Autocuidado e florescimento
O cuidado aos membros e o autocuidado não são conceitos
novos. No entanto, um debate mais recente, que ganhou força durante a pandemia
da COVID, é como unir as duas coisas. Neste artigo vamos refletir sobre
autocuidado e cuidado aos membros, e analisar algumas das resistências ao
autocuidado e de que maneira podemos promover melhores práticas de autocuidado
entre os missionários.
Definição de “cuidado aos membros”
A GMCN – Global Member Care Network [Rede global de cuidado
aos membros] define o conceito da seguinte forma: “O cuidado aos membros
implica preparar, equipar e capacitar continuamente os obreiros para que sua
vida, seu ministério e seu trabalho sejam eficazes e sustentáveis”.1 O debate
em andamento é se o termo é bom o bastante para abranger a extensão da prática.
Sabe-se que algumas organizações missionárias usam o termo “cuidado integral do
missionário”, ou mesmo “cuidado e bem-estar da equipe” em lugar de “cuidado aos
membros”. Uma pesquisa informal, realizada em 2021 entre os mais de mil membros
do grupo da GMCN no Facebook, revelou que, embora o termo “cuidados aos
membros” não seja ideal, não houve consenso em relação a uma escolha preferida.
Seja qual for a terminologia que as organizações missionárias escolham adotar,
os elementos-chave são os cuidados e os recursos oferecidos a um missionário
que lhe permitam prosperar.
Definição de “autocuidado”
A Organização Mundial da Saúde define autocuidado como “a
capacidade de indivíduos, famílias e comunidades de prevenir doenças, promover
e preservar a saúde, e de lidar com enfermidades e deficiências com ou sem o
apoio de um profissional de saúde”. Vamos falar apenas do autocuidado de um
indivíduo. É o que uma pessoa faz por si mesma para permitir que tenha mente,
corpo e espírito suficientemente saudáveis para desempenhar as funções que lhe
são exigidas. Nairy Ohanian vai um pouco além: “O autocuidado garante que a
pessoa prospere e floresça, e não apenas que sobreviva e enfrente a situação. O
autocuidado é o sistema invisível de raízes profundas, nutridas e em expansão
de uma árvore forte, resiliente e frutífera”.2 Esta imagem é muito útil se
considerarmos que o autocuidado não é uma solução fácil, mas exige raízes,
tempo e nutrição regular. Definidos os termos, exploraremos agora a crescente
conscientização sobre a importância do autocuidado observada durante e após a
pandemia de COVID.
O autocuidado e o legado da pandemia
O autocuidado passou a ser um conceito mais discutido
durante a recente pandemia da COVID. Foram publicados muitos artigos sobre as
formas pelas quais as pessoas poderiam cuidar de si mesmas e garantir que os
confinamentos e as más notícias de todo o mundo não afetassem negativamente sua
saúde física e mental.3
O aumento do foco no autocuidado durante a pandemia
deveu-se, em parte, à indisponibilidade de outros locais onde as pessoas
pudessem receber apoio e assistência, e ao aumento de tempo livre que passaram
a ter, consequência da falta de necessidade de viajar ou deslocar-se até o trabalho.
Um estudo realizado em 2021 revelou que, apesar do significativo risco de
ansiedade e depressão, 39% dos participantes iniciaram ou intensificaram suas
medidas de autocuidado e 23% começaram a investir no autocuidado.4
Consolidou-se, portanto, na linguagem comum, a discussão
sobre o autocuidado e suas práticas. Vejamos agora a relação entre o
autocuidado e o cuidado aos membros.
Modelos de cuidado aos membros e a inclusão do autocuidado
Encontramos na literatura vários modelos de cuidados aos membros,
entre eles o SPARE-O5,de Dodds e Dodds, e a Pirâmide de Cuidados de Harry
Hoffmann6 (desenvolvida com base no
Christian Wholeness Framework, de Warlow). No entanto, a maioria destes não
menciona especificamente o autocuidado e dá pouca ênfase às ações do próprio
indivíduo, destacando, em vez disso, o cuidado e o apoio oferecidos ao
indivíduo pelas pessoas e pelos sistemas que o cercam. Talvez o modelo mais
conhecido que menciona o autocuidado seja o de Kelly O’Donnell e Dave Pollock,
ilustrado no diagrama abaixo.7
Cada uma das 5 esferas é permeável e o cuidado pode fluir
entre elas. Estão incluídas as fontes de cuidado aos membros, por exemplo, quem
envia – igreja ou organização missionária – assim como os tipos de cuidado, por
exemplo, família e TCKs (Crianças de terceira cultura). No centro do modelo
está o Master Care [Cuidado principal], reconhecendo que Deus é a fonte
principal de cuidado, é quem nos fortalece. E é ele a quem servimos.
A segunda esfera inclui o cuidado mútuo (das relações que
nos cercam) e o autocuidado. Ocorre assim a união dos dois conceitos: o cuidado
aos membros e o autocuidado. Depois de lecionar vários anos sobre o tema do
cuidado aos membros, posso afirmar que um dos pontos fracos desse modelo é o
fato de o autocuidado não ocupar uma esfera própria. Associado ao cuidado
mútuo, o conceito se dilui e não recebe a atenção que merece. Em vez de
encorajar os missionários a assumir alguma responsabilidade por si próprios e
pelo seu bem-estar, esse vínculo reforça a mentalidade de que o cuidado aos
membros é algo a ser apenas recebido. Tende a concentrar-se no que os outros
podem oferecer. Isso nos leva a refletir por que a ideia do autocuidado na obra
missionária pode encontrar uma reação negativa.
Resistência ao autocuidado
Conduzi recentemente um retiro e alguns webinars sobre o
tema do autocuidado. Embora muitos estivessem interessados em aprender como
aprimorar-se nessa área, o tema despertou uma série de perguntas e comentários:
“O autocuidado não é egoísta?” “Já sou
muito ocupado, não tenho tempo para cuidar de mim mesmo”. “O autocuidado é o
oposto de viver pela fé”. “Somos chamados para ser sacrifícios vivos, por isso
o autocuidado não pode ser bíblico”.
Em Romanos 12.1 (NVI) Paulo diz: “Portanto, irmãos,
rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo
e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês”. Esse versículo é usado
para argumentar que, em vez de demonstrar cuidado conosco mesmos, deveríamos
oferecer nossas vidas como sacrifício a Deus.
O tema do sacrifício e a forma como os missionários
enfrentam as difíceis questões de risco e sofrimento estão bem documentados8 e,
de fato, nas minhas aulas de Mestrado em Cuidados aos Membros e em Cuidados e
Bem-Estar da Equipe no Redcliffe College e no All Nations Christian College,
respectivamente, tenho enfatizado a necessidade de que os novos missionários
desenvolvam sua própria teologia de sofrimento e risco antes de partirem para o
campo. As histórias e imagens de mártires cristãos têm um papel importante na
obra missionária cristã, mas também podem produzir a teologia distorcida de que
“é melhor queimar do que enferrujar”. Além da consideração do risco, precisamos
reconhecer que o apelo para demonstrar de forma consistente o que Eugene
Peterson chama de “longa obediência na mesma direção”9 pode ser um chamado com
um alto preço.
A teologia do autocuidado
Na direção contrária à ideia de que o autocuidado é uma
mentalidade egoísta, que se opõe diretamente ao modo de vida sacrificial,
afirmo que o autocuidado é uma ferramenta importante no kit de ferramentas do
missionário. Em João 7.37, Jesus convida aqueles que têm sede para que venham
até ele e bebam. Essa não é uma atitude passiva, mas requer ação da parte de
quem tem sede. No primeiro capítulo de João, em outro convite, Jesus diz aos
discípulos: “Venham e verão”. É provável que o texto bíblico mais prezado pelo
profissional de cuidados aos membros seja Mateus 11.28-30 (MSG): “Vocês estão
cansados, enfastiados de religião? Venham a mim! Andem comigo e irão recuperar
a vida. Vou ensiná-los a ter descanso verdadeiro. Caminhem e trabalhem comigo!
Observem como eu faço! Aprendam os ritmos livres da graça! Não vou impor a
vocês nada que seja muito pesado ou complicado demais. Sejam meus companheiros
e aprenderão a viver com liberdade e leveza”. Para mim, esse é um convite para
cuidar de si mesmo, aproximando-se de Deus.
O exemplo bíblico mais óbvio de autocuidado seria o do
próprio Jesus, que dedicava tempo a si mesmo e encorajava seus discípulos a
descansar e orar em meio a uma vida de autossacrifício (Mt 14.13; Mc 6.30-32).
Como afirma Ohanian: “O autocuidado não é egoísta nem egocêntrico, mas uma
prática sábia, preventiva e de respeito próprio para qualquer pessoa que deseje
continuar desempenhando seu papel de cuidar e servir”.10
A sinergia entre o cuidado aos membros e o autocuidado
No mundo missionário, confundimos com demasiada frequência
“esgotamento” – ou burnout – com “o auge do serviço a Deus”. Vemos o
esgotamento como uma medalha de honra. No entanto, um serviço eficaz não pode
ser prestado por corpo, mente ou alma fatigados e debilitados. Devemos nos esforçar para ajudar o missionário
a servir com qualidade e fidelidade, sem que o esgotamento o impeça de fazê-lo.
Há um caminho de volta ao serviço saudável, mas ele pode ser longo e difícil,
por isso é muito melhor prevenir o esgotamento do que remediá-lo.
O cuidado aos membros é multifacetado, e há muitas maneiras
preventivas e curativas pelas quais um profissional pode oferecer apoio aos
missionários assistidos por ele. Uma ferramenta preventiva essencial que
recomendamos é a prática do autocuidado. Deveria ser algo inegociável.
Como podemos viabilizar o autocuidado em outras pessoas?
Existem aspectos espirituais, físicos, emocionais, cognitivos/criativos e
sociais/sistêmicos que podemos encorajar.11 Os exemplos são numerosos e
variados. No aspecto físico, podemos estimular a atenção ao sono suficiente e
de boa qualidade, à alimentação saudável, à prática mais frequente de
exercícios físicos e à consulta médica caso, por exemplo, os sintomas do
estresse sejam evidentes. O novo campo da neurociência ambiental já provou que
o contato com a natureza é essencial para nosso cérebro.12 Ambientes verdes
(com vegetação) e azuis (água em movimento) podem estar associados à redução do
stress, mas acredita-se que a exposição ao ar livre também beneficie a função
cognitiva. A natureza ativa o nosso estado de “descanso”, que estimula a calma
e o bem-estar. Padrões fractais (padrões que ocorrem naturalmente, como as
folhas de uma suculenta ou um floco de neve) também têm efeito positivo em
nosso cérebro. Portanto, simplesmente incentivar um missionário a fazer uma
breve caminhada na natureza13 seria uma excelente maneira de ajudá-lo no
autocuidado.
Conclusão
O despertamento generalizado em relação ao autocuidado que
ocorreu durante a pandemia evidenciou o poder e o potencial da responsabilidade
pessoal pelo bem-estar. Os que atuam na área de cuidados aos membros podem
tirar proveito desse aprendizado revisitando o equilíbrio entre a
responsabilidade pessoal e a intervenção externa no cuidado missionário. É
preciso haver um elemento teológico, sociológico e prático para reconhecer que
o autocuidado relevante não é uma prática egoísta, mas uma parte essencial do
kit de ferramentas de um missionário e deve ser encorajado pelo profissional da
área de cuidados aos membros.
Notas
[1] The
Global Member Care Network Member Care Definition
[2] Self-care
interventions for health
[3] Nairy
Ohanian, Self-Care
[4]
Self-care tips during the COVID-19 pandemic
[5] Impact
of COVID-19 on patient health and self-care practices: a mixed-methods survey
with German patients
[6] Lois
Dodds & Lawrence Dodds, Selection, Training, Member Care and Professional
Ethics: Choosing the Right People and Caring for Them with Integrity (
Liverpool, PA: Heartstream Resources, 1997).
[7] Harry
Hoffmann, ‘Connecting and Resourcing Member Care Practitioners Worldwide: The
Global Member Care Network’, Evangelical Missions Quarterly, 56(1), 2020.
[8] Doing
member care well: Perspectives and Practices From Around the World
[9] Anna E.
Hampton, Facing Danger: A Guide Through Risk (New Prague MN: Zendagi Press,
2016). Charles A. Schaeffer and Frauke C. Schaeffer, Trauma and Resilience, A
Handbook (Chapel Hill, NC: Frauke C. Schaefer, MD, Inc: 2016).
[10] Eugene
Peterson, A Long Obedience in the Same Direction (US: Inter-Varsity Press,
2000).
[11]
Ohanian, Self-Care
[12] See
the SPECS model outlined by Hawker and Horsfall in Tony Horsfall and Debbie
Hawker, Resilience in Life and Faith: Finding your strength in God (Abingdon:
The Bible Reading Fellowship, 2019).
[13] Sam
Pyrah, The nature cure: how time outdoors transforms our memory, imagination
and logic
Sarah Hay (certificada como MCIPD) é gestora de RH e de
Cuidados aos Membros na European Christian Mission Britain, palestrante
convidada (e ex-colíder) do mestrado em Cuidados e Bem-Estar da Equipe no All
Nations Christian College e ex-líder do curso de Mestrado em Cuidados aos
Membros, no Redcliffe College.
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