https://youtu.be/NSxIVcU-URA?si=bb6HxF0XRUvCe7A6
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RGS CANDOMBLÉ
Por que Rio Grande do Sul tem maior percentual de adeptos de
religiões de matriz africana no Brasil
Author,Luiz Antonio Araújo
Com auxílio de escada e furadeira, quatro homens afixam um
painel de quase dois metros de comprimento na parede lateral do prédio nº 2200
da movimentada Avenida Nilo Peçanha, em Porto Alegre.
Na placa, lê-se: “Território Quilombola Kédi. Associação do
Quilombo Kédi. Em processo de regularização fundiária pelo Incra nº
54000.104791/2021-16”.
A instalação do marco, em 20 de abril, foi testemunhada por
dezenas de moradores e pela reportagem da BBC News Brasil.
Estabelecidas há cerca de um século no local, as cerca de
120 famílias da chamada Vila Kédi ingressaram há três anos com processo de
reconhecimento da área como remanescente de quilombo.
Para a comunidade, a placa é duplamente significativa: o
edifício, que hoje abriga a sede da associação de moradores, está situado no
local exato de um antigo terreiro.
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“O terreiro da mãe Eva era um dos pontos de convivência da
comunidade”, explica Tânia Rosangela de Jesus Dutra, primeira-secretária da
associação.
Descendente dos primeiros ocupantes, a líder comunitária não
conheceu a matriarca.
A existência do terreiro, porém, foi atestada em laudo
antropológico emitido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS).
O prédio hoje ocupado pela associação fica ao lado de uma
imponente figueira, árvore associada a poderes cósmicos em inúmeros ritos,
incluindo os de matriz africana.
A relação entre movimento quilombola e as religiões de
matriz africana não é uma exclusividade da Vila Kédi.
Moradores instalam placa do Quilombo Kédi na fachada da associação
CRÉDITO,LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
Legenda da foto,Moradores instalam placa do Quilombo Kédi na
fachada da associação. Prédio fica no local de antigo terreiro e chegou a
abrigar templo católico
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Fim do Que História!
O advogado Onir Araújo, que presta assessoria à associação,
afirma que, na capital gaúcha, praticamente todas as comunidades quilombolas
organizaram-se em torno de terreiros ou abrigam alguma espécie de local de
culto afrorreligioso em seu interior.
Segundo Araújo, Porto Alegre tem 11 quilombos urbanos,
incluindo o primeiro desse tipo a ser reconhecido no Brasil, o da família
Silva, vizinho ao Kédi.
“Nenhuma outra cidade brasileira tem esse número de
comunidades”, afirma o advogado.
De acordo com o Censo de 2022, existem 203 localidades
quilombolas no Rio Grande do Sul, 16 delas em Porto Alegre.
Em termos quantitativos, porém, os terreiros são muito mais
numerosos do que os quilombos na capital.
Um levantamento da Prefeitura feito entre 2006 e 2008
indicou a existência de 1.290 terreiros na primeira década do século em Porto
Alegre — número praticamente idêntico ao encontrado em Salvador na mesma época,
segundo Ari Pedro Oro, professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), em artigo intitulado "O atual campo afro-religioso
gaúcho", publicado em 2012.
No Estado, haveria cerca de 30 mil terreiros, conforme cálculo
de Norton Correa, professor de Antropologia da Universidade Federal do
Maranhão.
As marcas das religiões afrobrasileiras no RS
Para muita gente, quando o assunto são as religiões de
matriz africana, o Rio Grande do Sul pode não ser o primeiro Estado brasileiro
a vir à mente.
Afinal, trata-se da segunda unidade da federação com menor
população autodeclarada preta ou parda, com 20%, segundo o Censo de 2022, atrás
apenas de Santa Catarina.
Mas uma consulta aos dados dos censos demográficos do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), porém, pode desfazer
essa impressão.
No levantamento de 2010, o Rio Grande do Sul figurou como o
Estado com maior percentual de adeptos da umbanda e do candomblé, as duas
principais religiões afrobrasileiras, embora não sejam as únicas.
O Estado também foi campeão em números absolutos, de acordo
com o Censo de 2010.
Os adeptos destas religiões representavam 1,47% dos gaúchos
em 2010 — os dados sobre religião do Censo de 2022 ainda não foram divulgados
pelo IBGE.
Isso representava um percentual bem acima do nacional, de
0,3%.
Mas pesquisadores acreditam que, em ambos os casos, os
números podem ser ainda mais elevados, porque muitos adeptos tenderiam a se
definir como católicos por razões familiares e culturais.
Evidências da afrorreligiosidade (ou, na expressão de Ari
Oro, religiosidade afrorriograndense) estão por toda parte.
A maior festa em louvor a um orixá nas Américas não ocorre
no Nordeste brasileiro ou no Caribe, mas ao longo dos mais de 200 quilômetros
da praia gaúcha do Cassino, a mais extensa do mundo, no município de Rio
Grande.
É a celebração de Iemanjá, no dia 2 de fevereiro, que atrai
um público calculado em 300 mil pessoas, segundo os organizadores.
O peso das religiões de matriz africana transparece na
própria linguagem.
Para boa parte dos gaúchos, a expressão “ser de religião”
indica adesão a cultos afro.
“Quem é de axé diz que é”, resume um refrão corrente na
comunidade afrorreligiosa local.
A compreensão do fenômeno, diz Vitor Queiroz, professor de
Antropologia da UFRGS, exige em primeiro lugar um ajuste de contas com a ideia
corrente de que o Rio Grande do Sul é um Estado branco.
“Acho curioso quando as pessoas falam que não veem negros em
Porto Alegre. Digo: ‘Refaça sua operação ocular. Vá ao centro da cidade e
simplesmente olhe”, afirma Queiroz.
Até mesmo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse
em maio, em visita a atingidos pela enchente que assolou o Estado: “Não sabia
que tinha tanta gente negra aqui”.
Lula acrescentou que teria ouvido da primeira-dama, Janja
Lula da Silva, que os negros “são os mais pobres e moram nos lugares mais
arriscados”.
Segundo Queiroz, o mito do Rio Grande branco está
relacionado à reprodução do preconceito e ódio racial e religioso, segundo Queiroz.
Em 5 de maio, no auge da enchente, a influenciadora Michele
Dias Abreu atribuiu o desastre climático ao fato de o Estado estar entre os que
abrigam “maior número de terreiros de macumba (sic)”.
“Deus está descendo com sua ira total”, apregoou a influenciadora
no vídeo.
A repercussão negativa da injúria, que teve milhões de
visualizações, levou o Ministério Público de Minas Gerais a denunciar Michele
por prática e incitação à intolerância religiosa nas redes sociais.
Depois das medidas cautelares, a influenciadora
desculpou-se, afirmando que o comentário havia sido “infeliz e desnecessário”.
A desinformação, segundo Queiroz, é produto de estratégias
sociais e políticas de branqueamento da população gaúcha adotadas pelas elites
gaúchas desde o século 19.
“Os símbolos do Estado são todos afroindígenas. O próprio
gaúcho do século 19 é um peão (trabalhador de estância) de pele escura”,
ressalta o professor da UFRGS.
Tania Dutra prepara refeição na Cozinha Solidária da
Associação de Moradores do Quilombo Kédi. Prédio fica no local de antigo
terreiro
CRÉDITO,LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
Legenda da foto,Tania Dutra prepara refeição na Cozinha
Solidária da Associação de Moradores do Quilombo Kédi. Prédio fica no local de
antigo terreiro
O papel dos africanos na história do RS
A pesquisa historiográfica revela que a participação de
africanos no povoamento do Rio Grande do Sul até o início do século 19 não se
distinguiu do resto do país.
Em trabalho do início dos anos 2000, a historiadora Helen
Osório sustentou que, entre 1780 e 1807, o percentual de escravizados de origem
africana entre a população local oscilava entre 28% e 36%, patamar similar ao
da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro.
A economia do charque (carne de sol), que impulsionou o
crescimento da metade sul do Estado até o final do século 19, foi movida a
braços e sangue africano, afirma Queiroz.
No Uruguai e na Argentina, onde o charque teve peso
igualmente significativo, a presença massiva de escravizados nos saladeros
(equivalentes platinos das charqueadas) e estâncias, tão ou mais relevante que
a do Rio Grande do Sul, somente nas últimas décadas mereceu maior atenção dos
pesquisadores.
Com importância econômica secundária em relação aos centros
charqueadores de Pelotas e Rio Grande, os núcleos urbanos mais ao norte
concentraram desde o início grandes contingentes de africanos e descendentes.
“Porto Alegre foi fundada no final do século 18 por colonos
açorianos e seus escravos. A gente esquece que pelo menos um terço da população
da cidade nos primeiros anos era de africanos ou afrodescendentes”, diz
Queiroz.
Se o peso demográfico dos negros no Rio Grande do Sul
equivale até o início do século 19 ao de outros Estados, o que explica a adesão
mais pronunciada de religiões de matriz africana em solo gaúcho?
Por razões de colonização e defesa do território, a Coroa
portuguesa e, em seguida, o Império brasileiro promoveram a instalação de
colonos — inicialmente alemães, mas também franceses, suíços e italianos — no
Rio Grande do Sul.
A procedência dos migrantes obedecia à intenção de, nas
palavras da pesquisadora Vania Herédia, “branquear a raça”, ou seja, fortalecer
o elemento branco na população brasileira.
Pesquisadores sustentam que a chegada de colonos de fé
luterana, sobretudo alemães, contribuiu para estender a liberdade de culto —
inclusive das religiões de matriz africana — ao enfraquecer o controle da
Igreja católica no âmbito espiritual.
Para Queiroz, mais do que uma relação estanque entre as
confissões, existe no Estado um “mercado mágico subterrâneo”, comum também em
outros lugares do país.
“Às vezes, a pessoa não é afrorreligiosa e está, por
exemplo, com a mãe doente. Tenta isso, tenta aquilo, e alguém diz: ‘Olha, a mãe
tal no terreiro tal pode ajudar’. E a pessoa vai lá e encomenda um ebó
(oferenda). Essa pessoa é o quê? Ela vai ao terreiro, às vezes escondida”,
exemplifica.
Nem sempre as transações ocorrem nas sombras. O exemplo mais
notório é o da relação entre o presidente (cargo equivalente a governador na
República Velha) Antonio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961) e o príncipe
beninense Custódio Joaquim de Almeida, que chegou ao Rio Grande do Sul no final
do século 19.
A tradição oral atribui a Custódio o assentamento de ocutás
(objetos sagrados associados a orixás) em distintos pontos de Porto Alegre.
O mais famoso é o chamado Bará do Mercado Público,
simbolizado por um círculo de pedras no piso do prédio — o local exato do
assentamento nunca foi revelado.
Outros estariam sob o próprio Palácio Piratini, sede do
governo estadual, a pedido de Borges, na Igreja das Dores, no antigo pelourinho
da Rua dos Andradas e até mesmo, segundo Queiroz, em um ponto do leito do Lago
Guaíba.
A religião de Custódio, como a dos primeiros africanos em
solo gaúcho, conforme Queiroz, era chamada de “nação” e hoje adota a
denominação de batuque.
Originária do Golfo da Guiné, tem possível influência de
mitos centro-africanos.
Como o candomblé — em relação ao qual é, nas palavras do
professor da UFRGS, “um culto diferente de mesma raiz” —, o batuque venera
orixás e utiliza o iorubá como língua litúrgica.
Embora seja visto pelos próprios adeptos como tradicional e
ancestral, o batuque implantou-se há pouco mais de um século, no final do
século 19.
Nos anos 1930, de acordo com Queiroz, surgiram no Rio Grande
do Sul os primeiros terreiros de umbanda, poucas décadas depois de seu
aparecimento no Rio de Janeiro.
Com elementos mitológicos centro-africanos, a umbanda é
comumente definida como a mais brasileira das afrorreligiões.
Finalmente, mais recentemente figura a quimbanda ou linha
cruzada, que acrescenta as divindades de Exu e Pombagira ao universo sagrado do
batuque e da umbanda.
Na prática cotidiana, os três ramos (chamados localmente de
“lados”) são entrelaçados.
“Batuque, umbanda e quimbanda podem coexistir no mesmo
espaço. Trocam-se a decoração, o dia da semana, os frequentadores, mas existe
convivência”, garante o professor.
Pessoa tocando atabaque
CRÉDITO,GETTY IMAGES
Legenda da foto,Rio Grande do Sul tem o maior percentual de
adeptos de religiões afrobrasileiras
Conflitos religiosos
Se as relações entre os “lados” são pacíficas, o convívio
com outras confissões registra momentos de aberta hostilidade.
Por duas vezes, em 2003 e 2015, deputados ligados a igrejas
evangélicas neopentecostais tentaram sem sucesso aprovar na Assembleia
Legislativa projetos que proibiam o sacrifício de animais, prática corrente no
batuque e na quimbanda.
No primeiro episódio, o Ministério Público do Estado
ingressou com ação direta de inconstitucionalidade contra a decisão dos
deputados no Tribunal de Justiça do Estado.
Diante de decisão desfavorável, interpôs recurso
extraordinário junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Finalmente, em 2019, por unanimidade, a corte suprema
decidiu pela constitucionalidade do sacrifício de animais em cerimônias
religiosas.
A polêmica estimulou a criação, em 2014, do Conselho do Povo
de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, vinculado à Secretaria de Justiça,
Cidadania e Direitos Humanos.
A finalidade do órgão, segundo o decreto assinado pelo então
governador Tarso Genro (PT), é “desenvolver ações, estudos, propor medidas e
políticas públicas voltadas para o conjunto das comunidades do povo de terreiro
do Estado, caracterizando-se como um instrumento de reparação civilizatória, na
busca da equidade econômica, política e cultural e da eliminação das
discriminações”.
Em um episódio mais recente de tensão, o padre Sérgio
Belmonte, da paróquia de São Jorge, no bairro Partenon, provocou reação nas
redes sociais ao anunciar, em 23 de abril, uma celebração interreligiosa no
templo.
A data, consagrada ao santo guerreiro no calendário
católico, é festejada também nos cultos afro em louvor a Ogum, orixá da guerra.
Diante da controvérsia provocada pelo anúncio, a paróquia
anunciou que o ato interreligioso não se realizaria no interior da igreja.
Ainda assim, depois da missa, quatro homens tentaram impedir
a lavagem das escadarias do templo por adeptos de religiões de matriz africana
e tiveram de ser contidos pela polícia.
O arcebispo metropolitano de Porto Alegre, dom Jaime
Spengler, lamentou o episódio em entrevista à BBC News Brasil.
“Faz parte da missão própria da Igreja Católica promover,
com outros fiéis, de maneira fraterna, respeitosa e convivial, o caminho da
busca de Deus ou do divino, como quisermos”, disse o arcebispo.
O caso fornece, na opinião de dom Jaime, “sinais de um
radicalismo, de um fundamentalismo que não caracteriza, que não faz parte da sã
tradição católica nem faz parte daquilo que a Igreja, sobretudo depois do
Concílio Vaticano 2º, tem defendido”.
Escultura do Bará do Mercado Público
CRÉDITO,CÂMARA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE/DIVULGAÇÃO
Legenda da foto,Bará do Mercado Público é mais famoso marco
da presença afrorreligiosa na capital gaúcha
O arcebispo tinha prometido ao padre Belmonte que estaria
presente à missa de 23 de abril, mas foi impedido por uma forte gripe, sendo
representado pelo bispo auxiliar, dom Juarez Destro.
Se tivesse comparecido, porém, disse que perguntaria, em
primeiro lugar, se as pessoas que se manifestaram participam da vida ordinária
da comunidade.
“Se sim, certamente merecem sim nossa orientação, nossa
proximidade e, por que não dizer, o respeito. Até porque a Igreja não é feita
de pessoas que pensam da mesma forma. Existem diferenças.”
Em polêmicas como a da paróquia São Jorge, observou,
encontram-se “não raramente influenciadores digitais que promovem situações
delicadas, que não estão participando da vida concreta de uma igreja particular
e disseminam suas opiniões através das redes sociais, sem um compromisso de
vida comunitária”.
No Quilombo Kédi, a busca dos moradores do reconhecimento de
seu direito a ocupar o território se chocou com as pretensões da Igreja.
Erguido no ponto ocupado pelo terreiro de mãe Eva, o prédio
da associação ainda ostentava, em abril, acima da placa do quilombo, um
letreiro onde se lia “Igreja Santa Edvige, filiada à Paróquia Nossa Senhora
Mont’Serrat”. Ao lado, um aviso: “Missas aos sábados às 15:30”.
O espaço foi utilizado por dez anos por catequistas
católicos em missão de conversão junto aos moradores — sem sucesso, informa o
advogado Onir Araújo.
Fluminense de Niterói e ativista social há 40 anos, o
assessor do Quilombo Kédi radicou-se na capital gaúcha há mais de duas décadas,
mas não consegue evitar a emoção ao falar da terra adotiva.
“Porto Alegre dorme todas as noites ao som de tambores de
matriz africana”, comenta Araújo. “Em todos os bairros, se você apurar bem o
ouvido.”
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