O cérebro corrupto
A corrupção não é exclusiva da espécie humana, do
poder político e empresarial.
Mas também da sociedade que de certa forma a exerce
ou, pelo menos, a tolera.
Nestor Cerveró,
preso na Lava Jato e condenado em 2015 por corrupção na Petrobrás. Wilson Dias/
Agência Brasil
A corrupção pode ser definida, em um sentido
social, como uma crença compartilhada, expandida e tolerada de que o uso da
função pública é feito para o benefício de si mesmo, da própria família e de
amigos. Mas não é uma novidade moderna. Como bem descreve o World Development
Report de 2015, a corrupção foi a norma social por excelência na maior
parte da história. O princípio de que todas as pessoas são iguais perante a lei
surgiu progressivamente na história e em muitos países ainda é uma tarefa
pendente. A corrupção não é exclusiva da espécie humana (foram observadas
condutas corruptas em chimpanzés, abelhas e formigas). Entre os seres humanos,
não é exclusividade do poder público (mas existe) e de empresários agiotas (mas
existem), mas também da sociedade que de certa forma a exerce ou, pelo menos, a
tolera.
O tema da
corrupção foi estudado pela sociologia e as ciências políticas, pela história e
o direito. Mas é importante levar em consideração que o comportamento humano
pode ter causas ao mesmo tempo biológicas, psicológicas, culturais e sociais,
que interagem para influenciar e não são necessariamente disjuntivas. Em 2014,
a revista científica Frontiers in Behavioral Neuroscience publicou o
resultado de uma experiência na qual foi medida a condutividade da pele, que é
uma medida de variação emocional geral, ao se oferecer um suborno, recebê-lo e
esperar para ver se foi descoberta a trama corrupta na qual a pessoa estava
envolvida. Um leilão foi simulado e as pessoas tiveram a possibilidade de
subornar o leiloeiro para obter benefícios. Nas primeiras vezes, podiam
subornar livremente, mas depois o perdedor podia exigir que a operação fosse
inspecionada. Entre os resultados viu-se que tanto leiloeiros quanto
corruptores eram menos corruptos quando sabiam que poderiam ser observados.
Além disso, a atividade eletro-dérmica aumentou quando a pessoa decidiu de
forma positiva, honesta e pró-social. O olhar do outro (ou o possível olhar do
outro) é o que sanciona o oportunismo.
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É isso
que também causa nos participantes da experiência o medo de serem descobertos e
a ansiedade. É certo que existe um outro olhar do outro possível: um olhar
cúmplice e complacente, de uma pessoa e de uma sociedade que justificam a ação.
Se não existe sanção social, se perdemos o mecanismo de prêmios e punições, o
crime fica naturalizado. Mediante o estudo de nosso comportamento evolutivo e a
resolução de dilemas morais, foi observado que não importam a cultura, idade,
classe social e religião, o homem é corrupto por natureza: pensa primeiro no
bem próprio e depois considera regras morais e sociais; suas punições e suas
percepções. Não realizar atos de corrupção implica uma atitude pró-social
frente a uma atitude que visa exclusivamente o bem individual. A lei e o olhar
social influem positivamente em nossa conduta.
A
corrupção é uma condição já que, se é uma decisão individual cometer atos desse
tipo, na realidade não se trata somente de uma conduta singular desviada. Em
outras palavras, não existem seres humanos corruptos, mas uma sociedade
corrupta na qual os seres humanos (dispostos à corrupção) agem. Em um estudo
realizado pelo pesquisador Dan Ariely, foi observado que um pequeno suborno
pode ter uma influência dramática no comportamento moral de um indivíduo. Nessa
experiência, os participantes que receberam um pequeno suborno passaram depois
a enganar e roubar em tarefas posteriores. Essa descoberta pode ter
consequências importantes para a compreensão das normas sociais que conduzem à
corrupção generalizada nos governos, nas instituições e na sociedade. Todos os
países têm corrupção e seres humanos corruptos. A diferença, em parte, está em
quanto a corrupção é tolerada nessa sociedade. Entrevistas qualitativas
realizadas com especialistas em corrupção e em diversas áreas (política, comércio
exterior, indústria farmacêutica e da construção, esporte), podem mostrar uma
tendência comum das organizações corruptas. Dois psicólogos realizaram isso e
concluíram que as organizações corruptas costumam se autoperceber como tal em
situações como durante uma guerra, o que as faz manter a atitude de que os fins
justificam os meios. Isso tem implicações nos valores gerais da organização:
racionalizar a falta de ética e punir os que não são corruptos. Mas não, essa
“guerra” é somente um pretexto do corrupto.
O
relatório Mente, Sociedade e Conduta elaborado pelo Banco Mundial menciona que nesses países nos
quais a corrupção é uma norma aceita e não existe punição e sanção social para
tal conduta, é possível se chegar ao extremo de que parte da sociedade não
respeite e até mesmo caçoe do funcionário honesto. Por sua parte, muitas dessas
pessoas que no privado criticam a corrupção não se rebelam contra o sistema
para não ficarem isoladas e tachadas como “diferentes”. Existem situações nas
quais até mesmo policiais foram punidos (por seus colegas e por seu entorno
social) por não aceitarem subornos, serem honestos e violarem a norma
estabelecida. O mesmo relatório descreve como pessoas de países com alto índice
de corrupção que têm imunidade diplomática em Nova York e, por conta disso, não precisam
pagar por multas de trânsito, têm mais infrações do que diplomatas que vêm de
países com menor índice. Isso traz evidências à ideia de que a corrupção, em
parte, é influenciada por normas sociais internalizadas.
O homem é corrupto por natureza: pensa primeiro no
bem próprio e depois considera regras morais e sociais; suas punições e suas
percepções
Foram
feitas diversas experiência para mostrar sob quais circunstâncias as pessoas se
mostram mais predispostas a agir em benefício do bem comum (como, por exemplo,
quando pagam os impostos) e sob quais circunstâncias agem de modo mais egoísta.
Um tipo de tarefa experimental utilizada é o “jogo dos bens públicos”. Um
exemplo desse jogo seria pessoas em um grupo receberem 400 reais cada e poderem
decidir quanto colocarão secretamente em um fundo comum que será duplicado pelo
administrador. Ou seja, se uma pessoa não coloca nada no fundo comum e o
restante coloca seus 400, essa pessoa receberá mais dinheiro (seus 400
originais somados à partilha do dobro do colocado pelo restante). Quando se
joga mais de uma rodada, os jogadores começam a ver que nem todos estão
colocando o que poderiam colocar e estão se beneficiando à custa dos outros (já
que a partilha final poderia ser maior). Portanto, eles mesmos diminuem sua
contribuição.
O
resultado é que a atitude egoísta de poucos contagia os que originalmente mais
cooperavam. A cooperação costuma ocorrer quando as pessoas sentem que se
ajudarem, receberão algo em troca, mesmo que seja em um futuro distante
(conceito essencial para o pagamento de impostos em relação aos benefícios em
saúde, educação, segurança, etc.). Também se dá quando as pessoas se sentem
observadas. Isso acontece até mesmo com uma foto de um par de olhos, que em uma
praça faz com que se aumente a quantidade de coleta das fezes dos cachorros; em
um escritório, faz aumentar a quantidade de doações para o café de todos; em um
laboratório, reduz a quantidade de más ações. Nosso cérebro responde
automaticamente ao olhar do outro, seja real ou artificial, produto da
evolução. Sermos reconhecidos por uma atitude altruísta nos faz sentir bem com
nós mesmos, mas também traz benefícios a todos.
A
corrupção não é um detalhe e um desvio que causa impacto somente na moral
social. Afeta também a vida das pessoas. Em um texto da prestigiosa revista
científica Nature em 2011, foram publicadas estatísticas que calculavam que 83%
de todas as mortes pelo desmoronamento de edifícios nos últimos trinta anos
ocorreram em países que possuem, segundo os indicadores, os sistemas mais
corruptos. Tudo isso não é inevitável e os seres humanos não são fatalmente
dessa forma. Mas sem punição, exemplos e sanção social a corrupção pode se
transformar em norma estabelecida. Não existem desculpas e tempo que a apague.
Devemos estar convencidos e convencer de que a corrupção também é um crime.
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