O MALOGRO DE LAMPIÃO
- Por Geraldo Machado
Lampião estava nos arredores de Itiúba. O povo tomado de pavor, temia a propalada ferocidade= Rei do Cangaço. Todos apressados corriam para o esconderijo que a Serra ladeando a cidade propiciava. Juntavam pertences e mantimentos. No corre-corre, certo fato seria engraçado, não fosse a gravidade das circunstâncias: Um saco com 15 Kg. de pães estava furado. Pelo orifício os pães caiam, marcando o caminho e o esconderijo do seu condutor.. Hilda.
As jovens corriam em defesa de suas purezas, os homens de suas vidas, as crianças para não se afastarem de seus pais. Os fazendeiros em trincheiras organizavam resistência de poucas armas e munição doméstica. Hilda estava lá. Do alto da Serra percebia ou imaginava a movimentação do cangaço, sua estratégia, feito polvo de muitos e envolventes braços. Mulher forte e corajosa não temia a luta ou a morte, apavorava-se, entretanto, diante da possibilidade de ter atingida sua dignidade. Era mocinha, de beleza sertaneja. Tinha sonhos e olhos voltados para a realidade de ser esposa, mãe e avó... O pavor era dessa ordem, atingindo a todos, de uma ou de outra forma. A destruição e o crime aconteceriam porque Itiúba jamais se rendera às exigências dos mensageiros do Capitão...
Mas, Lampião, também dessa vez não se aventurou a penetrar na Cidade de única saída, cercada por altas serras. Não havia como fugir se o ataque não desse certo, se a defesa ou forças das volantes o resistissem por longo tempo e pudesse, Itiúba, receber reforços, dando-lhe condição de eliminar o maior dos bandoleiros do Nordeste Brasileiro.
... As horas arrastavam-se, até a quase certeza de que não haveria invasão da Cidade. Hilda retornou aliviada para sua casa, com ela seus pais, irmãos e amigos. À noite todos intranqüilos vigiavam. Ao menor rumor ou aproximação o coração acelerava. Porém, havia tenacidade em resistir e morrer resistindo, se necessário fosse e não houvesse outra condição...
As noticias viriam de Queimadas, a quarenta quilômetros, que, sem a mesma topografia de Itiúba, seria duramente atingida.
*****
Dezembro de 1929, 22, Queimadas. Bahia. Domingo, manhã quente, com ventos que varriam a cidade, tornando-a poeirenta. Todos em preparativos para o Natal, não poderiam supor o drástico episódio pessoal e histórico que vivenciariam.
...Nas proximidades do centro de Queimadas, Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, ordenara o avanço de batedores, espias que lhe fornecessem as condições e o ânimo da Cidade. Interessava-lhe saber dos “coiteiros” a “força policial” existente, embora tivesse ciência de que o povo não lhe faria resistência, recebendo-o de modo, por assim dizer, desconfiado, mas submisso, sem que pudesse confiar. As gentes do Sertão transformam-se de inopino. e agem, e lutam, e morrer e matam por seus princípios e crenças.
Acercou-se sorrateiramente. Antes verificara as armas. Discutira com seus mais próximos as condições de ataque e de saída, se nada desse certo. Estavam cansados, famintos, sem dinheiro. Os homens com os instintos aguçados. Queriam ferir, matar os macacos, saquear, beber, dançar, ter mulheres, descansar e partir.
O grupo compunha-se de 15 a 18 homens, entre eles, o próprio Lampião, Corisco, Mariano, Volta Cega, Labareda
O taque fora rápido, fulminante. A Cidade desprotegida, sequer tivera notícia da aproximação dos cangaceiros, que a bloquearam, cortaram os fios do telégrafo, impedindo o recebimento de qualquer notícia vinda dos arredores de Itiúba, que fez repicar os sinos de sua Matriz na esperança de algum viageiro avisar ao povo de Queimadas.
Todos dormiam. Os sete policiais que guarneciam Queimadas inconseqüentes não exerciam vigilância, o que poderia salvar suas vidas ou lhe dariam oportunidade de alguma defesa. Nada. O bando do Capitão Virgulino entrara sorrateiro e descontraído. O Cangaceiro verificou seu relógio, dividindo o bando em dois grupos. Em seguida, apenas, disse: Vamos, e todos o seguiram sem vacilações. Ageis, armas nas mãos, espalhando-se e ocupando pontos estratégicos; o grupo sob o comando direto de Lampião, avançou cauteloso em direção ao Quartel. Lá, encontraram quatro policiais - entre eles um sargento - que estarreceram quando Lampião entrou. Sequer buscaram suas armas. Lampião, falando baixo, anunciou sua condição e ordenou com voz entrecortada: Ajoelha macaco. Por traz, Volta Seca, cigarro de palha no canto da boca, apunhalou dois deles, sem piedade. Caíram sem um grito. Olhos esbugalhados, sem acreditar que morriam.
Um terceiro, poupado por ordem do Chefe-bandoleiro, se viu empurrado para os fundos do prédio, onde estavam os presídios. Lampião mandou que soltassem a todos, aos quais alertou: Quem for do Capitão Virgulino vive. Não houve discordâncias. Depois, voltando-se para o terceiro policial, o que sobrevivera, perguntou: Quantos vocês são e onde estão. O policial, com a coragem dos sertanejos, desceu a cabeça e nada respondeu. Lampião olhou para os prisioneiros que informaram serem oito (8) e que outros três deveriam estar em suas casas. Ainda, perguntou: Quem é daqui: Eu, foi a resposta da maioria. Lampião os fez abaixarem-se e atirou em suas nucas, depois olhou para Volta Seca e disse: Sangra. A ordem foi cumprida com destreza e rapidez. Os policiais tombaram aos pés daquele que decidira por suas mortes, sem um gemido sequer. Restou o sargento.
Depois, o facínora chamou Corisco, diabo loiro, cangaceiro corajoso e perverso: Traga os outros macacos. Corisco fez sinal para um prisioneiro, aquele que mais atacara os policiais, para se achegar e com ele ir. Lembraram de um apito usado pelos policiais para chamarem-
se e o usaram. O relógio marcava 17 (dezessete) horas. Todos acorreram à convocação, deparando-se com a cena que os fizera gelar.
Lampião mandou que os corpos fossem colocados na Praça, onde se localizava o Posto Policial. Os cangaceiros, diante do dia que amanhecia, posicionaram-se. O Sol, ia-se pondo, com reflexos em ouro e prata semelhando portal de ingresso no paraíso. Nesses descampados, o astro rei semelha estar mais próximo da Terra, o que o torna agigantado, dominante, sedutor. Os pássaros e os galos, em últimos cantos, anunciavam o final do dia, profetizando, em testemunho único, – quem sabe – a tragédia que se alastraria.
Quando os fiéis se aproximaram para a missa dominical, depararam-se com três corpos estendidos e quatros policiais fardados ajoelhados. Lampião à Frente, comandava o triste espetáculo. Com disparos certeiros os derrubou. Volta Seca, a um olhar seu, crava, sem piedade, seu longo punhal nas costas de cada um dos que sucumbentes.
Em seguida, o bando, sem demonstrar qualquer constrangimento, retirou-se e foi entrando nas casas vizinhas, onde exigia comida, bebida, dinheiro e prazer...Após assaltar a residência dos Lantyer, foram para a casa da família do Topógrafo Arnaldo Sampaio, do atual DNOCS, logo perguntando pelo dinheiro do mês devido aos trabalhadores.
O dr. Arnaldo, temia por suas filhas e por sua bela esposa, que poderia chamar a atenção dos bandidos. Escondidas num dos quartos apercebiam-se do drama sem ação, atônitas. Odete, 9 anos, olhava entre curiosa e amedrontada. Era menina bonita, de olhos claros, cabelos compridos e de uma cor violácea que a destacava. Viu Lampião e hoje, ainda, em impressão pessoal, diz: Era uma homem feio, pequeno, magro, caboclo, um olho vazado, falava baixo, de olhar penetrante a tudo visualizava sem perder detalhe. Maltratado pela caatinga, sua pele era ressecada e cheia de poeira. Sujo, à semelhança dos demais, apresentava mau cheiro, que procurava – como todos – atenuar com o uso excessivo de perfumes. Uma mistura que dava nojo e medo.
Curioso é o dizer de que Lampião era alto, com 1,79 m, forte, praticamente cego do olho direito, mancava, de cabelos crespos, mantinha-se ornado com ouro e prata, usava perfume francês, racista (tanto que humilhou as autoridades judiciais composta de pessoas negras) costurava e trabalhava com couro. Sabia ler e escrever. Poetizava e manejava a sanfona. Ignorante, inteligente e mau. Mentiroso, embora, por vezes, tenha cumprido a palavra empenhada, em atitudes desconcertantes. Essas característica salvaram o sargento porque havia promessa de poupá-lo a uma habitante local.
- Cabôco, disse, onde está o dinheiro, que vosmiçê ainda não passou aos trabalhadores?
Arnaldo Sampaio, este sim, de pequena estatura, crescia diante de Lampião por sua corpulência. Homem de coragem e fala fácil, simpático, receava pelas mulheres de sua casa, então, respondeu:
- Lampião – não o chamava de Capitão, denotando certa intimidade – já paguei a todos.
- Nada, Cabôco, não me disseram assim.
- Mas, Lampião, o Capitão acha que eles iriam dizer que receberam para você levar todo o dinheiro dos seus salários?
As mulheres tremiam. Odete, com maturidade, pensava, por quê papai faz isso? Defende um dinheiro ao invés de nossas vidas.
O dinheiro estava escondido em uma bica, por onde a água da chuva era canalizada e despejada em recipientes domésticos. Trinta contos de réis para o pagamento dos trabalhadores.
Mariano, bonito, cabelos lisos. Lampião – pelo que se dizia – o usava como retrato seu nos jornais da Bahia. Sabia-se de Lampião, mas, via-se Mariano. O facínora chefe era vaidoso. Cheio de truques e espertezas. Inegavelmente, um homem de inteligência rude, com tiradas que, às vezes, surpreendia. Odete teve sua atenção voltada para aquele “belo” homem porque parecia, em aspecto, diferente dos demais. Retraiu-se, mais ainda. Seu temor cresceu. Chorou em silêncio.
Sandálias, perneiras, calça de brim ordinário, camisa de mangas compridas, barba mal cuidada, cabelos encaracolados, untados com óleo, poeirento. Olho direito vazado. Vários punhais pendiam-lhe das algibeiras a tiracolo, com farta munição e armas modernas, algumas tomadas das volantes ou adquiridas de integrantes seus. Falante, conversa cheia de rodeios, um ir e vir para saber o que desejava. Sempre voltava à pergunta inicial desejoso de colocar o interlocutor em contradição e, aí, chamá-lo às falas. Odete completa sua visão sobre Lampião. Líder inconteste e chefe de homens de todos os tipos e naturezas.
- E o dinheiro, Cabôco?
- Ou Lampião, já disse, não tenho, está com os homens.
- Nada, Cabôco.
Havia entre aqueles homens empatia. Tratavam-se com intimidade comedida. Arnaldo Sampaio chamava o Rei do Cangaço de Lampião ao invés do costumeiro e exigido Capitão, título que lhe fora conferido por Padre Cícero. E ele, Lampião, utilizava o termo caboclo para falar com Arnaldo Sampaio, embora, por vezes, o chamasse de doutor, de senhor.
Conversa vai, conversa vem, Lampião aceita as razões do Dr. Sampaio, que lhe entregou para salvar o todo, dois mil e tantos contos de réis, dinheiro do IFOCS, hoje DNOCS.
Cerveja na mesa, comida farta, os seis invasores da residência da menina Odete – mantida com as mulheres no frágil esconderijo – gargalhavam. Arnaldo servindo a Lampião, disse:
- Capitão, bote sua colher de prata pra ver se está envenenada. Não é isso que o amigo faz? Bote e veja que sou de confiança.
- Não carece, Cabôco, cabôco bom eu conheço de longe. E vosmicê é dos meus.
Entretanto, Lampião não bebeu a cerveja ofertada. Sempre de frente para as portas e janelas, pistolas às mãos, repassou o copo, entre brincadeiras e disfarces, voltou-se para outras visões e perguntas sobre as volantes, estranhos na cidade, o padre, os bordéis na Rua da Bomba. Arnaldo percebeu, porém, calou-se sorridente.
Judite servia. Terminada a “fartança”, o fartum, Lampião foi “respeitoso”... Nada falou acerca da ausência da dona da casa. Levantou e disse:
Agradeço a pousada. Agora a cambada carece de se diverti e descansá. Os espias continuam de olho nos que não vemo, os de nossa querença e os que não gostamos e vamo procurá. Fique – apontando para o quarto onde estava a menina Odete - com sua família em casa, Cabôco, não se terá o que Deus lhe deu como seu.
Arnaldo gelou. Vá com Deus, concluiu, de forma pálida. Cabeça erguida, entre respeitoso e agradecido, olhava de frente para o admirável cangaceiro. Sua coragem, e ousadia, também o tornavam admirável aos olhos de Lampião. Contudo o Topógrafo temia pela mentira que pregara a Virgulino Ferreira da Silva, terror do Sertão. Será que ele voltaria para vingar-se? Deveria tê-lo mais a sério? Não podia se deixar enganar pelas aparências e conversas longas e arrastadas do Rei do Cangaço. Uma fera travestida de cordeiro.
Queimadas curvara-se ante Lampião. A coragem daquela gente fora esmagada pela brutalidade dos cangaceiros. Homens e mulheres escondiam-se. Na Praça os sete corpos dos policiais assassinados. O Padre procurara Lampião para dizer que iria, com alguns homens, recolher os homens mortos. Lampião não o permitiu.
- Macaco não é homem, sinhô bispo. Deixa lá.
- Mas, Capitão.
- Sem mais sinhô bispo. Vorte – agora – para sua igreja. E não se dê guarida a meus inimigos ou terei de ir lá, o que não carece se o padre ouvir o dito.
O Padre obedeceu. Restava-lhe rezar. Foi o que fez.
No bordel, o bando bebia e dançava. Distribuía parte do dinheiro tomado da gente rica de Queimadas e do comércio local, deste apurando quase 800$000 contos de réis, com as mulheres, que prazerosas se submetiam às suas exigências. Não havia outros homens, só os bandoleiros faziam a festa. Nos arredores, longe de Lampião, os cangaceiros mataram, roubaram e estupraram. Tomavam as mulheres de seus companheiros e as levavam para o mato. Ouviam-se gritos e choro...Algumas emitiam risos abafados...Lampião com seus achegados foi ao cinema, depois promoveu um baile com parte da sociedade presente.
Pela madrugada decidira partir. Como de costume não demorava, não podia, era perigoso, propiciava armadilha, cerco, possível extermínio do bando e sua morte. A ordem para sair da cidade fora rapidamente transmitida. Todos deixavam seus afazeres, os mais íntimos que fossem, para obedecer aquele homem tenaz, de força e personalidade consideráveis. Era chefe, que temido, mandava e não tolerava réplica, e líder, respeitado, que atraía e era seguido.
O Dr. Arnaldo Sampaio, em casa como recomendara Lampião, ouviu alguém bater suavemente na porta lateral de sua casa, depois sussurrar o seu nome - Sinhô Sampaio. Temeu um retorno de Lampião. Ele descobrira e vinha acertar contas. Olhou por uma fresta. Era Volta Seca. Escondeu sua arma entre as almofadas do sofá, onde esperava sentar-se para qualquer conversa. Abriu a porta devagar. Volta Seca entrou manso, cheio de manhas e disse:
- Vim buscar uma cousa que vosmicê tem e quero para eu.
Arnaldo Sampaio estremeceu, pensou em sua mulher, seu olhar – sem conseguir evitar – dirigiu-se para o sofá.
- O que é Volta Seca?
- Adepois a gente se fala, dotô. Vamo lá pá dento.
E foram, sem que o malvado cangaceiro se definisse.
- O amigo deseja alguma comida ou bebida? Alguma coisa?
- Não, nada disso meu dotô.
- Então, o que é homem? Diga.
- Carma dotô. Vamo mais pá dento.
Volta Seca, homem acostumado a roubar, estava escabreado, talvez temesse a Lampião pela promessa feita. Conduziu, aos poucos, Arnaldo Sampaio para os fundos da casa. Odete, que estava com sua mãe, iniciou um grito – pai – abafado com violência.
Volta Seca não esclarecia sua pretensão. Na verdade procurava jeito de falar sem ser escutado por terceiros. E foram para o enorme quintal, onde se viam umbuzeiro, pinheiras, um pé de “siriguela”, outras árvores menores, palmas, um limoeiro raquítico. Não percebeu um vulto de mulher escondido atrás da porta de pequeno quarto. Tinha um machado levantado. Era Judite que o portava para defender o patrão se Volta Seca o atingisse.
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Força, coragem e lealdade eram constantes naquelas paragens do Sertão. Um povo forte, de aparente indolência, rápido e resoluto naquilo considerado moral, religioso, imprescindível. Euclides da Cunha, em os Sertões, descreve esse povo sertanejo de insuperável modo.
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Esperava-se o pior. Volta Seca não dizia o que desejava. Seria tão grave ou difícil o atendimento? Novamente, pensou na bela esposa. Os pelos de seu corpo eriçaram. Gélido, volveu os olhos procurando algo para oferecer resistência ou possibilitar fuga. Morrer não estava em seus planos. Tampouco perder a mulher ou as filhas. Deveria lutar. A cabeça latejava. O suor escorria-lhe pelo rosto. O medo tomara-lhe o corpo. Arnaldo Sampaio preparava-se para atacar.
- Dr., vosmicê não leve a má minha vaidade, mas careço daquele seu chapéu de couro, de beiras grande, que o sinhô estava. É pra molde aparar o Sol, que mui castiga nesse Sertão.
Arnaldo Sampaio respirou fundo. Nervoso, disse:
- Por que você não falou logo homem? O chapéu é do amigo com maior prazer.
- Judite – oi senhor - traga meu chapéu de couro de abas largas que quero dar de presente ao amigo que nos visita.
Judite, às pressas, trouxe o chapéu, comprado em Salvador. Chapéu de luxo, forrado. Mas, não coube na cabeça do cangaceiro. Rápido, o topógrafo, buscou forrar a cobertura ambicionada pelo malfeitor, adaptando-a – o quanto podia - para uso do pedinte.
Volta Seca - o menino-homem, homem-menino - sorria. O chapéu quase cobrindo suas sobrancelhas tornava-o ridículo, hilário. Uma figura suja, fedorenta, trajes maltratados, ostentava chapéu importado, com uma estrela de prata que reluzia, próprio para ricos estancieiros do país. - Inté dotô, fico as ordes -. Orgulhoso, saiu da casa de Arnaldo Sampaio, que não conseguira dormir. A noite fria aproximara o casal. A jovem esposa tremia e chorava baixinho. Lembrava-se das filhas e de si. Acariciou o rosto do esposo, que, úmido, denunciava silenciosas lágrimas. Mais sofreu, enternecida porém.
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Lampião e seu bando dirigiram-se para uma fazenda ao sul da Cidade. Bêbados logo adormeceram.
*****
Vindos do extremo norte da Região, entrava em Queimadas uma volante com 40 homens. Arnaldo Sampaio logo se dirigiu ao seu comandante, informando a posição dos cangaceiros.
Era preciso dar um fim naquela situação – pensava -,, exterminar Lampião, impedir suas matanças, seus hediondos crimes. Trazer paz ao Sertão.
- Se vocês forem rápidos encontrarão todos cheios da cachaça, provavelmente dormindo.
- Estamos muito cansados, chefe. Com fome. Não temos condição de ir, decidiu o militar.
Não adiantaram insistências.
Deitaram a beber e a comer. Em seguida, foram para a Rua da Bomba, para os bordéis, onde dormiram.
*****
No outro dia, o Rei do Cangaço – intocado, com alforges e bolsos cheios, instintos satisfeitos - deixava Santo Antônio das Queimadas. Madrugada, quatro (4) horas. Alguns bandoleiros ainda entorpecidos pelo álcool. Cantavam:
“Olé muié rendeira,
Olé muié rendá,
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá...”.
... Lampião desceu a serra
Deu um baile em Cajazeiras
Botou as moças donzelas
Prá cantar muié rendeira...”
*****
Uma dramaticidade incontida. Cuja compreensão se situava além da realidade palpável, pensada, admitida. Coisas da vida. Personalidades mutiladas, mutilando. Homens transformados ou nascidos nas condições que se apresentavam – bandidos -. Células do que ainda somos.
*****
O Governo não considerou a atitude de Arnaldo Sampaio que se arriscara para defender os trinta (30) mil contos de reis do Estado. Obrigaram-no a pagar os dois (2) mil que entregara a Lampião, com desconto mensal em folha de pagamento.
Um ano depois recebia uma ordem que o fez relembrar com intensidade o passado: Deveria transferir-se para o interior de Pernambuco, estado natal do Cangaceiro Maior. Rebelou-se, Não submeteria sua família a outro qualquer perigo. Sem contemplação a IFOCS/DNOCS o demitiu por insubordinação. O valente Topógrafo que defendera o pagamento de seus trabalhadores, servidores públicos, colocando em risco sua vida, a da esposa e de suas filhas viu-se demitido, sumariamente. Desempregado, por dois longos e sofridos anos, submeteu-se a privações de ordem vária. Sofreu o afastamento de amigos e de parentes, suas maledicências. Constrangido deixou o Estado da Bahia.
*****
Itiúba/Ba - 2012
Itiuba – 2012
Hoje, 2012, a menina Odete Sampaio, 98 anos, artista plástica, lúcida, bela, olhos azuis, cabelos prateados, falante, conta- nos essa história, transformada em estória, entremeada de realidade e ficção. Hildacy Machado, minha mulher, falou-me de sua terra, Itiúba, dessas estórias e de sua mãe – falecida - Hilda Dias de Araújo, de mesmos valores e sentimentos, pois contemporânea nesse episódio de nuanças reais, que o autor, por licenciosidade autorizada, usou como protagonista.
Geraldo Leony Machado, advogado, jornalista, escreveu Amálgama, prosa poético-filosófica, participou de Cinco Contista da Bahia, prefácio de Wilson Lins, e de Contos que a Bahia Conta, com lançamentos na ABI, RJ, e na Academia de Letras de Minas Gerais, BH, todos pela Editoração Cepa, órgão integrante do movimento cultural CEPA, Salvador, Bahia, Brasil. Av. Tancredo Neves, 1632, Ed. Salvador Trade Center, Torre Sul, Salas 806/8 – Tel. 3272.1642. E-mail: glmachado@bol.com
Alguns dados foram extraídos do Jornal A Tarde, edição de 14.12.1977, reportagem de Oleone Coelho Fontes.
Por Geraldo MachadoLampião estava nos arredores de Itiúba. O povo tomado de pavor, temia a propalada ferocidade= Rei do Cangaço. Todos apressados corriam para o esconderijo que a Serra ladeando a cidade propiciava. Juntavam pertences e mantimentos. No corre-corre, certo fato seria engraçado, não fosse a gravidade das circunstâncias: Um saco com 15 Kg. de pães estava furado. Pelo orifício os pães caiam, marcando o caminho e o esconderijo do seu condutor.. Hilda.
As jovens corriam em defesa de suas purezas, os homens de suas vidas, as crianças para não se afastarem de seus pais. Os fazendeiros em trincheiras organizavam resistência de poucas armas e munição doméstica. Hilda estava lá. Do alto da Serra percebia ou imaginava a movimentação do cangaço, sua estratégia, feito polvo de muitos e envolventes braços. Mulher forte e corajosa não temia a luta ou a morte, apavorava-se, entretanto, diante da possibilidade de ter atingida sua dignidade. Era mocinha, de beleza sertaneja. Tinha sonhos e olhos voltados para a realidade de ser esposa, mãe e avó... O pavor era dessa ordem, atingindo a todos, de uma ou de outra forma. A destruição e o crime aconteceriam porque Itiúba jamais se rendera às exigências dos mensageiros do Capitão...
Mas, Lampião, também dessa vez não se aventurou a penetrar na Cidade de única saída, cercada por altas serras. Não havia como fugir se o ataque não desse certo, se a defesa ou forças das volantes o resistissem por longo tempo e pudesse, Itiúba, receber reforços, dando-lhe condição de eliminar o maior dos bandoleiros do Nordeste Brasileiro.
... As horas arrastavam-se, até a quase certeza de que não haveria invasão da Cidade. Hilda retornou aliviada para sua casa, com ela seus pais, irmãos e amigos. À noite todos intranqüilos vigiavam. Ao menor rumor ou aproximação o coração acelerava. Porém, havia tenacidade em resistir e morrer resistindo, se necessário fosse e não houvesse outra condição...
As noticias viriam de Queimadas, a quarenta quilômetros, que, sem a mesma topografia de Itiúba, seria duramente atingida.
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Dezembro de 1929, 22, Queimadas. Bahia. Domingo, manhã quente, com ventos que varriam a cidade, tornando-a poeirenta. Todos em preparativos para o Natal, não poderiam supor o drástico episódio pessoal e histórico que vivenciariam.
...Nas proximidades do centro de Queimadas, Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, ordenara o avanço de batedores, espias que lhe fornecessem as condições e o ânimo da Cidade. Interessava-lhe saber dos “coiteiros” a “força policial” existente, embora tivesse ciência de que o povo não lhe faria resistência, recebendo-o de modo, por assim dizer, desconfiado, mas submisso, sem que pudesse confiar. As gentes do Sertão transformam-se de inopino. e agem, e lutam, e morrer e matam por seus princípios e crenças.
Acercou-se sorrateiramente. Antes verificara as armas. Discutira com seus mais próximos as condições de ataque e de saída, se nada desse certo. Estavam cansados, famintos, sem dinheiro. Os homens com os instintos aguçados. Queriam ferir, matar os macacos, saquear, beber, dançar, ter mulheres, descansar e partir.
O grupo compunha-se de 15 a 18 homens, entre eles, o próprio Lampião, Corisco, Mariano, Volta Cega, Labareda
O taque fora rápido, fulminante. A Cidade desprotegida, sequer tivera notícia da aproximação dos cangaceiros, que a bloquearam, cortaram os fios do telégrafo, impedindo o recebimento de qualquer notícia vinda dos arredores de Itiúba, que fez repicar os sinos de sua Matriz na esperança de algum viageiro avisar ao povo de Queimadas.
Todos dormiam. Os sete policiais que guarneciam Queimadas inconseqüentes não exerciam vigilância, o que poderia salvar suas vidas ou lhe dariam oportunidade de alguma defesa. Nada. O bando do Capitão Virgulino entrara sorrateiro e descontraído. O Cangaceiro verificou seu relógio, dividindo o bando em dois grupos. Em seguida, apenas, disse: Vamos, e todos o seguiram sem vacilações. Ageis, armas nas mãos, espalhando-se e ocupando pontos estratégicos; o grupo sob o comando direto de Lampião, avançou cauteloso em direção ao Quartel. Lá, encontraram quatro policiais - entre eles um sargento - que estarreceram quando Lampião entrou. Sequer buscaram suas armas. Lampião, falando baixo, anunciou sua condição e ordenou com voz entrecortada: Ajoelha macaco. Por traz, Volta Seca, cigarro de palha no canto da boca, apunhalou dois deles, sem piedade. Caíram sem um grito. Olhos esbugalhados, sem acreditar que morriam.
Um terceiro, poupado por ordem do Chefe-bandoleiro, se viu empurrado para os fundos do prédio, onde estavam os presídios. Lampião mandou que soltassem a todos, aos quais alertou: Quem for do Capitão Virgulino vive. Não houve discordâncias. Depois, voltando-se para o terceiro policial, o que sobrevivera, perguntou: Quantos vocês são e onde estão. O policial, com a coragem dos sertanejos, desceu a cabeça e nada respondeu. Lampião olhou para os prisioneiros que informaram serem oito (8) e que outros três deveriam estar em suas casas. Ainda, perguntou: Quem é daqui: Eu, foi a resposta da maioria. Lampião os fez abaixarem-se e atirou em suas nucas, depois olhou para Volta Seca e disse: Sangra. A ordem foi cumprida com destreza e rapidez. Os policiais tombaram aos pés daquele que decidira por suas mortes, sem um gemido sequer. Restou o sargento.
Depois, o facínora chamou Corisco, diabo loiro, cangaceiro corajoso e perverso: Traga os outros macacos. Corisco fez sinal para um prisioneiro, aquele que mais atacara os policiais, para se achegar e com ele ir. Lembraram de um apito usado pelos policiais para chamarem-
se e o usaram. O relógio marcava 17 (dezessete) horas. Todos acorreram à convocação, deparando-se com a cena que os fizera gelar.
Lampião mandou que os corpos fossem colocados na Praça, onde se localizava o Posto Policial. Os cangaceiros, diante do dia que amanhecia, posicionaram-se. O Sol, ia-se pondo, com reflexos em ouro e prata semelhando portal de ingresso no paraíso. Nesses descampados, o astro rei semelha estar mais próximo da Terra, o que o torna agigantado, dominante, sedutor. Os pássaros e os galos, em últimos cantos, anunciavam o final do dia, profetizando, em testemunho único, – quem sabe – a tragédia que se alastraria.
Quando os fiéis se aproximaram para a missa dominical, depararam-se com três corpos estendidos e quatros policiais fardados ajoelhados. Lampião à Frente, comandava o triste espetáculo. Com disparos certeiros os derrubou. Volta Seca, a um olhar seu, crava, sem piedade, seu longo punhal nas costas de cada um dos que sucumbentes.
Em seguida, o bando, sem demonstrar qualquer constrangimento, retirou-se e foi entrando nas casas vizinhas, onde exigia comida, bebida, dinheiro e prazer...Após assaltar a residência dos Lantyer, foram para a casa da família do Topógrafo Arnaldo Sampaio, do atual DNOCS, logo perguntando pelo dinheiro do mês devido aos trabalhadores.
O dr. Arnaldo, temia por suas filhas e por sua bela esposa, que poderia chamar a atenção dos bandidos. Escondidas num dos quartos apercebiam-se do drama sem ação, atônitas. Odete, 9 anos, olhava entre curiosa e amedrontada. Era menina bonita, de olhos claros, cabelos compridos e de uma cor violácea que a destacava. Viu Lampião e hoje, ainda, em impressão pessoal, diz: Era uma homem feio, pequeno, magro, caboclo, um olho vazado, falava baixo, de olhar penetrante a tudo visualizava sem perder detalhe. Maltratado pela caatinga, sua pele era ressecada e cheia de poeira. Sujo, à semelhança dos demais, apresentava mau cheiro, que procurava – como todos – atenuar com o uso excessivo de perfumes. Uma mistura que dava nojo e medo.
Curioso é o dizer de que Lampião era alto, com 1,79 m, forte, praticamente cego do olho direito, mancava, de cabelos crespos, mantinha-se ornado com ouro e prata, usava perfume francês, racista (tanto que humilhou as autoridades judiciais composta de pessoas negras) costurava e trabalhava com couro. Sabia ler e escrever. Poetizava e manejava a sanfona. Ignorante, inteligente e mau. Mentiroso, embora, por vezes, tenha cumprido a palavra empenhada, em atitudes desconcertantes. Essas característica salvaram o sargento porque havia promessa de poupá-lo a uma habitante local.
- Cabôco, disse, onde está o dinheiro, que vosmiçê ainda não passou aos trabalhadores?
Arnaldo Sampaio, este sim, de pequena estatura, crescia diante de Lampião por sua corpulência. Homem de coragem e fala fácil, simpático, receava pelas mulheres de sua casa, então, respondeu:
- Lampião – não o chamava de Capitão, denotando certa intimidade – já paguei a todos.
- Nada, Cabôco, não me disseram assim.
- Mas, Lampião, o Capitão acha que eles iriam dizer que receberam para você levar todo o dinheiro dos seus salários?
As mulheres tremiam. Odete, com maturidade, pensava, por quê papai faz isso? Defende um dinheiro ao invés de nossas vidas.
O dinheiro estava escondido em uma bica, por onde a água da chuva era canalizada e despejada em recipientes domésticos. Trinta contos de réis para o pagamento dos trabalhadores.
Mariano, bonito, cabelos lisos. Lampião – pelo que se dizia – o usava como retrato seu nos jornais da Bahia. Sabia-se de Lampião, mas, via-se Mariano. O facínora chefe era vaidoso. Cheio de truques e espertezas. Inegavelmente, um homem de inteligência rude, com tiradas que, às vezes, surpreendia. Odete teve sua atenção voltada para aquele “belo” homem porque parecia, em aspecto, diferente dos demais. Retraiu-se, mais ainda. Seu temor cresceu. Chorou em silêncio.
Sandálias, perneiras, calça de brim ordinário, camisa de mangas compridas, barba mal cuidada, cabelos encaracolados, untados com óleo, poeirento. Olho direito vazado. Vários punhais pendiam-lhe das algibeiras a tiracolo, com farta munição e armas modernas, algumas tomadas das volantes ou adquiridas de integrantes seus. Falante, conversa cheia de rodeios, um ir e vir para saber o que desejava. Sempre voltava à pergunta inicial desejoso de colocar o interlocutor em contradição e, aí, chamá-lo às falas. Odete completa sua visão sobre Lampião. Líder inconteste e chefe de homens de todos os tipos e naturezas.
- E o dinheiro, Cabôco?
- Ou Lampião, já disse, não tenho, está com os homens.
- Nada, Cabôco.
Havia entre aqueles homens empatia. Tratavam-se com intimidade comedida. Arnaldo Sampaio chamava o Rei do Cangaço de Lampião ao invés do costumeiro e exigido Capitão, título que lhe fora conferido por Padre Cícero. E ele, Lampião, utilizava o termo caboclo para falar com Arnaldo Sampaio, embora, por vezes, o chamasse de doutor, de senhor.
Conversa vai, conversa vem, Lampião aceita as razões do Dr. Sampaio, que lhe entregou para salvar o todo, dois mil e tantos contos de réis, dinheiro do IFOCS, hoje DNOCS.
Cerveja na mesa, comida farta, os seis invasores da residência da menina Odete – mantida com as mulheres no frágil esconderijo – gargalhavam. Arnaldo servindo a Lampião, disse:
- Capitão, bote sua colher de prata pra ver se está envenenada. Não é isso que o amigo faz? Bote e veja que sou de confiança.
- Não carece, Cabôco, cabôco bom eu conheço de longe. E vosmicê é dos meus.
Entretanto, Lampião não bebeu a cerveja ofertada. Sempre de frente para as portas e janelas, pistolas às mãos, repassou o copo, entre brincadeiras e disfarces, voltou-se para outras visões e perguntas sobre as volantes, estranhos na cidade, o padre, os bordéis na Rua da Bomba. Arnaldo percebeu, porém, calou-se sorridente.
Judite servia. Terminada a “fartança”, o fartum, Lampião foi “respeitoso”... Nada falou acerca da ausência da dona da casa. Levantou e disse:
Agradeço a pousada. Agora a cambada carece de se diverti e descansá. Os espias continuam de olho nos que não vemo, os de nossa querença e os que não gostamos e vamo procurá. Fique – apontando para o quarto onde estava a menina Odete - com sua família em casa, Cabôco, não se terá o que Deus lhe deu como seu.
Arnaldo gelou. Vá com Deus, concluiu, de forma pálida. Cabeça erguida, entre respeitoso e agradecido, olhava de frente para o admirável cangaceiro. Sua coragem, e ousadia, também o tornavam admirável aos olhos de Lampião. Contudo o Topógrafo temia pela mentira que pregara a Virgulino Ferreira da Silva, terror do Sertão. Será que ele voltaria para vingar-se? Deveria tê-lo mais a sério? Não podia se deixar enganar pelas aparências e conversas longas e arrastadas do Rei do Cangaço. Uma fera travestida de cordeiro.
Queimadas curvara-se ante Lampião. A coragem daquela gente fora esmagada pela brutalidade dos cangaceiros. Homens e mulheres escondiam-se. Na Praça os sete corpos dos policiais assassinados. O Padre procurara Lampião para dizer que iria, com alguns homens, recolher os homens mortos. Lampião não o permitiu.
- Macaco não é homem, sinhô bispo. Deixa lá.
- Mas, Capitão.
- Sem mais sinhô bispo. Vorte – agora – para sua igreja. E não se dê guarida a meus inimigos ou terei de ir lá, o que não carece se o padre ouvir o dito.
O Padre obedeceu. Restava-lhe rezar. Foi o que fez.
No bordel, o bando bebia e dançava. Distribuía parte do dinheiro tomado da gente rica de Queimadas e do comércio local, deste apurando quase 800$000 contos de réis, com as mulheres, que prazerosas se submetiam às suas exigências. Não havia outros homens, só os bandoleiros faziam a festa. Nos arredores, longe de Lampião, os cangaceiros mataram, roubaram e estupraram. Tomavam as mulheres de seus companheiros e as levavam para o mato. Ouviam-se gritos e choro...Algumas emitiam risos abafados...Lampião com seus achegados foi ao cinema, depois promoveu um baile com parte da sociedade presente.
Pela madrugada decidira partir. Como de costume não demorava, não podia, era perigoso, propiciava armadilha, cerco, possível extermínio do bando e sua morte. A ordem para sair da cidade fora rapidamente transmitida. Todos deixavam seus afazeres, os mais íntimos que fossem, para obedecer aquele homem tenaz, de força e personalidade consideráveis. Era chefe, que temido, mandava e não tolerava réplica, e líder, respeitado, que atraía e era seguido.
O Dr. Arnaldo Sampaio, em casa como recomendara Lampião, ouviu alguém bater suavemente na porta lateral de sua casa, depois sussurrar o seu nome - Sinhô Sampaio. Temeu um retorno de Lampião. Ele descobrira e vinha acertar contas. Olhou por uma fresta. Era Volta Seca. Escondeu sua arma entre as almofadas do sofá, onde esperava sentar-se para qualquer conversa. Abriu a porta devagar. Volta Seca entrou manso, cheio de manhas e disse:
- Vim buscar uma cousa que vosmicê tem e quero para eu.
Arnaldo Sampaio estremeceu, pensou em sua mulher, seu olhar – sem conseguir evitar – dirigiu-se para o sofá.
- O que é Volta Seca?
- Adepois a gente se fala, dotô. Vamo lá pá dento.
E foram, sem que o malvado cangaceiro se definisse.
- O amigo deseja alguma comida ou bebida? Alguma coisa?
- Não, nada disso meu dotô.
- Então, o que é homem? Diga.
- Carma dotô. Vamo mais pá dento.
Volta Seca, homem acostumado a roubar, estava escabreado, talvez temesse a Lampião pela promessa feita. Conduziu, aos poucos, Arnaldo Sampaio para os fundos da casa. Odete, que estava com sua mãe, iniciou um grito – pai – abafado com violência.
Volta Seca não esclarecia sua pretensão. Na verdade procurava jeito de falar sem ser escutado por terceiros. E foram para o enorme quintal, onde se viam umbuzeiro, pinheiras, um pé de “siriguela”, outras árvores menores, palmas, um limoeiro raquítico. Não percebeu um vulto de mulher escondido atrás da porta de pequeno quarto. Tinha um machado levantado. Era Judite que o portava para defender o patrão se Volta Seca o atingisse.
*****
Força, coragem e lealdade eram constantes naquelas paragens do Sertão. Um povo forte, de aparente indolência, rápido e resoluto naquilo considerado moral, religioso, imprescindível. Euclides da Cunha, em os Sertões, descreve esse povo sertanejo de insuperável modo.
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Esperava-se o pior. Volta Seca não dizia o que desejava. Seria tão grave ou difícil o atendimento? Novamente, pensou na bela esposa. Os pelos de seu corpo eriçaram. Gélido, volveu os olhos procurando algo para oferecer resistência ou possibilitar fuga. Morrer não estava em seus planos. Tampouco perder a mulher ou as filhas. Deveria lutar. A cabeça latejava. O suor escorria-lhe pelo rosto. O medo tomara-lhe o corpo. Arnaldo Sampaio preparava-se para atacar.
- Dr., vosmicê não leve a má minha vaidade, mas careço daquele seu chapéu de couro, de beiras grande, que o sinhô estava. É pra molde aparar o Sol, que mui castiga nesse Sertão.
Arnaldo Sampaio respirou fundo. Nervoso, disse:
- Por que você não falou logo homem? O chapéu é do amigo com maior prazer.
- Judite – oi senhor - traga meu chapéu de couro de abas largas que quero dar de presente ao amigo que nos visita.
Judite, às pressas, trouxe o chapéu, comprado em Salvador. Chapéu de luxo, forrado. Mas, não coube na cabeça do cangaceiro. Rápido, o topógrafo, buscou forrar a cobertura ambicionada pelo malfeitor, adaptando-a – o quanto podia - para uso do pedinte.
Volta Seca - o menino-homem, homem-menino - sorria. O chapéu quase cobrindo suas sobrancelhas tornava-o ridículo, hilário. Uma figura suja, fedorenta, trajes maltratados, ostentava chapéu importado, com uma estrela de prata que reluzia, próprio para ricos estancieiros do país. - Inté dotô, fico as ordes -. Orgulhoso, saiu da casa de Arnaldo Sampaio, que não conseguira dormir. A noite fria aproximara o casal. A jovem esposa tremia e chorava baixinho. Lembrava-se das filhas e de si. Acariciou o rosto do esposo, que, úmido, denunciava silenciosas lágrimas. Mais sofreu, enternecida porém.
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Lampião e seu bando dirigiram-se para uma fazenda ao sul da Cidade. Bêbados logo adormeceram.
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Vindos do extremo norte da Região, entrava em Queimadas uma volante com 40 homens. Arnaldo Sampaio logo se dirigiu ao seu comandante, informando a posição dos cangaceiros.
Era preciso dar um fim naquela situação – pensava -,, exterminar Lampião, impedir suas matanças, seus hediondos crimes. Trazer paz ao Sertão.
- Se vocês forem rápidos encontrarão todos cheios da cachaça, provavelmente dormindo.
- Estamos muito cansados, chefe. Com fome. Não temos condição de ir, decidiu o militar.
Não adiantaram insistências.
Deitaram a beber e a comer. Em seguida, foram para a Rua da Bomba, para os bordéis, onde dormiram.
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No outro dia, o Rei do Cangaço – intocado, com alforges e bolsos cheios, instintos satisfeitos - deixava Santo Antônio das Queimadas. Madrugada, quatro (4) horas. Alguns bandoleiros ainda entorpecidos pelo álcool. Cantavam:
“Olé muié rendeira,
Olé muié rendá,
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá...”.
... Lampião desceu a serra
Deu um baile em Cajazeiras
Botou as moças donzelas
Prá cantar muié rendeira...”
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Uma dramaticidade incontida. Cuja compreensão se situava além da realidade palpável, pensada, admitida. Coisas da vida. Personalidades mutiladas, mutilando. Homens transformados ou nascidos nas condições que se apresentavam – bandidos -. Células do que ainda somos.
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O Governo não considerou a atitude de Arnaldo Sampaio que se arriscara para defender os trinta (30) mil contos de reis do Estado. Obrigaram-no a pagar os dois (2) mil que entregara a Lampião, com desconto mensal em folha de pagamento.
Um ano depois recebia uma ordem que o fez relembrar com intensidade o passado: Deveria transferir-se para o interior de Pernambuco, estado natal do Cangaceiro Maior. Rebelou-se, Não submeteria sua família a outro qualquer perigo. Sem contemplação a IFOCS/DNOCS o demitiu por insubordinação. O valente Topógrafo que defendera o pagamento de seus trabalhadores, servidores públicos, colocando em risco sua vida, a da esposa e de suas filhas viu-se demitido, sumariamente. Desempregado, por dois longos e sofridos anos, submeteu-se a privações de ordem vária. Sofreu o afastamento de amigos e de parentes, suas maledicências. Constrangido deixou o Estado da Bahia.
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Itiúba/BA - 20 Itiúba – 2012
Hoje, 2012, a menina Odete Sampaio, 98 anos, artista plástica, lúcida, bela, olhos azuis, cabelos prateados, falante, conta- nos essa história, transformada em estória, entremeada de realidade e ficção. Hildacy Machado, minha mulher, falou-me de sua terra, Itiúba, dessas estórias e de sua mãe – falecida - Hilda Dias de Araújo, de mesmos valores e sentimentos, pois contemporânea nesse episódio de nuanças reais, que o autor, por licenciosidade autorizada, usou como protagonista.
Geraldo Leony Machado, advogado, jornalista, escreveu Amálgama, prosa poético-filosófica, participou de Cinco Contista da Bahia, prefácio de Wilson Lins, e de Contos que a Bahia Conta, com lançamentos na ABI, RJ, e na Academia de Letras de Minas Gerais, BH, todos pela Editoração Cepa, órgão integrante do movimento cultural CEPA, Salvador, Bahia, Brasil. Av. Tancredo Neves, 1632, Ed. Salvador Trade Center, Torre Sul, Salas 806/8 – Tel. 3272.1642. E-mail: glmachado@bol.com
Alguns dados foram extraídos do Jornal A Tarde, edição de 14.12.1977, reportagem de Oleone Coelho Fontes.
Geraldo, deu muito trabalho para quem é iniciante. Postei seu seu livro.
ResponderEliminarEspero, que tenha coragem, para postar no seu Blogger. E muitos que já escreveu.
Deus acima da nossa vontade para aprender!