A relevância do Livro de Jó para psicologia clínica e
aconselhamento bíblico do sofrimento ressentido contra Deus
Um espelho inusitado, uma rara oportunidade de se enxergar a
si mesmo por um ângulo novo, profundo, insuspeito
Por Fernando Capovilla
Há cerca de uma década, criei, na Universidade de São Paulo
(USP), a disciplina "Leitura terapêutica". O propósito era levar os
estudantes a conhecer grandes clássicos da literatura universal, da filosofia
(cobrindo a antiguidade clássica, a idade média, a idade moderna, a
contemporaneidade, do ocidente e do oriente) e da psicologia, com ênfase no
teor terapêutico para a cura das dores da alma, a busca da felicidade, e do
sentido da vida, frente a crises e reveses, perdas e luto. Estudamos com igual
afinco, o estoicismo greco-romano (Marco Aurélio, Sêneca, Epicteto, Boécio),
que é a base da psicoterapia racional emotiva, bem como boa parte da literatura
filosófica, teológica, e secular, do oriente e do ocidente. Estudamos Buda,
Confúcio, A Bíblia Hebraica, a Bíblia Sagrada, Bagavadeguitá, e diversas outras
fontes. Sempre em diálogo respeitoso, amistoso, e inclusivo com colegas
pensadores ateus e agnósticos, teístas, judeus, cristãos, muçulmanos, e pessoas
das mais variadas fés.
No final do ano passado, o amigo cristão Ageu Lisboa me
convidou a escrever um capítulo sobre a Bíblia e a psique. Depois de semanas de
meditação profunda, me pus a escrever sobre aquilo que considero mais
importante, as lições mais profundas do texto bíblico mais antigo, que é um verdadeiro
tratado sobre o atroz sofrimento da alma, o conflito doloroso e espantado com
Deus em meio à tragédia devastadora da doença terrível, miséria completa,
humilhação vergonhosa, e morte de todos os filhos, e sensação de perseguição
impiedosa: o Livro de Jó.
Este, que é mais antigo livro sobre aconselhamento, descreve
detalhadamente dois estilos antagônicos de aconselhamento: um que culmina no
fracasso e na ruptura da relação terapêutica, e outro que culmina em insight,
iluminação, e profunda mudança de alma, atitude, sentimentos, comportamento, e
na completa restauração e cura.
O capítulo original é intitulado: "A relevância do
Livro de Jó para psicologia clínica e aconselhamento bíblico do sofrimento
ressentido contra Deus: Do terrorismo teopsicológico, que causa perturbação
mental iatrogênica, à eleoterapia e teopsicagogia aplicada: o caminho de
anagnórise e esvaziamento de si, epifania, arrependimento e metanoia,
confissão, perdão, restauração, metamorfose, serenidade e paz."
Neste capítulo, comparo a estrutura da Tragédia Greco-Romana
(como em Édipo Rei, de Sófocles) e a estrutura do livro de Jó. Mais
precisamente, da tragédia grega de Aristóteles (384-322 a.C.), em sua obra
Sobre a Arte Poética (Aristóteles, 1920, 2011) ou seja, Poetics (do grego: Περὶ
ποιητικῆς : Peri poietikês; do latim: De Poetica, publicada originalmente em
cerca de 335 a.C.); bem como nas obras de Aurélio (2019), Boécio (2023),
Epictetus (1531, 1765, 1877, 1890, 2013), Homero (2018), Sêneca (1671, 1761,
2006, 2020) e Virgílio (2019), dentre outros.
No capítulo, mostro como o Livro de Jó é a antitragédia
greco-romana. Nessa comparação, faço a justaposição entre os termos
greco-romanos do teatro secular, e os termos das escrituras sagradas, mostrando
como as duas grandes tradições compreendem, explicam e lidam com o sofrimento.
Falo de catarse, anagnórise, culpa, castigo, arrependimento, redenção, perdição
e de uma centena de conceitos preciosos para a compreensão da psique.
A questão do sofrimento intenso é central ao aconselhamento
terapêutico. As reações ao sofrimento estão em relação de dependência direta
com o sistema de crenças, da estrutura de conceitos própria à teoria de mundo e
de mente, que inclui diversos nodos cruciais, como o modelo conceitual de
justiça (retributiva x restaurativa) inconscientemente abraçado pelo paciente e
que pode ser trazido à tona para exame da consciência. O capítulo é uma viagem
às profundezas da psique – nos fundos do vale da dor a um passo do despencar na
perdição do desespero e da descoberta da salvação, restauração e paz –
iluminadas pelas confluências entre as tradições literária, filosófica,
psicológica, e teológica.
De crucial importância também ao aconselhamento clínico de
pacientes terminais de diferentes fés, nosso capítulo analisa os conceitos de
Eleoterapia e Teopsicagogia para assistir ao paciente em seu passamento em paz
serena consciente, a salvo de sofrimento e tribulação e desespero, a derradeira
encruzilhada entre dois tipos de morte. O capítulo sustenta que o Livro de Jó documenta
o primeiro caso de iatrogenia decorrente do mau aconselhamento, e constitui um
chamado à consciência sobre o risco de terrorismo teopsicológico infligido por
conselheiros eclesiásticos ou leigos com formação deficiente e índole
inclemente.
O capítulo almeja abrir áreas de fronteira para o
aconselhamento psicológico sensível e compassivo de pacientes que enfrentam
sofrimento perturbador diante de perdas catastróficas em suas vidas. E, ao
fazê-lo, busca iluminar os meandros e revelar os riscos desse aconselhamento
tão necessário àqueles confrontados com a aproximação da morte iminente: a de
si mesmos e/ou a de seus entes mais amados. Literatura oportuna no presente
tempo, entre as memórias recentes das perdas pós-Covid e os rumores da terceira
guerra derradeira. Sabemos bem o que é viver nestes tempos, não é mesmo? O
presente capítulo é um espelho inusitado, uma rara oportunidade de se enxergar
a si mesmo por um ângulo novo, profundo, insuspeito. Uma reflexão profunda
sobre a própria alma entre o portal para o jardim secreto interior e o
inadvertido e iminente despencar no desfiladeiro.
Gostaria de convidá-lo a conhecer esse capítulo. Ele é só
uma amostra do livro a ser publicado, em que nível e prumo, oriente e norte são
retomados, para que se possa comparar os modelos à própria experiência e
examinar por si mesmo os sentidos, as figuras e o fundo, e descobrir o que está
de cabeça para cima, recuperar o rumo, o prumo e o equilíbrio. E passar a
conter vazamento existencial e ver crescer elã vital, quando o sofrimento já
cumpriu seu papel, e deixa de ser necessário.
Fernando Capovilla, professor titular - Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, Livre docente em neuropsicologia
clínica. Autor de 120 livros publicados e de centenas de artigos em
desenvolvimento e distúrbios de linguagem oral, escrita e de sinais.
Texto publicado originalmente no perfil do autor no Facebook
em 02/06/2025.
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