Dez dos melhores poemas do “cineasta das palavras”
By albertocmelo
Foi Bruno Tolentino quem primeiro nomeou Alberto da Cunha Melo “cineasta das palavras”, no posfácio da coletânea Dois caminhos e uma oração (2003) e a expressão refere-se ao modo denso e especial de Alberto construir uma poesia não apenas rica em imagens mas repleta de cenas, ação, talvez pelo uso prioritário do verbo. Em 1989, em Poemas Anteriores, o prefácio – “O imagismo e a fabulação na poesia de Alberto da Cunha Melo” – aproxima-se do “cineasta das palavras” ao apontar o efeito encantatório da sucessão de imagens sensoriais encadeadas engendrando uma ação continua rumo à fabulação. É Isabel de Andrade Moliterno, na dissertação (USP/2008) “Imagens, reverberações na poesia de Alberto da Cunha Melo: uma leitura estilística”, quem dá tônus acadêmico a esse breve prefácio, cuja percepção estava apenas esboçada.
Alberto em longa entrevista digital publicada em 2005 pela Cronos: Revista de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN, v. 5/6, n. 1/2. Natal: EDUFRN, 2000, p. 317-33, jan./dez., 2004/2005, reponde assim a uma pergunta de Martim Vasques da Cunha sobre o livro Yacala: “Agradou-me você chamar aquele poema de dramático. Na verdade, essa dimensão da obra alia-se a uma característica ímpar da literatura ocidental, segundo Earl Miner, em sua Poética Comparada, a de ser a única poética do mundo originária do drama e não do gênero lírico, como as demais. No entanto, acredito que ele seja uma fusão dos três gêneros, do lírico, do narrativo e do dramático, talvez porque tenha sido escrito como um roteiro cinematográfico” .
Há 25 anos: foto do primeiro encontro de Alberto da Cunha Mela e Bruno Tolentino. Residência do poeta em Olinda. Leem o livro “Poemas anteriores”, que, hoje, completa 30 anos da sua publicação (1989)
Embora o “cineasta das palavras” encontre-se em todas as fases de sua poesia, a seleção de poemas a seguir atem-se à fase primeira de Alberto da Cunha Melo, a dos poemas estelares – cinco quartetos (raros em quatro quartetos) em versos otossilábicos – comemorando 25 anos (1994) do grande encontro do poeta, pela primeira vez, em sua residência em Olinda, com Bruno Tolentino, que trazia nas mãos a coletânea Poemas Anteriores (1989), à época, o conjunto mais completo dessa fase que só seria publicada integralmente na Poesia completa (Record 2017). Esse encontro está muito bem comentado no artigo de Nelson Patriota, Alberto da Cunha Melo: algumas páginas épicas da história da poesia.
É preciso alertar que, nesta seleção, excetuam-se as consagradas obras de Alberto da Cunha Melo Oração pelo poema (1969) e Yacala (1999) que são essencialmente cinematográficas, inclusive a primeira que faz parte da fase primeira citada. A intenção é mesmo revelar em poemas menos longos o poder encantatório de suas imagens.
Todos os livros e poemas citados nesta página encontram-se :na “Poesia completa”. Editora Record, 2017.
Apesar de Martim Vasques da Cunha, em seu preciso e competente artigo “As tocaias da poesia”, publicado em A poeira da Glória. Uma inesperada história da literatura brasileira, citar apenas poemas da fase da retranca (forma fixa criada por Alberto), para ficar com a tradição do grande encontro, foi selecionado aqui aquele que sutilmente referendado na orelha da Poesia completa: “A partir de agora, esta é a tarefa hercúlea do leitor: o reencontro com um gigante da nossa literatura, que, ao usar o solo como um ‘escudo doloroso‘, transformou, por meio da sua poesia, a queda de todos nós em uma ascensão”. A expressão grifada é parte de um verso do poema “Apedrejamento de Terêncio”, transcrito nesta seleta.
“Ricochete” é o último poema da seleção e foi incluído na conclusão desta introdução aos Dez dos melhores poemas do “cineasta das palavras”, às 00:40h, do dia 5 de dezembro de 2019, ao receber, via FaceBook, da poetisa e ensaísta Nilza Azzi, um link do Jornal Rascunho com a resenha “O olhar reinventado“, de Peron Rios, absolutamente afinizado com o “cineasta das palavras”.
Estes apontamentos não têm intenção outra senão festejar os princípios de uma arte que se quer infinita na sua humana contemporaneidade. Agora é hora de deixar fluir:
Cláudia Cordeiro da Cunha Melo
Dez dos melhores poemas do ‘cineasta da palavra’
UM CARTÃO DE VISITA
Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.
É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.
Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.
APEDREJAMENTO DE TERÊNCIO
Algo no rosto de Terêncio
faz as crianças escalarem
o alto declive. E lá de cima
jogam trinta ou quarenta pedras.
Não há por perto um cajueiro
em que possa escudar-se, e as mãos
(construídas com a mesma carne)
são um escudo doloroso.
Deve, por enquanto, pular
e desviar-se dos maiores
seixos: a figura dançante
de macacão azul-marinho.
Felizmente, apanhou do chão
o livro que trouxera, e vai
colocá-lo diante dos olhos,
para salvar-se uma vez mais.
No dia seguinte, os meninos
não poderão sair de casa:
quanto mais a golpeiam, mais
sentem medo daquela face.
LIMITAÇÃO DE…
Madalena criava cães,
muitos cães, na casa pequena,
edificada num lugar
chamado “Morro dos Relâmpagos”.
Ali não recebia cartas
nem perguntas embaraçosas;
mas todos os cães que fugiam
das cidades a procuravam.
E chegavam como detentos
fugidos das prisões do Sul,
arranhavam todas as portas
e davam voltas nos oitões.
Madalena por fim se abria
com todo amor aos novos hóspedes:
mas sabia cantar, matá-los,
quando o número se elevava.
Era um canto que parecia
um ganir dos céus, de sentenças:
ela começava a cantar
e metade deles morria.
O MATADOURO
Os animais estão morrendo
desde ontem: morrem na cozinha,
na sala, no campo — onde estão,
por falta de imaginação.
A gata, junto ao fogareiro,
é minha irmã que não casou.
Perto do fogo desde a infância
terrível, seus olhos me acusam.
O cão, que dá voltas na sala,
é meu irmão que enlouqueceu
entre as estantes: o menino
que só viu o mar uma vez.
O cavalo, que morde há tempo
a mesma touceira, é meu pai:
que alugou todas as choupanas
de taipa, e não saiu daqui.
Os animais estão morrendo
na cozinha, na luz do campo:
todos penetraram aos gritos
e berros, neste matadouro.
MARILYN MONROE
Enquanto não se volta é bela
e útil aos quatorze fotógrafos,
que há vários dias a perseguem
por avenidas de Los Angeles.
Evita o cerco, se cercando
a si mesma com o próprio pânico;
joga dez cadáveres seus
em volta, e ninguém se aproxima.
A maior arma é a distância
(assegurada pelo medo
na hora precisa despertado,
sem agressão, nos inimigos).
Ao desviar-se dos canteiros
públicos lembram-se de alguém
que comandava as guarnições
dos seus soberbos girassóis.
Lembra-se dele e continua
dando aos fotógrafos seu vulto
louro-azulado, que se perde
dentro das câmeras, queimado.
“UM CORPO QUE CAI”
Tal se tocasse a extremidade
do cabelo de estranha moça
o homem semeado tocou
naquele fio com muito medo.
Segurando-o, pôs-se a puxá-lo
de novelo, como a tirar
uma veia do grande órgão
que emurchecia pouco a pouco
(o coração). Mas preferiu
seguir de costas com seu fio
e contemplar o seu tamanho
e ver extinto o seu começo.
Dava-nos assim esse aspecto
de quem procura levantar
à distância, por trás das casas,
uma pandorga que caíra.
E só ele caíra — o chão
fez-se macio como o ar
e o mais souberam, tão somente,
a carne solta e o sangue em festa.
ZONA DA MATA
Os guardas do canavial
ainda me apontam os rifles
e as balas de açúcar penetram
quentes, no peito da infância.
Infância doce, infância dura,
infância de cana 3X,
a marca pobre que apodrece
a dentadura das crianças.
Talvez não me escutem porque
falo de uma área já morta
ou porque o sol dá um aspecto
festivo ao infortúnio daqui.
Só com as botas-de-sete-léguas
chutaria a bola pesada
e cheia de ventos malignos,
fugiria deste lugar.
Já que não posso consegui-las,
sairei do canavial,
antes que os guardas me farejem
dentro das canas, como os lobos.
O HOMEM DE BORRACHA
Eu batia na minha infância
doze portas atrás de mim,
e o homem de borracha passava
pela brecha da fechadura.
Por todo lado aparecia
o detetive sem chapéu,
e utilizava uma goteira
como a chuva, para alcançar-me.
Caso eu morresse e ele quisesse
um menino já sepultado,
chegaria ao pequeno corpo
por um buraco de formiga.
Ocultava-me e, no verão,
ressurgiam os companheiros
de farda azul, que me chamavam
o tempo inteiro do jardim.
Quando um dia fugi de casa,
como a esperança, ele esticou
o braço fino para mim
e segurou-me no horizonte.
ESTAÇÃO TERMINAL
O céu parece revestido
de uma camada de cimento:
deixo as marquises porque sei
que esta chuva não passará.
Se esperasse um tempo de paz,
nem meu túmulo construiria.
Começo e recomeço a casa
de papelão em pleno inverno.
Um plano, um programa de ação
debaixo de uma árvore em prantos,
e voltar à primeira página
branca e ferida pela pressa.
A poesia já não seduz
a quem mais forte ultrapassou-a,
libertando um pouco de vida
e luz, da corrente de estrelas.
Toda renúncia nos convida
a recomeçar outra busca,
porque algo a inocência perdeu
no chão, para arrastar-se assim.
RICOCHETE
Sabei que o poema saiu
há poucos séculos de mim
e, sob as gaivotas da tarde,
alguém o leu e o amou.
Quem terá sido? − Não importam
o rosto que tenho e o que não tenho
mas a palavra toda cheia
de sua força e sua paz.
Se houve o choro, não me cabe
desculpá-lo em noite nenhuma
e já existia nesse estranho
que há nos outros e me pertence.
E o movimento do vazio
modificando, não fui eu:
é o vento que bate em mim
e faz chorar o homem na praça.
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