quarta-feira, 25 de junho de 2014

O MENINO AZUL



 Menino Azul


DIONÊ MACHADO
08/12/1981







O MENINO AZUL                               1



Sentado numa pedra, contemplava o mar. Monologava. Sem que percebesse, vindo não sei de onde, surgiu um menino. Sorria, e me olhava. No início, assustei-me, ele era azul. Uma criança com uma idade indefinida; seu corpo era de menino, mas seu semblante, e o olhar eram profundos, claros, serenos, e maduros.
- De onde saiu você menino, não o vi chegar!
            Com um esboço de sorriso nos lábios, chegou-se mais perto e falou:
- Vim de um lugar desconhecido para muita gente.
- Que lugar seria esse? Sei que não conheço muitos lugares, mas pelo menos, já ouvi falar.
- De onde eu vim não figura nos mapas, não que ele não exista, apenas, é por quase todos desconhecido. Poucas pessoas terão condições de manter um encontro com algum de nós. Contudo, um dia talvez cada pessoa tenha oportunidade de encontrar esse mundo. Não direi de onde vim, cada um saberá por si mesmo.
- Posso então lhe pergunta por que é azul?
- Você diz que sou azul, você me vê assim, como vê o mar, o céu...
Minha cor nada mais é que a condensação etérea do meu ser. Haverá época que me verá branco, rosa ou de outra cor. Refletirei também sua luz interior.
- Não entendi muito bem; Que veio fazer aqui?
- Você me chamou.
- Eu, como? Nem sabia da sua existência, nem sei o seu nome.
- Não tenho nome como você, nem precisaria gritar-me, pois quando está mais em silêncio é que tenho oportunidade de surgir.
- Você é um fantasma?
            Ele, abrindo mais o sorriso, balançaram a cabeça negativamente.
- Não, você tem medo de fantasma?
- Sim, de certa forma.
- Sabe por quê?
            Tenho medo e é o bastante.
- É sempre assim tão radical?                                            2
- Tenho idéias já formadas, sei o que quero.
- Espero que sim... O que pensava há tanto tempo contemplando o mar?
- Pensava no perigo que ele representa para as pessoas, nas cidades que pode inundar, nas embarcações que pode naufragar, na desproporção em relação a quantidade de terras.
- Só isso?
- Só. Dizem que o mar vai invadir as cidades mais baixas, e isso me preocupa...
- Você nunca pensou no mar como algo bom? Não vê sua utilidade, sua importância ligando continentes, servindo de lazer para todas as idades, de terapia para muitos, uma fonte de alimentos naturais, de sal que tempera sua comida? Todos dos acidentes que nele ocorre, deve-se ao erro do homem, pela imprudência com sua própria pessoa com o material usado. Lembra-se dos acidentes com as barcas superlotadas e em mau estado de conservação? O homem vem procurando modificar a natureza, desrespeitando-a.
- Prefiro um lago tranquilo, Menino Azul.
- A tranqüilidade exagerada gera estagnação. O mar precisa das ondas para renovar e purificar-se. Ele ocupa seu espaço, o homem é que tenta rouba-lo. É justo, que não se acomode.
- Por que procura sempre me confundir?
- Tente apenas, olhar também o outro lado.
- Vou caminhar um pouco, Menino Azul você virá comigo?
- Claro, se assim deseja...!

- Veja Menino Azul, aquele homem cortando todas as árvores daquele jardim. Não é uma pena?
- Cortar não seria bem a palavra, ele apenas está podando. Dessa maneira, ela terá mais força, e na próxima estação brotará mais bonita. Novos galhos, maior quantidade de frutos, mais flores. Que seria dela se o homem como ser superior, não a podasse, adubasse, procurasse tirar os insetos que a importunam? Por isso é bela e agrada seus olhos. Sujeitando-se a poda renovar-se-á, e como agradecimento, doará seus frutos, sua sombra...

- Sabe que você é engraçado, Menino Azul?                           3
- Não, o que em mim é engraçado?
- Às vezes está de lado direito outras de esquerdo, você voa?

- Sim, se sentarmos ali poderemos voar os dois.
- Eu também?
- Claro. Vamos olhar o que se passa à nossa volta, escape um pouco dos seus limites, logo voltaremos...
- Para onde iremos?
- Qualquer lugar, você será meu guia.
- Como seu guia? Você terá que ir á frente para me conduzir, sou mais pesado e nunca voei.
- Está enganado meu amigo; você já voou tanto quanto eu. A diferença é que eu acredito, e você tem medo, vive acorrentado a tudo... Um dia voará muito mais alto...
- Voemos então, falei para o Menino Azul.
Disse-me ele:
- Antes fechemos os olhos, esqueçamos o tempo e o espaço, liberte-se das preocupação que lhe afligem.

Como um passe de mágica não estava mais sentados sobre aquela pedra, mas sim, numa área enorme de capim rasteiro, verde e cheiroso, exatamente como tinha visto em meus sonhos. O Menino Azul sorria ao meu lado, perguntou-me: - Era esse o lugar que sempre pensou conhecer e nunca teve oportunidade?
Respondi emocionado:
- Sim, parece um sonho...

Começamos a andar, admirado, maravilhado. Gozava o prazer daquele momento! Via grande quantidade de animais pastando, bonitos.
Algo me chamou atenção. Algum animal deveria estar doente, sentindo dor, estava inquieto num canto. Seu abdômen dilatado, sua respiração ofegante, nervoso. 
- Que teria esse animal, Menino Azul?
- Não vê que é uma fêmea, meu rapaz; breve estará aumentando o 4  rebanho de seu dono.
- Ela vai parir?
- Sim, por isso está inquieta, mas logo tudo passará e voltará a reunir-se aos outros.
- Será que ela está sentido muita dor? Coitada!
- Por que coitada, meu rapaz?
- Enquanto ela sofre aqui, o boi com certeza pasta por aí tranqüilo sem sentir nada.
Somente agora, pude ver claramente os dentes do Menino Azul, seu sorriso foi mais largo.

- Meu bom rapaz, já pensou alguma vez realmente sobre esse assunto?
- Não, mas o que pensa você?
- Que seria do dono dos animais se eles não quisessem procriar?
Ao adquirir cada um, o fez mediante estudo, escolhendo os mais férteis, mais bonitos, puros. Com isso, pensava no cruzamento entre eles, e consequentemente num aumento de seu rebanho. Por isso adquiriu tanto pasto, fez plantações, nada deveria faltar ao seu gado. Seria uma decepção se resolvessem extinguir-se recusando-se a procriação. Não acha?
- Por certo...
- Esta fêmea sente prazer com este tipo de dor. Sente-se adulta, completa, realizada. Esse momento nada representa daqui a alguns instantes. Sua alegria será bem maior que a dor. Não a esquecerá, mas aventurar-se-á a novas satisfações como essa. Ela é a terra que fez germinar a semente, através dela, haverá renovação. Isso é mais que suficiente para engrandecê-la. Que seria do macho sem a fêmea para lhe completar e eternizá-lo? Ela não é completamente, é princípio... e fim. 

Seguimos caminhando sem nos preocupar com a direção. Gostava da companhia daquele menino sorridente, me fazia bem.
Ao longe, avistamos uma casa pequena, humilde. Nos aproximamos. Tudo estava parado, sem vida. O cachorro magro nem latia, olhou-me e entrou na casa. Ninguém surgiu á porta para nos receber. Batemos o silêncio me assustava. O Menino Azul continuava tranqüilo.                             5
Como ninguém aparecesse, entramos, não víamos pessoa alguma.
Chegamos a cozinha, ao quintal, fomos verificar, o único quarto que havia. Empurrávamos a porta, fiquei gelado, minha vontade era correr, não o fiz por vergonha do Menino Azul. Ele entrou e chamou-me, pediu que me aproximasse. Eu tinha medo... Diante de nós um corpo estirado sobre o tablado da cama. Inerte, olhos fechados, semblante sereno. Ao lado uma vela já apagada. Na cabeceira um crucifixo feito à facão. Lembrei-me dos grandes enterros dos crucifixos de prata, das coroas, flores, caixões de luxo, mausoléus de mármore. Comovido, chorei...!
O Menino Azul calado, olhava-me. Não estava triste, nem chorava. Seu semblante era de ternura, compreensão, entendimento, tranqüilidade.
Quebrando o silêncio, falei:
- Morreu sem ninguém. Não terá por certo nem quem o enterre.
O menino Azul olhou-me com a mesma serenidade e respondeu-me:
- Ninguém meu amigo, morre acompanhado; mesmo que seja numa tragédia coletiva. Fisicamente partimos juntos, mas na verdade iremos sozinhos com nossa bagagem. Assim como viajantes, que fazem percursos pequenos ou longos. Embora nos encontremos nos hotéis, pousadas, etc., cada um tem seu itinerário. Após essa viagem, chegaremos ao nosso destino verdadeiro.
Quanto ao seu corpo, enterremo-lo, é para isso que estamos aqui... 

Após tomarmos todas as providências necessárias, voltamos novamente a caminhar. Eu calado, pensando... O Menino Azul, carinhosamente me observando.
Seguimos um bom pedaço, olhando tudo em volta.
Voltei a interrogá-lo:
- Por que você pensa que sempre está com a razão?
Ele respondeu calmamente:
- Está enganado amigo, não penso sempre que estou certo. Sou um procurante como você. O que nos torna diferentes, é que sempre que você olha para uma questão, se vê um ângulo, eu contudo, procuro vê os dois. O que venho lhe dizendo não é para ser decorado ou repetido, mas para ser entendido, complementado, discutido. Aí então, quando alcançarmos o conhecimento superior, poderemos ser aceitos sem refutação. O que dissermos será lei. Ainda é muito cedo; nosso caminho é longo...!              6

Nosso diálogo foi interrompido por gritos, pessoas correndo, estampidos. Assustado, tentei me esconder.
- Vamos, dizia eu, se ficar por aí, por certo levará um tiro, e nem saberá de onde partiu...
- Irei junto não por minha causa, eu não poderia ser atingido por uma bala, sou invisível para eles, mas para lhe proteger. Procuremos um lugar seguro.

Como a maioria das pessoas corria para um determinado lugar, seguimos o grupo composto de crianças, velhos e deficientes.
Por certo, sabiam o melhor local para nos proteger.
Realmente, ficamos relativamente bem instalados. Curioso, perguntei:
- Por que teriam construído lugares para abrigá-los numa situação dessas?

Um rapaz, notando o meu interesse, respondeu-me: - em todo país civilizado, há abrigos para proteger sua população...
- Perguntei: e a outra parte, onde está?
- Os outros, ou estão manejando as armas nos campos de batalha, ou apertando botões em salas super equipadas, ou dando ordens de combate. Tudo isso, só nosso desenvolvimento tecnológico poderia nos proporcionar, caso contrário, nem existiríamos mais... 

Olhei em volta a procura do Menino Azul e disse-lhe:
- Agora você há de convir que não tem outro ângulo. Par a humanidade não há salvação. O mundo será do mais rápido, mesmo que esteja trilhando por caminhos errados. O que me diz?
- Por certo, não sinto alegria em presenciar, uma guerra, onde pessoas brigam por terras, prestígio, poder, fanatismo religioso ou racial. Espere contudo, que após todo esse levante, esse sofrimento, essa matança desenfreada, sobre uns poucos, e que não esqueçam esse horror tão rapidamente. E dessa vivência negativa, eles, os que restaram, vejam a luz, que iluminará a nova humanidade.             7
Que sejam poucos, porém convictos. E como candeeiros ajudem o peregrinar dos novos viandantes...

Ao constatarmos que a luta tinha terminado, voltamos a caminhar. Deixemos que cada um enterre seus mortos...

À certa altura, parei e perguntei ao Menino Azul:
- Para onde iremos agora?
Ele respondeu:
- Não sou eu que o estou dirigindo, sigo apenas ao seu lado.
- O sol está queimando meu corpo. Você não sente?
- Não, da sua maneira. Vamos sentar sob àquela árvore.
Juntos, paramos por um instante, suava aos pingos, a camisa presa ao corpo, os pés ardiam.
Falei para o Menino Azul:
Esse calor me acaba, seca as plantações, queima as matas, seca os rios. Dá muito prejuízo.
Entendendo o olhar do Menino Azul complementei, estou novamente olhando apenas um lado da questão. Sei que o sol é vida, é luz e calor. Sem ele morreríamos.

O Menino Azul sorrindo, falou:
- Fico satisfeito com a observação que fez. Muitos dos problemas que afligem ao homem, ele próprio poderia amenizar ou resolver se realmente desejasse.
Assim como o sol, a água, a terra, etc..

Estava cansado, olhava o Menino Azul, as pálpebras não me obedeciam. Tinha vontade de deitar-me ali na sombra e dormir. Serpa que ele também tinha sono?

Adivinhando meu propósito, aproximou-se e me disse:            8
- Tenho que ir. Durma, deve estar cansado. Caminhamos um bom pedaço, e você não está acostumado.
- Ficou zangado Menino Azul? O sono me domina.
- Durma, não tenho motivos para zangar-se com você.
- Não sou boa companhia? Pergunto demais, não é?
- Gosto de você e das suas indagações. É um bom sinal. Por isso estou aqui...
- Vou vê-lo outras vezes?
- Evidente que sim, só depende de você...
- Como assim?

- Pense em mim, dialogue consigo mesmo, busque encontrar-se, não espere pelos outros, não procure tanto ser entendido, caminhe, siga em frente com amor e esperança. Quando menos esperar, estarei caminhando também ao seu lado e você será o meu guia...

E, desapareceu, da mesma maneira que tinha surgido.

Eu, exausto, dormi ou acordei, não sei.

PERGUNTAM-ME:                                                9

- QUEM É O MENINO AZUL?

RESPONDO-LHES

- QUEM SOU EU PARA DIZÊ-LO?

- MAS, SE AINDA NÃO O ENCONTRARAM... É UMA PENA...!




           08.12..81       DIONÊ MACHADO


Imagens Internet.

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