quarta-feira, 27 de agosto de 2025

REFLEXÃO...01

 

Baccio Baldini: A montanha santa de Deus

 

Para as pessoas na Idade Média, a fé vinha, não apenas ouvindo, mas também vendo...

 

Por Marleen Hengelaar-Rookmaaker

 

Olhando para Cristo

Essa gravura em cobre foi feita em homenagem a um desenho de Sandro Botticelli, em 1477, por Baccio Baldini, um ourives e artista florentino. Nela, vemos um monge que está subindo uma escada com onze degraus e doze valores, escritos em italiano antigo, sobre e abaixo deles. Cristo está de pé, no topo da escada – reconhecível por sua auréola – aguardando no domo do céu, cercado por anjos. Este é o frontispício do livro Monte Sancto di Dio (A Montanha Santa de Deus), por Antonio Bettini (1396-1487, um escritor e diplomata monástico sienense). É uma imagem didática, que oferece uma representação excelente da espiritualidade, misteriosamente colorida, daquela era.

 

Impressionantemente, a imagem da escada aparece apenas uma vez na Bíblia: a escada de Jacó, em Gênesis 28, com anjos ascendendo e descendendo. Mas, neste caso, há uma ideia de proximidade de Deus, ao invés de crescimento espiritual ou de escalar em direção a Deus. No entanto, por trás de 2 Pedro 1.5-8, podemos ver uma imagem de uma escada no acumulo de valores de Pedro. Nesses versos, o caminho passa por virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade e fraternidade, até chegar ao amor a todos.

 

É, principalmente, graças a John Climacus (575-649), abade do Mosteiro Sinai, que a escada passou a ocupar um lugar importante nas ordens religiosas e na igreja do leste e oeste. Ele descreveu um caminho ascético de trinta estágios. Por um lado, se tratava da luta da alma contra as paixões e tentações; por outro lado, o exercício dos valores com o objetivo final do unio mystica, uma experiência de união com Deus e uma vida de conexões profundas com ele.

 

Na obra de Baldini, a escada é combinada com outra imagem: a de uma montanha. A montanha de Horebe (onde ficava a sarça ardente) é chamada de “a montanha de Deus” em Êxodo 3.1. Em muitas religiões, uma montanha é um local santo, onde a presença de Deus é palpável, onde o céu e a terra se tocam, onde Deus e os humanos se aproximam.

 

Os quatro valores na parte de baixo da escada são os valores cardinais, datados da antiguidade: prudência, moderação, coragem e justiça. Humilita – humildade – é colocado abaixo, na base.

 

Esses cinco valores são seguidos por timore, o temor do Senhor:

O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência. (Provérbios 9.10)

 

Os seis degraus mais acima acrescentam seis presentes do Espírito de Isaías 11.2:

O Espírito de sabedoria e de entendimento,

o Espírito de conselho e de fortaleza,

o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor.

 

 

 

Na gravura, eles são escritos na ordem contrária. Assim, primeiro um homem escala por seus próprios esforços, mas, depois de um tempo, é o Espírito que oferece progresso ao crente.

 

Mas, há mais nessa imagem. Nos dois montantes da escada, estão escritos os dois pilares do caminho, na vertical: oratione e sacramento – oração e sacramento. A oração surge do homem para Deus; no sacramento, Jesus vem para o homem, com o seu amor. Além disso, à direita do jovem a esquerda, vemos a palavra speranza, aos pés da cruz de Jesus, está escrito fede e bem na sua frente carita – juntos, fé, esperança e caridade. Tomás de Aquino (1225 – 1274) designou esse trio como os três atributos divinos, já que eles são dirigidos a Deus, assim como são dados por ele.

 

Abaixo do monge, vemos uma criatura maléfica, segurando um gancho em sua garra. Ela tenta puxar o jovem da esquerda para baixo por cecita (ofuscamento ou cegueira). Apesar disso, o jovem cita (muito apropriadamente) o Salmo 121.1: “Elevo os olhos para os montes [...] O meu Socorro vem do SENHOR”. Enquanto o jovem está olhando para Cristo no céu (e Cristo para ele), o monge olha para o Cristo na cruz e diz “Tirami doppo te” – “puxa-me junto de ti”. As quatro correntes próximas à base da escada são um detalhe adorável; elas estão seguramente presas à montanha para manter a escada a salvo dos truques do diabo.

 

Nessa obra, é dado, ao ato de olhar, um lugar importante. Quando você mantém seus olhos direcionados a Jesus no céu você será capaz de resistir às tentações do diabo. Quando os seus olhos estão direcionados a Jesus na cruz, você pode crescer em amor, poder e sabedoria para saber o que interessa mais (cognoscimento dilatato, veja abaixo à direita na figura).

 

Um provérbio medieval diz: você se torna aquilo para o que você direciona os seus olhos. O que você olha afetuosamente, com desejo e devoção – o seu tesouro, o seu ideal, ídolo, exemplo, seu Redentor – vai mudá-lo, passo a passo. A arte também desempenha um papel aqui, por exemplo, os breviários para devoção privada, trabalhos didáticos e, especialmente, as representações da vida e dos sofrimentos de Cristo. Para as pessoas na Idade Média, a fé vinha, não apenas ouvindo, mas também vendo.

 

A capa simples do livro contém um tesouro de informações sobre a espiritualidade daquela época. À primeira vista, pode parecer distante da nossa, mas também pode haver muito que reconhecemos. Também desejamos uma vida na presença de Deus e nos perguntamos como isso é possível. Isso é o que essa gravura quer nos fazer enxergar.

 

Baccio Baldini: A Montanha Santa, 1477, gravura em cobre sobre papel, 25.7 x 18.5 cm. O livro foi impresso por Nicolaus Laurentii, (um pintor alemão do fim do século 15, que vivia em Florença, na Itália. Ele imprimiu muitas obras italianas renascentistas notáveis e foi um dos primeiros a utilizar gravuras em cobre).

 

Baccio Baldini (1436-1487) foi um ourives e artista italiano, que foi ativo durante a Renascença em sua terra natal, Florença. Vasari diz que todas as obras de Baldini foram baseadas em desenhos de Sandro Botticelli, apesar de que, provavelmente, isso não é certo. No entanto, eles colaboraram na primeira edição de Dante, publicada em 1481. Seu modo fino de trabalhar é caracterizado pelos contornos afiados e profundos, e pelos detalhes finamente desenhados.

 

Marleen Hengelaar-Rookmaaker é editora chefe de ArtWay.

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