A
seleção masculina suprema da literatura brasileira de todos os tempos
EM BULA
CONTEÚDO
Chove
miúdo na memória coletiva e alguém acende os refletores do arquivo. No gramado
imaginário, as estantes viram arquibancadas; lá no alto, equações sobem ao placar
e ensaiam o vento. À beira do campo, um físico, Solemar Oliveira, regula o
cronômetro das frases, enquanto o historiador Ademir Luiz desce às camadas do
tempo até que as vozes ganhem corpo. Há silêncio de cerimônia e riso de
bastidor, o repouso antes do passe. Ao lado, o editor da Revista Bula, Carlos
Willian Leite, passa a súmula a limpo, ouve a arquibancada e insinua o nome
incontornável. Não se persegue unanimidade: prefere-se método com graça. A
língua dá o apito e o jogo começa.
O
comitê trabalhou no cruzamento paciente entre dado e intuição. Ademir trouxe as
longas durações: a Semana de 1922, o Estado Novo, o pós-guerra, o exílio e a
anistia, a industrialização do livro. Com essa cartografia, desenhou o campo.
Solemar calculou forças discretas: inércias de forma, entropias de metáfora,
acelerações de sintaxe que deslocam o leitor sem alarde. Na rodada final, o
editor amarra o veredito e sustenta a presença de Ferreira Gullar, a seu ver o
maior poeta da língua depois de Camões; a súmula registra, e com critério e
leveza apresenta-se a equipe.
No gol,
Monteiro Lobato guarda o imponderável com reflexo de editor. Criou redes de
leitura popular, profissionalizou o mercado, publicou “O Sítio do Pica-Pau
Amarelo” e “Urupês”. Agitou o debate do petróleo em plena era Vargas. A física
anota alto coeficiente de restituição: seus textos devolvem o impacto social
com energia extra.
A zaga
pede precisão. Graciliano Ramos, pela direita, sustenta a linha com economia
ferina. Foi preso em 1936, escreveu “Memórias do Cárcere” e publicou “Vidas
Secas”, onde a secura manda no jogo. À esquerda, Carlos Drummond de Andrade lê
o lance antes de nascer. Funcionário público e modernista de segunda hora
atravessou os anos 1940 com “A Rosa do Povo”, observando o país entre guerra e
reorganização. Um pensa o osso; o outro, o nervo.
As
laterais abrem o campo. Mário de Andrade, à direita, empurra a bola para frente
e para trás, como quem inventa o caminho. Articulou a Semana de 22, dirigiu o
Departamento de Cultura paulistano, escreveu “Macunaíma” e pôs o país a
conversar consigo. À esquerda, Lima Barreto rompe a linha do conforto. Cronista
da Primeira República e autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, expôs
racismo e burocracias e transformou o sarcasmo em documento. A história
reconhece nesses dois a largura do campo brasileiro.
No
meio, dois volantes de temperatura diversa. João Cabral de Melo Neto, pela
direita, depura, calcula, enxuga. Diplomata de ofício e engenheiro do verso
ergueu “Morte e Vida Severina” como ponte sobre a seca. À esquerda, Érico
Veríssimo distribui com grande angular. Diretor editorial da Editora Globo,
viajante de Washington a Porto Alegre, compôs “O Tempo e o Vento” como
cartografia narrativa do Sul. Um reduz a entropia até o brilho mínimo; o outro
imprime efeito Magnus no passe longo.
A
criação pede cabeça fria e olho clínico. Machado de Assis, meio ofensivo, funda
a jogada enquanto parece parado. Fundador da Academia Brasileira de Letras,
autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”, manipula o tempo
moral da frase como quem curva o campo da gravidade. O historiador vê nele a
conversa íntima entre gesto curto e longa duração.
Nas
pontas, a ousadia. Ferreira Gullar, à direita, maranhense de neoconcretos e
exílio. O “Poema Sujo”, de 1975, funcionou como sismógrafo do país em
travessia; veio a anistia e a voltagem seguiu alta até o Prêmio Camões. João
Guimarães Rosa, à esquerda, expande o espaço das palavras, autor de “Grande
Sertão: Veredas”. Médico e diplomata transformou travessia em gramática, o que
a física chamaria mudança de topologia. A escolha tem arquivo e afeto.
No
centro, Jorge Amado recebe, amortece, devolve. Militante e best-seller, de
“Gabriela, Cravo e Canela” a “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, sua prosa levou a
Bahia e o desejo à massa leitora, multiplicando adaptações, ritos e risos.
Impulso popular convertido em gol.
Fecha-se,
assim, não um veredito, mas um experimento replicável: critério histórico para
pesar contextos, ferramentas da física para medir forças de estilo e humor para
que o jogo respire. Se outra comissão vier, que traga seus instrumentos. Hoje,
esta joga bonito sem perder o rigor. Do arquivo às arquibancadas, a língua
brasileira continua batendo no peito e pedindo a bola.
Monteiro
Lobato — goleiro
Monteiro
Lobato (1882-1948) foi escritor, editor e empreendedor cultural que entendeu a
literatura como cadeia produtiva completa (do manuscrito à escola, da gráfica
ao balcão) e atuou para organizar esse ecossistema no Brasil do início do
século 20. Dirigiu a “Revista do Brasil”, fundou a Monteiro Lobato & Cia.,
travou batalhas por políticas do livro e apostou na ideia de um país leitor que
não depende de improviso, mas de infraestrutura, preço acessível e distribuição
nacional. A partir de São Paulo, moldou práticas editoriais, profissionalizou
contratos, estimulou ilustradores e revisores e fez do catálogo uma política
pública não oficial. Como polemista, defendeu ciência e industrialização e
provocou o debate sobre petróleo em “O escândalo do petróleo e do ferro”,
aproximando cultura de agenda econômica. Seu universo infantil marcou gerações,
mas o legado exige mediação crítica: passagens com estereótipos raciais hoje
são objeto de revisão pedagógica e histórica, sem o apagamento do conjunto.
Essa fricção, entre a modernização do campo do livro e heranças de preconceito,
faz de Lobato um caso-chave para discutir como a tradição se reinterpreta. Ele
permanece axial porque provou que literatura também é infraestrutura e porque
plantou, no cotidiano do leitor, personagens, hábitos e um modo brasileiro de
fazer edição, ainda perceptível nas escolas, nas prateleiras e no vocabulário
comum.
Graciliano
Ramos — zagueiro central (direita)
Graciliano
Ramos (1892-1953) fez da prosa brasileira um instrumento de precisão. Prefeito
de uma cidade alagoana, funcionário público, jornalista e depois prisioneiro
político do Estado Novo, escreveu com economia e rigor, preferindo frases
curtas, substantivos fortes e descrição moral sem floreio. O autor transformou
a experiência de seca, família encurralada e poder administrativo em observação
ética, detalhando engrenagens sociais que asfixiam desejos. Sua passagem pelas
cadeias em 1936 se converteu em matéria literária de fôlego em “Memórias do
Cárcere”, enquanto o retrato de gente comum sob pressão histórica consolidou a
reputação de um escritor que não negocia com sentimentalismo. Influenciou
cineastas, abriu caminho para leituras sociológicas do romance e permanece
referência de como estilo é política: cortar o excesso, expor a estrutura,
fazer da palavra um ato de responsabilidade. A força de Graciliano não está no
exotismo do sertão, e sim na engenharia verbal que ilumina o país por dentro,
linha a linha, como se cada período precisasse prestar contas ao real.
Carlos
Drummond de Andrade — zagueiro central (esquerda)
Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) atravessou o século 20 como poeta central e
cronista que fez do jornal uma forma de responsabilidade pública, afinando a
língua portuguesa à temperatura da vida urbana sem perder o diapasão
metafísico. Nascido em Itabira, foi professor, jornalista e, a partir de 1934,
chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema no Ministério da Educação e
Saúde, participando de políticas culturais num momento fundacional do Estado
brasileiro moderno; mais tarde, seguiu no serviço público e, já consagrado,
escreveu crônicas para o “Jornal do Brasil” entre 1969 e 1984, transformando
pequenos atos em matéria de ética coletiva. Seu método combina ironia discreta,
atenção às coisas mínimas e um senso democrático da linguagem que aceita o
coloquial sem ceder à facilidade. Em cadernos e cartas, reelaborou a
experiência do funcionário, do pai e do leitor voraz, documentando uma rede que
sustenta a história literária do período. Drummond fez do espanto um
instrumento civil: interromper a marcha automática, medir as palavras,
desconfiar das unanimidades. É clássico vivo não por monumento, mas por
usabilidade; o verso serve ao dia de hoje, a crônica reeduca o olhar e a
biografia pública mostra como a poesia pode servir ao comum sem perder
densidade.
Mário
de Andrade — lateral-direito
Mário
de Andrade (1893-1945) foi poeta, pesquisador, gestor e articulador que deu
forma prática ao modernismo brasileiro, unindo invenção estética, política
cultural e arquivo. Em 1922 ajudou a organizar a Semana de Arte Moderna, mas
seu impacto extrapola o palco: entre 1935 e 1938, à frente do Departamento de
Cultura de São Paulo, criou a Discoteca Pública Municipal, ampliou bibliotecas,
incentivou parques infantis e dirigiu a Missão de Pesquisas Folclóricas,
estabelecendo um método de registro do popular que abasteceu acervos e redes de
pesquisa no país. No plano da escrita, apostou numa língua que concilia cidade
e sertão, música e fala cotidiana, e condensou seu programa crítico em
“Macunaíma”, onde o Brasil se revela como mistura radical; no plano
institucional, ajudou a desenhar a ideia de patrimônio que inspiraria políticas
federais. A combinação de poeta de vanguarda, técnico meticuloso e pedagogo
público fez de Mário um tipo raro de intelectual que trabalha para o comum e deixam
ferramentas como catálogos, mapas sonoros, normas de registro e correspondência
que vira política. Sua obra e sua ação convergem num mesmo princípio, ouvir o
país inteiro, e por isso sua presença segue operante nas bibliotecas, nos
museus e na educação.
Lima
Barreto — lateral-esquerdo
Lima
Barreto (1881-1922) foi a consciência incômoda da Primeira República e um dos
primeiros a converter a periferia social e geográfica do Rio de Janeiro em
centro da prosa brasileira, com linguagem direta, humor ferino e atenção
política aos descartados. Negro, filho de professora e tipógrafo, funcionário
público em repartição modesta, enfrentou racismo estrutural, precariedade
material e internações psiquiátricas, sem recuar do combate ao ufanismo e à
retórica oficial. Em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, desnudou a
engrenagem da imprensa e do preconceito que moldava carreiras; em “Triste Fim
de Policarpo Quaresma”, feriu o nervo do patriotismo vazio ao narrar à queda de
um idealista esmagado por burocracia e autoritarismo. Hostilizado por setores
da crítica e por um mercado fechado às vozes plebeias, foi reconhecido
tardiamente como antecipador de procedimentos modernistas e como testemunha
moral de um país que preferia não se ver. Sua permanência decorre de um
diagnóstico que não envelhece: a língua do subúrbio pode ser alta literatura, e
a sátira, quando justa, é forma de justiça.
João
Cabral de Melo Neto — volante (direita)
João
Cabral de Melo Neto (1920-1999), diplomata e poeta, ergueu uma obra de antielitismo
luminoso, em que emoção e forma se encontram por contenção e ritmo. A
experiência ibérica e a observação do Nordeste transformaram-se em arquitetura
verbal precisa, imagem concreta e substantivo que pesa. Ganhou o Prêmio Camões
em 1990 e o Neustadt em 1992, distinções que reconhecem um projeto coerente:
fazer do poema uma construção visível, não confissão. “Morte e Vida Severina”
reformulou a ideia de auto de Natal e alcançou plateias amplas sem perder
rigor, e “O Cão sem Plumas” inventariou um rio e uma cidade por camadas de
imagem e pensamento. Cabral rejeitou ornamento e sentimentalismo fáceis,
preferindo o trabalho paciente de montagem, como se cada verso fosse uma viga.
Sua correspondência e sua atuação no Itamaraty reforçam a imagem de um autor
avesso à autopromoção, fiel a um método que entende a poesia como obra de
engenharia.
Érico
Veríssimo — volante (esquerda)
Érico
Veríssimo (1905-1975) conciliou ambição estrutural e clareza de superfície,
tornando-se ponte entre a literatura brasileira e o leitor internacional num
século que exigia tradução mútua. Editor decisivo na construção do catálogo
moderno da Editora Globo, romancista de fôlego que mapeou a experiência social
do Sul e conferencista que apresentou o país em universidades e centros
culturais no exterior, transformou a história regional em narrativa universal
sem perder sotaque. No ciclo de “O Tempo e o Vento”, compôs um painel de
formação que se converteu em pedagogia afetiva da memória; em “Incidente em
Antares”, reteve humor e fábula para medir autoritarismo, imprensa e elites
locais; em “O Senhor Embaixador”, afinou o ouvido para a América Latina e expôs
contradições diplomáticas. Sua prosa límpida abriga múltiplas vozes e tempos, e
a ética do narrador, avessa a dogmas, permite que o leitor veja estruturas de
poder sem catecismo. Popular sem ser raso, histórico sem solenidade, regional e
cosmopolita ao mesmo tempo, permanece cartógrafo de pertencimentos.
Machado
de Assis — meia ofensivo
Machado
de Assis (1839-1908), negro, autodidata, funcionário público, jornalista e
ficcionista, atravessou Império e Primeira República observando as classes
dirigentes com uma lente de precisão moral rara. Fundou e presidiu a Academia
Brasileira de Letras, escreveu para a imprensa e conduziu, em prosa e crônica,
uma obra que transformou narradores em suspeitos e leitores em coautores. Sua
origem suburbana e sua ascensão por mérito literário e trabalho em repartições
mostram que o cânone brasileiro nasce também de trajetórias plebeias. Em
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, desmontou a solenidade do romance
oitocentista; em “Dom Casmurro”, instalou a dúvida como motor de leitura. A
grandeza de Machado não depende de frases de efeito; está na carpintaria de
parágrafos que expõem a hipocrisia com doçura impiedosa. Por isso, segue sendo
autor escolar, universitário e de cabeceira, lido como manual de sobrevivência
intelectual e ética em um país acostumado a aparências.
João
Guimarães Rosa — ponta esquerda
João
Guimarães Rosa (1908-1967), médico e diplomata, reorganizou a língua literária
brasileira ao cruzar falares do sertão, erudição multilíngue e intuição
filosófica. Mineiro de Cordisburgo conviveu com fronteiras geográficas e
culturais, o que se converteu em sintaxe expansiva, neologismos calculados e um
ouvido absoluto para a oralidade. Seu “sertão” não é cenário, é método de
conhecimento: uma gramática de travessias em que coragem, culpa, escolha e
destino se reescrevem a cada frase. Reconhecido em vida dentro e fora do país,
tomou posse na Academia Brasileira de Letras em 1967 e morreu dias depois,
gesto que cristalizou uma biografia dedicada ao trabalho paciente de artesão da
língua. O impacto de “Grande Sertão: Veredas” se mede não por epítetos, mas por
como leitores de diferentes gerações aprendem a desacelerar, a aceitar a
ambiguidade e a admitir que vocabulário é também território político. Rosa
permanece como prova de que invenção formal e pensamento moral pode ser a mesma
coisa quando a língua encontra o mundo e o amplia.
Ferreira
Gullar — ponta direita
Ferreira
Gullar (1930-2016), poeta, crítico de arte e articulador do neoconcretismo,
transformou o poema em lugar de risco público, atravessando invenção estética,
ditadura, exílio e retorno com a mesma energia formal. Maranhense, chegou ao
Rio, integrou o debate de vanguarda e escreveu a “Teoria do Não-Objeto”, peça
importante para entender as artes visuais brasileiras do pós-guerra; perseguido
nos anos de chumbo, viveu no exílio sul-americano e organizou a própria memória
do país no monumental “Poema Sujo”, que circulou em gravações de voz antes de
virar livro e se tornou experiência coletiva. De volta, manteve presença
pública, escreveu letras de canção, ensaios e colunas, e foram reconhecidos com
o Prêmio Camões e eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2014. Gullar
prova que engajamento não exige panfleto; nasce do choque entre corpo e
história, da fricção entre linguagem e realidade concreta. Sua poesia condensa
urgência e trabalho, coloquial e rigor, rua e ateliê, e por isso atravessa
gerações sem perder atualidade. Jorge Amado — centroavante Jorge Amado
(1912-2001) é o escritor brasileiro mais traduzido do século 20 e um dos
principais arquitetos do imaginário que apresentou a Bahia e, por extensão, o
Brasil ao mundo, combinando sensualidade, humor, crítica social e personagens
populares com apelo imediato. Baiano de Itabuna viveu militância política,
períodos de exílio e uma longa convivência com artistas e editores de vários
países, o que ajudou a transformar seus romances em passaporte cultural. Em
“Gabriela, Cravo e Canela”, encontrou a fórmula da cidade que se moderniza sob
disputa de poder e desejo; em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, fez do
sincretismo uma dramaturgia amorosa que a televisão consagrou; em “Capitães da
Areia”, deu rosto à infância abandonada e às contradições urbanas. A Fundação
Casa de Jorge Amado guarda correspondência, cadernos e fotografias que
documentam o ofício e a rede internacional de leitores. Seu efeito duradouro
não é só de vendagem ou de adaptações, e sim de linguagem; consolidou uma
prosódia brasileira falada no mundo, prova de que o romance pode ser documento,
festa e crítica, e de que personagens nascidos no cais, no mercado e no
terreiro sustentam debates complexos sobre trabalho, religião e desejo.
A
Revista Bula é uma plataforma digital brasileira fundada em 1999, que atua como
revista e também como editora de livros. Com foco em literatura, cultura,
comportamento e temas contemporâneos, adota uma linha editorial autoral, com
ênfase em textos opinativos e ensaísticos. Seu conteúdo é amplamente difundido
por meio das redes sociais e alcança milhões de leitores por mês,
consolidando-se como uma das referências em jornalismo cultural no ambiente
digital. Além da produção de conteúdo editorial, a Bula mantém uma linha de
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