Baccio Baldini: A montanha santa de Deus
Para as pessoas na Idade Média, a fé vinha, não apenas
ouvindo, mas também vendo...
Por Marleen Hengelaar-Rookmaaker
Olhando para Cristo
Essa gravura em cobre foi feita em homenagem a um desenho de
Sandro Botticelli, em 1477, por Baccio Baldini, um ourives e artista
florentino. Nela, vemos um monge que está subindo uma escada com onze degraus e
doze valores, escritos em italiano antigo, sobre e abaixo deles. Cristo está de
pé, no topo da escada – reconhecível por sua auréola – aguardando no domo do
céu, cercado por anjos. Este é o frontispício do livro Monte Sancto di Dio (A
Montanha Santa de Deus), por Antonio Bettini (1396-1487, um escritor e
diplomata monástico sienense). É uma imagem didática, que oferece uma
representação excelente da espiritualidade, misteriosamente colorida, daquela
era.
Impressionantemente, a imagem da escada aparece apenas uma
vez na Bíblia: a escada de Jacó, em Gênesis 28, com anjos ascendendo e
descendendo. Mas, neste caso, há uma ideia de proximidade de Deus, ao invés de
crescimento espiritual ou de escalar em direção a Deus. No entanto, por trás de
2 Pedro 1.5-8, podemos ver uma imagem de uma escada no acumulo de valores de
Pedro. Nesses versos, o caminho passa por virtude, conhecimento, domínio
próprio, perseverança, piedade e fraternidade, até chegar ao amor a todos.
É, principalmente, graças a John Climacus (575-649), abade
do Mosteiro Sinai, que a escada passou a ocupar um lugar importante nas ordens
religiosas e na igreja do leste e oeste. Ele descreveu um caminho ascético de
trinta estágios. Por um lado, se tratava da luta da alma contra as paixões e
tentações; por outro lado, o exercício dos valores com o objetivo final do unio
mystica, uma experiência de união com Deus e uma vida de conexões profundas com
ele.
Na obra de Baldini, a escada é combinada com outra imagem: a
de uma montanha. A montanha de Horebe (onde ficava a sarça ardente) é chamada
de “a montanha de Deus” em Êxodo 3.1. Em muitas religiões, uma montanha é um
local santo, onde a presença de Deus é palpável, onde o céu e a terra se tocam,
onde Deus e os humanos se aproximam.
Os quatro valores na parte de baixo da escada são os valores
cardinais, datados da antiguidade: prudência, moderação, coragem e justiça.
Humilita – humildade – é colocado abaixo, na base.
Esses cinco valores são seguidos por timore, o temor do
Senhor:
O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o
conhecimento do Santo é prudência. (Provérbios 9.10)
Os seis degraus mais acima acrescentam seis presentes do
Espírito de Isaías 11.2:
O Espírito de sabedoria e de entendimento,
o Espírito de conselho e de fortaleza,
o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor.
Na gravura, eles são escritos na ordem contrária. Assim,
primeiro um homem escala por seus próprios esforços, mas, depois de um tempo, é
o Espírito que oferece progresso ao crente.
Mas, há mais nessa imagem. Nos dois montantes da escada,
estão escritos os dois pilares do caminho, na vertical: oratione e sacramento –
oração e sacramento. A oração surge do homem para Deus; no sacramento, Jesus
vem para o homem, com o seu amor. Além disso, à direita do jovem a esquerda,
vemos a palavra speranza, aos pés da cruz de Jesus, está escrito fede e bem na
sua frente carita – juntos, fé, esperança e caridade. Tomás de Aquino (1225 –
1274) designou esse trio como os três atributos divinos, já que eles são
dirigidos a Deus, assim como são dados por ele.
Abaixo do monge, vemos uma criatura maléfica, segurando um
gancho em sua garra. Ela tenta puxar o jovem da esquerda para baixo por cecita
(ofuscamento ou cegueira). Apesar disso, o jovem cita (muito apropriadamente) o
Salmo 121.1: “Elevo os olhos para os montes [...] O meu Socorro vem do SENHOR”.
Enquanto o jovem está olhando para Cristo no céu (e Cristo para ele), o monge
olha para o Cristo na cruz e diz “Tirami doppo te” – “puxa-me junto de ti”. As
quatro correntes próximas à base da escada são um detalhe adorável; elas estão
seguramente presas à montanha para manter a escada a salvo dos truques do
diabo.
Nessa obra, é dado, ao ato de olhar, um lugar importante.
Quando você mantém seus olhos direcionados a Jesus no céu você será capaz de
resistir às tentações do diabo. Quando os seus olhos estão direcionados a Jesus
na cruz, você pode crescer em amor, poder e sabedoria para saber o que
interessa mais (cognoscimento dilatato, veja abaixo à direita na figura).
Um provérbio medieval diz: você se torna aquilo para o que
você direciona os seus olhos. O que você olha afetuosamente, com desejo e
devoção – o seu tesouro, o seu ideal, ídolo, exemplo, seu Redentor – vai
mudá-lo, passo a passo. A arte também desempenha um papel aqui, por exemplo, os
breviários para devoção privada, trabalhos didáticos e, especialmente, as
representações da vida e dos sofrimentos de Cristo. Para as pessoas na Idade
Média, a fé vinha, não apenas ouvindo, mas também vendo.
A capa simples do livro contém um tesouro de informações
sobre a espiritualidade daquela época. À primeira vista, pode parecer distante
da nossa, mas também pode haver muito que reconhecemos. Também desejamos uma
vida na presença de Deus e nos perguntamos como isso é possível. Isso é o que
essa gravura quer nos fazer enxergar.
Baccio Baldini: A Montanha Santa, 1477, gravura em cobre
sobre papel, 25.7 x 18.5 cm. O livro foi impresso por Nicolaus Laurentii, (um
pintor alemão do fim do século 15, que vivia em Florença, na Itália. Ele
imprimiu muitas obras italianas renascentistas notáveis e foi um dos primeiros
a utilizar gravuras em cobre).
Baccio Baldini (1436-1487) foi um ourives e artista
italiano, que foi ativo durante a Renascença em sua terra natal, Florença.
Vasari diz que todas as obras de Baldini foram baseadas em desenhos de Sandro
Botticelli, apesar de que, provavelmente, isso não é certo. No entanto, eles
colaboraram na primeira edição de Dante, publicada em 1481. Seu modo fino de
trabalhar é caracterizado pelos contornos afiados e profundos, e pelos detalhes
finamente desenhados.
Marleen Hengelaar-Rookmaaker é editora chefe de ArtWay.
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