domingo, 13 de julho de 2025

O LIVRO DE JÓ

 

A relevância do Livro de Jó para psicologia clínica e aconselhamento bíblico do sofrimento ressentido contra Deus

 

Um espelho inusitado, uma rara oportunidade de se enxergar a si mesmo por um ângulo novo, profundo, insuspeito

 

Por Fernando Capovilla

 

Há cerca de uma década, criei, na Universidade de São Paulo (USP), a disciplina "Leitura terapêutica". O propósito era levar os estudantes a conhecer grandes clássicos da literatura universal, da filosofia (cobrindo a antiguidade clássica, a idade média, a idade moderna, a contemporaneidade, do ocidente e do oriente) e da psicologia, com ênfase no teor terapêutico para a cura das dores da alma, a busca da felicidade, e do sentido da vida, frente a crises e reveses, perdas e luto. Estudamos com igual afinco, o estoicismo greco-romano (Marco Aurélio, Sêneca, Epicteto, Boécio), que é a base da psicoterapia racional emotiva, bem como boa parte da literatura filosófica, teológica, e secular, do oriente e do ocidente. Estudamos Buda, Confúcio, A Bíblia Hebraica, a Bíblia Sagrada, Bagavadeguitá, e diversas outras fontes. Sempre em diálogo respeitoso, amistoso, e inclusivo com colegas pensadores ateus e agnósticos, teístas, judeus, cristãos, muçulmanos, e pessoas das mais variadas fés.

 

No final do ano passado, o amigo cristão Ageu Lisboa me convidou a escrever um capítulo sobre a Bíblia e a psique. Depois de semanas de meditação profunda, me pus a escrever sobre aquilo que considero mais importante, as lições mais profundas do texto bíblico mais antigo, que é um verdadeiro tratado sobre o atroz sofrimento da alma, o conflito doloroso e espantado com Deus em meio à tragédia devastadora da doença terrível, miséria completa, humilhação vergonhosa, e morte de todos os filhos, e sensação de perseguição impiedosa: o Livro de Jó.

 

Este, que é mais antigo livro sobre aconselhamento, descreve detalhadamente dois estilos antagônicos de aconselhamento: um que culmina no fracasso e na ruptura da relação terapêutica, e outro que culmina em insight, iluminação, e profunda mudança de alma, atitude, sentimentos, comportamento, e na completa restauração e cura.

 

O capítulo original é intitulado: "A relevância do Livro de Jó para psicologia clínica e aconselhamento bíblico do sofrimento ressentido contra Deus: Do terrorismo teopsicológico, que causa perturbação mental iatrogênica, à eleoterapia e teopsicagogia aplicada: o caminho de anagnórise e esvaziamento de si, epifania, arrependimento e metanoia, confissão, perdão, restauração, metamorfose, serenidade e paz."

 

Neste capítulo, comparo a estrutura da Tragédia Greco-Romana (como em Édipo Rei, de Sófocles) e a estrutura do livro de Jó. Mais precisamente, da tragédia grega de Aristóteles (384-322 a.C.), em sua obra Sobre a Arte Poética (Aristóteles, 1920, 2011) ou seja, Poetics (do grego: Περὶ ποιητικῆς : Peri poietikês; do latim: De Poetica, publicada originalmente em cerca de 335 a.C.); bem como nas obras de Aurélio (2019), Boécio (2023), Epictetus (1531, 1765, 1877, 1890, 2013), Homero (2018), Sêneca (1671, 1761, 2006, 2020) e Virgílio (2019), dentre outros.

 

No capítulo, mostro como o Livro de Jó é a antitragédia greco-romana. Nessa comparação, faço a justaposição entre os termos greco-romanos do teatro secular, e os termos das escrituras sagradas, mostrando como as duas grandes tradições compreendem, explicam e lidam com o sofrimento. Falo de catarse, anagnórise, culpa, castigo, arrependimento, redenção, perdição e de uma centena de conceitos preciosos para a compreensão da psique.

 

A questão do sofrimento intenso é central ao aconselhamento terapêutico. As reações ao sofrimento estão em relação de dependência direta com o sistema de crenças, da estrutura de conceitos própria à teoria de mundo e de mente, que inclui diversos nodos cruciais, como o modelo conceitual de justiça (retributiva x restaurativa) inconscientemente abraçado pelo paciente e que pode ser trazido à tona para exame da consciência. O capítulo é uma viagem às profundezas da psique – nos fundos do vale da dor a um passo do despencar na perdição do desespero e da descoberta da salvação, restauração e paz – iluminadas pelas confluências entre as tradições literária, filosófica, psicológica, e teológica.

 

De crucial importância também ao aconselhamento clínico de pacientes terminais de diferentes fés, nosso capítulo analisa os conceitos de Eleoterapia e Teopsicagogia para assistir ao paciente em seu passamento em paz serena consciente, a salvo de sofrimento e tribulação e desespero, a derradeira encruzilhada entre dois tipos de morte. O capítulo sustenta que o Livro de Jó documenta o primeiro caso de iatrogenia decorrente do mau aconselhamento, e constitui um chamado à consciência sobre o risco de terrorismo teopsicológico infligido por conselheiros eclesiásticos ou leigos com formação deficiente e índole inclemente.

 

O capítulo almeja abrir áreas de fronteira para o aconselhamento psicológico sensível e compassivo de pacientes que enfrentam sofrimento perturbador diante de perdas catastróficas em suas vidas. E, ao fazê-lo, busca iluminar os meandros e revelar os riscos desse aconselhamento tão necessário àqueles confrontados com a aproximação da morte iminente: a de si mesmos e/ou a de seus entes mais amados. Literatura oportuna no presente tempo, entre as memórias recentes das perdas pós-Covid e os rumores da terceira guerra derradeira. Sabemos bem o que é viver nestes tempos, não é mesmo? O presente capítulo é um espelho inusitado, uma rara oportunidade de se enxergar a si mesmo por um ângulo novo, profundo, insuspeito. Uma reflexão profunda sobre a própria alma entre o portal para o jardim secreto interior e o inadvertido e iminente despencar no desfiladeiro.

 

Gostaria de convidá-lo a conhecer esse capítulo. Ele é só uma amostra do livro a ser publicado, em que nível e prumo, oriente e norte são retomados, para que se possa comparar os modelos à própria experiência e examinar por si mesmo os sentidos, as figuras e o fundo, e descobrir o que está de cabeça para cima, recuperar o rumo, o prumo e o equilíbrio. E passar a conter vazamento existencial e ver crescer elã vital, quando o sofrimento já cumpriu seu papel, e deixa de ser necessário.

 

Fernando Capovilla, professor titular - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, Livre docente em neuropsicologia clínica. Autor de 120 livros publicados e de centenas de artigos em desenvolvimento e distúrbios de linguagem oral, escrita e de sinais.

Texto publicado originalmente no perfil do autor no Facebook em 02/06/2025.


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