Revista
Bula
Ela
escreveu 2 mil poemas, não publicou nenhum em vida e morreu sem saber que
mudaria a poesia para sempre
07/08/2025
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Emily
Dickinson viveu quase invisível, em uma casa discreta de tijolos vermelhos em
Amherst, Massachusetts, na América puritana do século 19. O quarto, as cortinas
sempre fechadas, e um jardim povoado por flores e abelhas eram seu universo
inteiro. Durante sua vida, apenas poucos souberam dos versos guardados em
gavetas, escritos em pedaços de papel cuidadosamente dobrados. Na morte, porém,
seu silêncio foi rompido e Emily tornou-se, enfim, ouvida pelo mundo, que
repentinamente descobriu nos versos breves, intensos e enigmáticos uma das
maiores vozes poéticas que a América já teve.
Emily
Elizabeth Dickinson nasceu em 10 de dezembro de 1830 em uma família de classe
média alta, influente e rigorosamente calvinista. Filha de Edward Dickinson,
advogado e político, e Emily Norcross, mãe distante e discreta, cresceu ao lado
do irmão mais velho, Austin, e da irmã mais nova, Lavinia, numa casa onde
religião, educação e moralidade dominavam os dias. A família Dickinson
desfrutava de prestígio na comunidade, e seu pai, uma figura patriarcal forte,
era rígido e austero. Foi dele que Emily herdou um traço de personalidade
firme, mas também uma distância emocional que marcaria profundamente seus anos
posteriores.
Desde
jovem, Dickinson frequentou a Amherst Academy, recebendo uma educação
excepcionalmente sólida para uma mulher da época. Mais tarde, em 1847, foi
enviada ao Mount Holyoke Female Seminary, mas não se adaptou ao ambiente
religioso rigoroso e retornou para casa após um ano. Esse retorno representou
um marco definitivo: dali em diante, sua vida tornou-se cada vez mais reclusa.
Entre
as décadas de 1850 e 1860, enquanto os Estados Unidos atravessavam crises
políticas e sociais profundas, culminando na Guerra Civil (1861-1865),
Dickinson optava por isolar-se ainda mais. Evitando compromissos sociais e
usando frequentemente roupas brancas, passava horas escrevendo, lendo e cuidando
do jardim. Escrevia centenas de poemas e cartas, mas raramente compartilhava
esses escritos com alguém além de poucos familiares e amigos íntimos, entre
eles Susan Gilbert, sua cunhada e confidente mais próxima, e Thomas
WentworthHigginson, crítico literário e mentor distante com quem trocou
correspondência.
Dickinson
não publicou praticamente nada durante a vida, e quando tentava publicar era
frequentemente desencorajada por editores, que achavam seus poemas estranhos,
fragmentados e pouco comerciais. Os temas eram profundos: morte, amor, fé,
imortalidade, mas abordados em uma linguagem radicalmente nova para seu tempo,
cheia de pausas, traços, pontuações surpreendentes e versos livres. O estilo
desconcertava, chocava, parecia estranho demais para o padrão literário do
século 19.
Foi
somente após sua morte em 15 de maio de 1886, aos 55 anos, que o mundo começou
a reconhecer o valor dos escritos de Dickinson. Após seu falecimento por
complicações renais, sua irmã Lavinia descobriu cerca de 1800 poemas em gavetas
e baús. Decidida a tornar pública a obra da irmã, Lavinia buscou apoio de
Higginson e de Mabel Loomis Todd, esposa de um professor local. Em 1890, eles
publicaram uma primeira coletânea de poemas editada cuidadosamente, removendo
peculiaridades estilísticas e suavizando passagens mais enigmáticas para
agradar o público da época.
Essa
primeira publicação foi um sucesso inesperado. Rapidamente, outros volumes
surgiram, e o nome Dickinson se espalhou além de Amherst. O público descobriu,
fascinado, a mulher tímida que havia vivido e morrido sem que ninguém se desse
conta de sua genialidade literária.
Ao
longo do século 20, seu reconhecimento continuou a crescer, e Dickinson
tornou-se central no cânone literário americano. Sua relação profunda e emocionalmente
complexa com Susan Gilbert passou a ser mais explorada por estudiosos,
revelando aspectos íntimos da poeta e ampliando ainda mais o fascínio por sua
vida reservada. No entanto, sua trajetória pessoal sempre foi permeada por
paradoxos: a poeta que escolheu o isolamento absoluto acabou se tornando uma
das mais expostas e debatidas. Tornou-se símbolo do artista que produz longe
dos holofotes, cuja obra floresce na solidão e resiste ao tempo precisamente
pela autenticidade que nasce do recolhimento absoluto.
Hoje,
Dickinson é reverenciada como uma das maiores poetas da língua inglesa. Seus
poemas curtos, porémdensos e cheios de camadas de significado, são amplamente
traduzidos e estudados. O estilo que os editores do século 19 censuraram e
suavizaram é hoje visto como inovador, precursor da poesia moderna do século
20.
O
paradoxo persiste: a mulher que buscava reclusão tornou-se famosa pela
exposição póstuma. Talvez tenha sido essa, ironicamente, a maneira perfeita
para que Emily Dickinson fosse compreendida. Não pelas explicações fáceis que
ela própria sempre rejeitou, mas pela capacidade de deixar um legado poético
aberto ao tempo, à interpretação, ao mistério, exatamente como ela viveu:
distante, profunda, enigmática e, sobretudo, verdadeira.
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