Texto do mestre,
Eduardo Affonso.
Deliciem-se!
“Volta e meia alguém olha atravessado quando escrevo
“leiaute”, “becape” ou “apigreide” – possivelmente uma pessoa que não se avexa
de escrever “futebol”, “nocaute” e “sanduíche”“.
Deve se achar um craque no idioma, me esnobando sem saber
que “craque” se escrevia “crack” no tempo em que “gol” era “goal”, “beque” era
“back” e “pênalti” era “penalty”. E possivelmente ignorando que esnobar venha
de “snob”.
Quem é contra a invasão das palavras estrangeiras (ou do seu
aportuguesamento) parece desconsiderar que todas as línguas do mundo se tocam,
como se falar fosse um enorme beijo planetário.
As palavras saltam de uma língua para outra, gotículas de
saliva circulando em beijos mais ou menos ardentes, dependendo da afinidade
entre os falantes. E o português é uma língua que beija bem.
Quando falamos “azul”, estamos falando árabe. E quando
folheamos um almanaque, procuramos um alfaiate, subimos uma alvenaria,
colocamos um fio de azeite, espetamos um alfinete na almofada, anotamos um
algarismo.
Falamos francês quando vamos ao balé, usamos casaco marrom,
fazemos uma maquete com vidro fumê, quando comemos um croquete ou pedimos uma
omelete ao garçom; quando acendemos o abajur pra tomar um champanhe reclinados
no divã ou quando um sutiã provoca um frisson.
Falamos tupi ao pedir um açaí, um suco de abacaxi ou de
pitanga; quando vemos um urubu ou um sabiá, ficamos de tocaia, votamos no
Tiririca, botamos o braço na tipoia, armamos um sururu, comemos mandioca (ou
aipim), regamos uma samambaia, deixamos a peteca cair. Quando comemos moqueca
capixaba, tocamos cuíca, cantamos a Garota de Ipanema.
Dá pra imaginar a Bahia sem a capoeira, o acarajé, o dendê,
o vatapá, o axé, o afoxé, os orixás, o agogô, os atabaques, os abadás, os
babalorixás, as mandingas, os balangandãs? Tudo isso veio no coração dos
infames “navios negreiros”.
As palavras estrangeiras sempre entraram sem pedir licença,
feito uma tsunami. E muitas vezes nos pegando de surpresa, como numa blitz.
Posso estar falando grego, e estou mesmo. Não sou atéia,
apoio a eutanásia, gosto de metáforas, adoro bibliotecas, detesto conversar ao
telefone, já passei por várias cirurgias. E não consigo imaginar que palavras
usaríamos para a pizza, a lasanha, o risoto, se a máfia da língua italiana não
tivesse contrabandeado esse vocabulário junto com a sua culinária.
Há, claro, os exageros. Ninguém precisa de um “delivery” se
pode fazer uma “entrega”, ou anunciar uma “sale” se se trata de uma
“liquidação”. Pra quê sair pra night de bike, se dava tranquilamente pra sair
pra noite de bicicleta?
Mas a língua portuguesa também se insinua dentro das bocas
falantes de outros idiomas. Os japoneses chamam capitão de “kapitan”, copo de
“koppu”, pão de “pan”, sabão de “shabon”. Tudo culpa nossa. Como o café, que
deixou de ser apenas o grão e a bebida, para ser também o lugar onde é bebido.
E a banana, tão fácil de pronunciar quanto de descascar, e que por isso foi
incorporada tal e qual a um sem-fim de idiomas. E o caju, que virou “cashew” em
inglês (eles nunca iam acertar a pronúncia mesmo).
“Fetish” vem do nosso fetiche, e não o contrário.
“Mandarim”, seja o idioma, seja o funcionário que manda, vem do portuguesíssimo
verbo “mandar”. O americano chama melaço de “molasses”, mosquito de “mosquito”
e piranha, de “piranha” – não chega a ser a conquista da América, mas é um
começo.
Tudo isso é a propósito do 5 de maio, Dia da Língua
Portuguesa, cada vez mais inculta e nem por isso menos bela. Uma língua viva,
vibrante, maleável, promíscua – vai de boca em boca, bebendo de todas as
fontes, lambendo o que vê pela frente.
Mais de oitocentos anos, e com um tesão de vinte e
poucos"
.
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