Menino Azul
|
DIONÊ MACHADO
|
08/12/1981
|
O MENINO AZUL 1
Sentado numa pedra,
contemplava o mar. Monologava. Sem que percebesse, vindo não sei de onde, surgiu
um menino. Sorria, e me olhava. No início, assustei-me, ele era azul. Uma
criança com uma idade indefinida; seu corpo era de menino, mas seu semblante, e
o olhar eram profundos, claros, serenos, e maduros.
- De onde saiu você
menino, não o vi chegar!
Com
um esboço de sorriso nos lábios, chegou-se mais perto e falou:
- Vim de um lugar
desconhecido para muita gente.
- Que lugar seria esse?
Sei que não conheço muitos lugares, mas pelo menos, já ouvi falar.
- De onde eu vim não
figura nos mapas, não que ele não exista, apenas, é por quase todos
desconhecido. Poucas pessoas terão condições de manter um encontro com algum de
nós. Contudo, um dia talvez cada pessoa tenha oportunidade de encontrar esse
mundo. Não direi de onde vim, cada um saberá por si mesmo.
- Posso então lhe pergunta
por que é azul?
- Você diz que sou azul,
você me vê assim, como vê o mar, o céu...
Minha cor nada mais é que
a condensação etérea do meu ser. Haverá época que me verá branco, rosa ou de
outra cor. Refletirei também sua luz interior.
- Não entendi muito bem;
Que veio fazer aqui?
- Você me chamou.
- Eu, como? Nem sabia da
sua existência, nem sei o seu nome.
- Não tenho nome como
você, nem precisaria gritar-me, pois quando está mais em silêncio é que tenho
oportunidade de surgir.
- Você é um fantasma?
Ele,
abrindo mais o sorriso, balançaram a cabeça negativamente.
- Não, você tem medo de
fantasma?
- Sim, de certa forma.
- Sabe por quê?
Tenho
medo e é o bastante.
- É sempre assim tão
radical? 2
- Tenho idéias já
formadas, sei o que quero.
- Espero que sim... O que
pensava há tanto tempo contemplando o mar?
- Pensava no perigo que
ele representa para as pessoas, nas cidades que pode inundar, nas embarcações
que pode naufragar, na desproporção em relação a quantidade de terras.
- Só isso?
- Só. Dizem que o mar vai
invadir as cidades mais baixas, e isso me preocupa...
- Você nunca pensou no mar
como algo bom? Não vê sua utilidade, sua importância ligando continentes,
servindo de lazer para todas as idades, de terapia para muitos, uma fonte de alimentos
naturais, de sal que tempera sua comida? Todos dos acidentes que nele ocorre,
deve-se ao erro do homem, pela imprudência com sua própria pessoa com o
material usado. Lembra-se dos acidentes com as barcas superlotadas e em mau
estado de conservação? O homem vem procurando modificar a natureza, desrespeitando-a.
- Prefiro um lago tranquilo,
Menino Azul.
- A tranqüilidade
exagerada gera estagnação. O mar precisa das ondas para renovar e purificar-se.
Ele ocupa seu espaço, o homem é que tenta rouba-lo. É justo, que não se
acomode.
- Por que procura sempre
me confundir?
- Tente apenas, olhar
também o outro lado.
- Vou caminhar um pouco,
Menino Azul você virá comigo?
- Claro, se assim
deseja...!
- Veja Menino Azul, aquele
homem cortando todas as árvores daquele jardim. Não é uma pena?
- Cortar não seria bem a
palavra, ele apenas está podando. Dessa maneira, ela terá mais força, e na
próxima estação brotará mais bonita. Novos galhos, maior quantidade de frutos,
mais flores. Que seria dela se o homem como ser superior, não a podasse,
adubasse, procurasse tirar os insetos que a importunam? Por isso é bela e
agrada seus olhos. Sujeitando-se a poda renovar-se-á, e como agradecimento,
doará seus frutos, sua sombra...
- Sabe que você é
engraçado, Menino Azul? 3
- Não, o que em mim é
engraçado?
- Às vezes está de lado
direito outras de esquerdo, você voa?
- Sim, se sentarmos ali
poderemos voar os dois.
- Eu também?
- Claro. Vamos olhar o que
se passa à nossa volta, escape um pouco dos seus limites, logo voltaremos...
- Para onde iremos?
- Qualquer lugar, você
será meu guia.
- Como seu guia? Você terá
que ir á frente para me conduzir, sou mais pesado e nunca voei.
- Está enganado meu amigo;
você já voou tanto quanto eu. A diferença é que eu acredito, e você tem medo,
vive acorrentado a tudo... Um dia voará muito mais alto...
- Voemos então, falei para
o Menino Azul.
Disse-me ele:
- Antes fechemos os olhos,
esqueçamos o tempo e o espaço, liberte-se das preocupação que lhe afligem.
Como um passe de mágica
não estava mais sentados sobre aquela pedra, mas sim, numa área enorme de capim
rasteiro, verde e cheiroso, exatamente como tinha visto em meus sonhos. O
Menino Azul sorria ao meu lado, perguntou-me: - Era esse o lugar que sempre
pensou conhecer e nunca teve oportunidade?
Respondi emocionado:
- Sim, parece um sonho...
Começamos a andar,
admirado, maravilhado. Gozava o prazer daquele momento! Via grande quantidade
de animais pastando, bonitos.
Algo me chamou atenção.
Algum animal deveria estar doente, sentindo dor, estava inquieto num canto. Seu
abdômen dilatado, sua respiração ofegante, nervoso.
- Que teria esse animal,
Menino Azul?
- Não vê que é uma fêmea,
meu rapaz; breve estará aumentando o 4 rebanho
de seu dono.
- Ela vai parir?
- Sim, por isso está
inquieta, mas logo tudo passará e voltará a reunir-se aos outros.
- Será que ela está
sentido muita dor? Coitada!
- Por que coitada, meu
rapaz?
- Enquanto ela sofre aqui,
o boi com certeza pasta por aí tranqüilo sem sentir nada.
Somente agora, pude ver
claramente os dentes do Menino Azul, seu sorriso foi mais largo.
- Meu bom rapaz, já pensou
alguma vez realmente sobre esse assunto?
- Não, mas o que pensa
você?
- Que seria do dono dos
animais se eles não quisessem procriar?
Ao adquirir cada um, o fez
mediante estudo, escolhendo os mais férteis, mais bonitos, puros. Com isso,
pensava no cruzamento entre eles, e consequentemente num aumento de seu
rebanho. Por isso adquiriu tanto pasto, fez plantações, nada deveria faltar ao
seu gado. Seria uma decepção se resolvessem extinguir-se recusando-se a
procriação. Não acha?
- Por certo...
- Esta fêmea sente prazer
com este tipo de dor. Sente-se adulta, completa, realizada. Esse momento nada
representa daqui a alguns instantes. Sua alegria será bem maior que a dor. Não
a esquecerá, mas aventurar-se-á a novas satisfações como essa. Ela é a terra
que fez germinar a semente, através dela, haverá renovação. Isso é mais que
suficiente para engrandecê-la. Que seria do macho sem a fêmea para lhe
completar e eternizá-lo? Ela não é completamente, é princípio... e fim.
Seguimos caminhando sem
nos preocupar com a direção. Gostava da companhia daquele menino sorridente, me
fazia bem.
Ao longe, avistamos uma
casa pequena, humilde. Nos aproximamos. Tudo estava parado, sem vida. O
cachorro magro nem latia, olhou-me e entrou na casa. Ninguém surgiu á porta
para nos receber. Batemos o silêncio me assustava. O Menino Azul continuava tranqüilo. 5
Como ninguém aparecesse, entramos,
não víamos pessoa alguma.
Chegamos a cozinha, ao
quintal, fomos verificar, o único quarto que havia. Empurrávamos a porta,
fiquei gelado, minha vontade era correr, não o fiz por vergonha do Menino Azul.
Ele entrou e chamou-me, pediu que me aproximasse. Eu tinha medo... Diante de
nós um corpo estirado sobre o tablado da cama. Inerte, olhos fechados,
semblante sereno. Ao lado uma vela já apagada. Na cabeceira um crucifixo feito
à facão. Lembrei-me dos grandes enterros dos crucifixos de prata, das coroas,
flores, caixões de luxo, mausoléus de mármore. Comovido, chorei...!
O Menino Azul calado,
olhava-me. Não estava triste, nem chorava. Seu semblante era de ternura,
compreensão, entendimento, tranqüilidade.
Quebrando o silêncio,
falei:
- Morreu sem ninguém. Não
terá por certo nem quem o enterre.
O menino Azul olhou-me com
a mesma serenidade e respondeu-me:
- Ninguém meu amigo, morre
acompanhado; mesmo que seja numa tragédia coletiva. Fisicamente partimos
juntos, mas na verdade iremos sozinhos com nossa bagagem. Assim como viajantes,
que fazem percursos pequenos ou longos. Embora nos encontremos nos hotéis,
pousadas, etc., cada um tem seu itinerário. Após essa viagem, chegaremos ao
nosso destino verdadeiro.
Quanto ao seu corpo,
enterremo-lo, é para isso que estamos aqui...
Após tomarmos todas as
providências necessárias, voltamos novamente a caminhar. Eu calado, pensando...
O Menino Azul, carinhosamente me observando.
Seguimos um bom pedaço,
olhando tudo em volta.
Voltei a interrogá-lo:
- Por que você pensa que
sempre está com a razão?
Ele respondeu calmamente:
- Está enganado amigo, não
penso sempre que estou certo. Sou um procurante como você. O que nos torna
diferentes, é que sempre que você olha para uma questão, se vê um ângulo, eu
contudo, procuro vê os dois. O que venho lhe dizendo não é para ser decorado ou
repetido, mas para ser entendido, complementado, discutido. Aí então, quando
alcançarmos o conhecimento superior, poderemos ser aceitos sem refutação. O que
dissermos será lei. Ainda é muito cedo; nosso caminho é longo...! 6
Nosso diálogo foi
interrompido por gritos, pessoas correndo, estampidos. Assustado, tentei me
esconder.
- Vamos, dizia eu, se
ficar por aí, por certo levará um tiro, e nem saberá de onde partiu...
- Irei junto não por minha
causa, eu não poderia ser atingido por uma bala, sou invisível para eles, mas
para lhe proteger. Procuremos um lugar seguro.
Como a maioria das pessoas
corria para um determinado lugar, seguimos o grupo composto de crianças, velhos
e deficientes.
Por certo, sabiam o melhor
local para nos proteger.
Realmente, ficamos
relativamente bem instalados. Curioso, perguntei:
- Por que teriam
construído lugares para abrigá-los numa situação dessas?
Um rapaz, notando o meu
interesse, respondeu-me: - em todo país civilizado, há abrigos para proteger
sua população...
- Perguntei: e a outra
parte, onde está?
-
Os outros, ou estão manejando as armas nos campos de batalha, ou apertando
botões em salas super equipadas, ou dando ordens de combate. Tudo isso, só
nosso desenvolvimento tecnológico poderia nos proporcionar, caso contrário, nem
existiríamos mais...
Olhei em volta a procura
do Menino Azul e disse-lhe:
- Agora você há de convir
que não tem outro ângulo. Par a humanidade não há salvação. O mundo será do
mais rápido, mesmo que esteja trilhando por caminhos errados. O que me diz?
- Por certo, não sinto
alegria em presenciar, uma guerra, onde pessoas brigam por terras, prestígio,
poder, fanatismo religioso ou racial. Espere contudo, que após todo esse
levante, esse sofrimento, essa matança desenfreada, sobre uns poucos, e que não
esqueçam esse horror tão rapidamente. E dessa vivência negativa, eles, os que
restaram, vejam a luz, que iluminará a nova humanidade. 7
Que sejam poucos, porém
convictos. E como candeeiros ajudem o peregrinar dos novos viandantes...
Ao constatarmos que a luta
tinha terminado, voltamos a caminhar. Deixemos que cada um enterre seus
mortos...
À certa altura, parei e
perguntei ao Menino Azul:
- Para onde iremos agora?
Ele respondeu:
- Não sou eu que o estou
dirigindo, sigo apenas ao seu lado.
- O sol está queimando meu
corpo. Você não sente?
- Não, da sua maneira.
Vamos sentar sob àquela árvore.
Juntos, paramos por um
instante, suava aos pingos, a camisa presa ao corpo, os pés ardiam.
Falei para o Menino Azul:
Esse calor me acaba, seca
as plantações, queima as matas, seca os rios. Dá muito prejuízo.
Entendendo o olhar do
Menino Azul complementei, estou novamente olhando apenas um lado da questão.
Sei que o sol é vida, é luz e calor. Sem ele morreríamos.
O Menino Azul sorrindo,
falou:
- Fico satisfeito com a
observação que fez. Muitos dos problemas que afligem ao homem, ele próprio
poderia amenizar ou resolver se realmente desejasse.
Assim como o sol, a água,
a terra, etc..
Estava cansado, olhava o
Menino Azul, as pálpebras não me obedeciam. Tinha vontade de deitar-me ali na
sombra e dormir. Serpa que ele também tinha sono?
Adivinhando meu propósito,
aproximou-se e me disse: 8
- Tenho que ir. Durma,
deve estar cansado. Caminhamos um bom pedaço, e você não está acostumado.
- Ficou zangado Menino
Azul? O sono me domina.
- Durma, não tenho motivos
para zangar-se com você.
- Não sou boa companhia?
Pergunto demais, não é?
- Gosto de você e das suas
indagações. É um bom sinal. Por isso estou aqui...
- Vou vê-lo outras vezes?
- Evidente que sim, só
depende de você...
- Como assim?
- Pense em mim, dialogue
consigo mesmo, busque encontrar-se, não espere pelos outros, não procure tanto
ser entendido, caminhe, siga em frente com amor e esperança. Quando menos
esperar, estarei caminhando também ao seu lado e você será o meu guia...
E, desapareceu, da mesma
maneira que tinha surgido.
Eu, exausto, dormi ou
acordei, não sei.
PERGUNTAM-ME: 9
- QUEM É O MENINO AZUL?
RESPONDO-LHES
- QUEM SOU EU PARA
DIZÊ-LO?
- MAS, SE AINDA NÃO O
ENCONTRARAM... É UMA PENA...!
08.12..81 DIONÊ MACHADO
Imagens Internet.
Sem comentários:
Enviar um comentário