos passam a ter direito a 35 dias de férias.
No
Brasil, a lei determina que os juízes, diferentemente dos demais trabalhadores,
têm 60 dias de férias por ano.
Qualquer
cidadão pode checar as contas dos tribunais e os ganhos dos juízes. Autos
judiciais e processos em andamento também são abertos ao público.
"As
despesas dos juízes também podem ser verificadas, embora neste aspecto não
exista muita coisa para checar. Juízes usam muito pouco dinheiro público, e não
possuem benefícios como verba de representação. Os juízes suecos recebem seus
salários, e isso é o que eles custam ao Estado. As exceções são viagens raras
para alguma conferência, quando seus gastos com viagem e hotel são custeados.
Com relação às contas bancárias privadas de um juiz, elas só podem ser
verificadas se o juiz for suspeito de um crime", diz Lambertz.
Na
Suprema Corte, funcionários atendem solicitações de cidadãos para verificar as contas
ou examinar documentos de processos judiciais.
"Cópias
dos arquivos também podem ser solicitadas. Não há nada a esconder. A idéia
básica é que tudo o que é decidido nos tribunais do país é aberto ao público. O
sistema judiciário sueco não é perfeito, mas não é impenetrável", afirma o
magistrado.
Fiscalização dos juízes
Não há um
órgão específico para supervisionar os juízes. Mas entidades como o Ombudsman
do Parlamento e o Provedor de Justiça têm poderes para fiscalizar de que
maneira os tribunais lidam com diferentes casos, quanto dinheiro eles gastam e
se atuam de forma eficiente.
Não há
foro privilegiado para juízes e desembargadores. Também não há registro de
casos de magistrados suecos envolvidos em corrupção.
"Entre
juízes, nunca ouvi falar de um caso de corrupção em toda a minha vida. E os
juízes jamais ousariam. Acho que nenhum juiz sueco jamais aceitaria um suborno.
É algo tão proibido, que chega a ser impensável. É distante demais das nossas
tradições. E, se algum ato irregular for cometido, ele será reportado à
polícia. Por isso, mesmo se algum juiz pensar em cometer um ato impróprio, ele
não o fará. Porque teria medo de ser reportado à polícia", diz Göran
Lambertz.
Presentes
a juízes, segundo Lambertz, também são inaceitáveis.
"Ninguém ofereceria a um
juiz coisas como dinheiro, viagens de cruzeiro ou mesmo garrafas de bebida.
Isso simplesmente não acontece. Na época do Natal, um banco, por exemplo, pode
querer oferecer um presente a autoridades e órgãos públicos. Mas isso nunca
acontece nos tribunais."
Um
Judiciário que perde o respeito da população pode provocar "uma explosão
de desordem na sociedade", alerta o magistrado sueco:
"Quando o sistema de justiça
de um país não é capaz de obter o respeito dos cidadãos, toda a sociedade é
rompida pela desordem. Haverá mais crimes, haverá cada vez maior ganância na
sociedade, e cada vez menos confiança nas instituições do país. Juízes têm o
dever, portanto, de preservar um alto padrão moral e agir como bons exemplos
para a sociedade, e não agir em nome de seus próprios interesses", diz
Göran Lambertz.
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