sábado, 31 de julho de 2021

ISABELA



ISABELA

Narrativa ficcional para você neta querida, cujo nome tomei por empréstimo, futura arquiteta, cabeça pensante: 

ISABELA,

aos 12 anos sonhava com uma cidade de cristal e de luzes, seus habitantes sempre belos, vestiriam roupas coloridas, falariam com delicadeza e seriam letrados. Leriam a Bíblia com assiduidade.  As moças casariam depois dos 18 anos, teriam poucos filhos e os criariam com doçura, como faziam os seus pais. 

Uma cidade multicolorida, casas em cores fortes, simples. Não havia ruas, só o rio majestoso, onde toda a cidade pairava e dele dependia. Automóveis, aviões, nem pensar. As bicicletas reinavam absolutas.  Palafitas de luxo e de arte. Veneza brasileira da ilha do Marajó: AFUÁ, município de área superior a 8.000 km2, com mais de 39 mil habitantes, vizinha de Macapá, Santana, Mazagão, Gurupá, Anajás, Breves. Ali, Isabela morava e crescia pretendendo cores intensas, luzes significativas. 

Era feliz banhando-se no rio, correndo nas palafitas, usando canoas e rabetas.

Ouvira falar em edifícios, teatro, cinemas, shoppings, carros de luxo, mulheres elegantes e requintadas. Queria, algo que seu interior gritava, contudo,  sem saber definir. 

Talvez, um namorado alto, bonito, bondoso como seu pai, formado, com quem casasse e que a levasse a viajar pelo mundo afora, fazia parte dos desejos da bela e graciosa menina.  

Nesses sonhos e fantasias dizia falar com os peixes, que alimentava num recanto do rio. Pequenos e rápidos, nervosos, movimentavam-se em círculos, disputando as porções de ração que Isabela lhes atirava. 

Sua cadela Mel era-lhe companhia constante. Sua mãe – firme - chamava-a à realidade, mas, ela encontrava sintonia com o pai, que lhe era semelhante.

Um certo dia, no mesmo recanto onde alimentava peixes dourados, Mel, a cadelinha, percebera uma figura diferente, não costumeira. Pôs-se em alerta e grunhiu. Isabela levantou os olhos, percebendo à sua frente, no meio do rio, um peixe grande, rosado, de olhos miúdos, com um “bico” alongado e uma “grande quantidade de dentes pequenos e cônicos”.  

 - Um boto - sussurrou.

Olhar insistentes, perturbador. Lembrou-se das amigas que contavam sobre botos encantadores: “O boto cor-de-rosa, inteligente e semelhante ao golfinho, se transforma num jovem belo e elegante nas noites de lua cheia”. Dizem elas, que o “boto  se transforma em homem belo, seduz mulheres para engravidá-las, depois as abandona, retornando para o rio em sua forma animal”.

- Vem Mel. Vamos. 

Isabela, embora destemida e de pensamento lógico, sentiu-se constrangida, um arrepio percorreu o  seu corpo de criança.  Afastando-se do rio, com rapidez, retornou para sua casa:
Bela morada, pintada de rosa forte, com destaques amarelos e azuis, nela, em sua parte mais alta, entalhe de um grande peixe, coisa de seu amado pai.

- Seria um boto? - Indagou-se. 

Contou o fato à sua mãe, que, sorrindo, lhe recomendou não voltar àquele local sem companhia.
Isabela não se intimidou, nem levou a sério aquelas estórias. Curiosa, justificando-se com o argumentando de que deveria alimentar os peixinhos, decidiu retornar ao rio, no dia seguinte.
***
Manhã clara e brilhante, bicicletas e barcos traziam as pessoas para o centro da Cidade. As palafitas estavam repletas. As moradas de cores “translúcidas” eram palcos de alegria. O calor abrasador levava a criançada a banhar-se nas águas da Baia do Vieira Grande, no centro do município, 

Isabela, a caminho do encontro com seus peixes, sem temer as veredas desertas, cantarolava:

-  “Sou dono das asas do sonho...Singrando meu rio...Meu canto ecoa... E me faz sonhar... O mundo amazoniar...Caboclo...Menino faceiro...”
***
Os anos veem Isabela crescer, ficar moça, 15 anos. O desejo de ir para a capital permanecia tornando-a ansiosa, impaciente. 
Seu pai, logo ele, tão companheiro, lhe retardava a realização desse objetivo.  Em discussão, o responsabilizou por estar ali, num dia e noite sem futuro.

- Por que não se pode ir para a Capital? 

- Por que ficar limitada à essas ruas, a esse rio, pescando, plantando, falando sem parar?

Criar filhos, apenas?     
***

Aos 18, após sérios atritos com o pai, conseguira, com o patrocínio 
da mãe, mudar-se para Belém, onde ficaria com parentes. Faria vestibular para arquitetura na almejada Capital. 

Na Cidade Morena, Chamava sua atenção as ruas largas, as mangueiras em sua extensão, o piso firme sem água sob os pés  - embora em tudo estivesse presente as águas da baía do Guajará - os edifícios sóbrios, as largas calçadas, o rebuliço, o ir e vir incessante. Tudo aquilo satisfazia seu espírito irrequieto.

Os dias passavam céleres e cheios de afazeres e de estudos. Denotava grande talento para o desenho arquitetônico. Sequer lembrava-se de sua terra natal. Seu pai reclamava presença. O tempo exíguo, a viagem longa, os meios precários, faziam-na adiar a visita aos seus.

Depois, a Cidade, seus encantos, o fascínio do convívio com os colegas, os passeios, as festas. Não havia espaços ou tempo para nada mais. A ilusão das luzes, muito própria na juventude, alcançara Isabela em cheio, com força que a subjugava.
***
Fim do curso, a colação de grau, os pais presentes, orgulhosos e ansiosos para abraçar a inteligente filha, aguardando seu retorno para Afuá. A escola local a esperava para compor seu quadro de professores. A prefeitura também lhe ofertava emprego. 
Isabela não atendeu aos reclamos dos pais. Permaneceria em Belém à espera da ocupação prometida por colega que a cortejava: 
***
Um encontro marcado no Ver o Rio. Belo lugar de convívio. Estava ansiosa. O local deserto a sobressaltou. O colega não chegava.
Após desculpar-se pelo atraso, seu pretendente  aproximara-se de Isabela de modo ousado, que ofereceu resistência. Insistindo ele tornou-se agressivo, segurando-a pelos braços. Iniciava perda de controle. Isabela debatia-se. Tentou um grito, abafado com aspereza. .Lembrou-se do pai. O que fazer? Não se deixaria dominar, haveria de lutar e... lutou.

Vindo do rio, mesmo no embate, notou um rapaz, alto, magro, de estranhas vestes de cor rosa. 

Rápido, o atrevido foi alcançado por um joelho do seu salvador, depois enlaçado pelo pescoço e lançado ao chão. Sem reação, assustado com tanta força, o abusado colega fugiu. 

O rapaz, alto, magro, de estranhas vestes de cor rosa, sorriu para ela. Nada disse. Da mesma forma que viera se afastou em direção ao rio.

Um acontecimento inusitado, excêntrico, sem explicação, que a fez meditar insone na noite do triste ocorrido. Também a fez voltar à AFUÀ.

Foi visitar seus peixinhos e lá estava o grande peixe rosa, de olhos miúdos, com um “bico” alongado e uma “grande quantidade de dentes pequenos e cônicos”.  Agora mais perto. Parecia sorrir-lhe e cumprimenta-la. Isabela acenou para ele. 

- Oi.

- Obrigada.  

Retornando para Belém, recebeu convite para trabalhar em Brasília, onde adquiriu experiência e expôs seu talento e se fez destacar, auxiliando famoso arquiteto. Demonstrou técnica de rara beleza provincial, com destaque nas cores fortes e nas linhas sóbrias. 

Ouvira falar em Salvador, Bahia - terra de gente de pele morena, mulata, de costumes e atitudes afro, de casarões coloniais. Uma arquitetura  muito  atraente... 

Ao chegar à Boa Terra, como chamam a capital baiana, restou encantada: o mar, as ladeiras, as duas cidades, a alta e a baixa, o sotaque, as comidas, as belas mulatas, os homens negros altos e fortes, o casario nas ruas estreitas.

Em Alagados, sem a beleza de Afuá, de um cinza denotando carências, viu palafitas e casebres de madeira, o pântano, o mar em tudo. Não havia a alegria das cores das casas de sua Terra. Saudosa Lembrou de seus pais, do seu rio, dos seus peixinhos e do boto rosa.

Os reflexos de intenso caráter social  ferem  os espíritos sensíveis. .Pobreza, fome e lama. Ao lado dessa realidade chocante observou o espirito sobrepujar-se em artistas plásticos, em poetas e em cantores, usando da arte e do talento que os distinguia para gritar suas histórias aos ouvidos moucos do mundo. 

Retirou-se triste para depois explodir em êxtase com o prolongamento encantador da Cidade, dividida em duas. Uma de sorrisos, outra de choro convulso.  Lembrou-se de ter lido “Os Dois Brasis”, e “Casa-Grande & Senzala”, ao retratarem as situações presenciadas. 

Encantou-se com as igrejas e com o traçado singular - não planejado - das ruas. Assombrou-se com a “loucura” do carnaval baiano. Procurou refúgio em bairro distante, local de veraneio, de nome pomposo, Stella Maris, onde, por muito gosto, permaneceu. 

Seu trabalho fora rapidamente reconhecido. Suas finanças tornaram-se polpudas possibilitando-lhe viagens gratificantes em agrado ao seu espírito nobre. Conheceu Paris, deslumbrou-lhe a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, o Museu do Louvre, a Catedral de Notre Dame, o Palácio de Versalhes, o Centro George Pompidou, o Jardim de Luxemburgo.... 

Seu encantamento maior e desafiador, no entanto, foi Dubai de arquitetura ultramoderna: o Burj Khalifa, 828 m de altura, o mais famoso arranha-céu em Dubai e o maior do Planeta; o The World um conjunto de 300 ilhas artificiais; a casa do Sheikh Saeed Al Maktoum,  exemplo de traçado árabe do século XIX. 

Isabela sentia-se fora do mundo ao recordar suas origens de menina pobre, natural de local desconhecido e ausente dos mapas. 

Esse sentimento calcava em seu âmago impressão de irrealidade ou de uma realidade onírica que lhe gritava aos ouvidos para acordar, despertar, sair da fantasia. 

Não lhe fazia justiça essa definição porque na prancheta encontrava sua realidade de artista e de mestra respeitável em arquitetura. 

Atraída, visitava Alagados com assiduidade, onde via a projeção lúgubre de sua Afuá.
***
Aos 29 anos conheceu um sociólogo espanhol, de personalidade moldável, bom e simples. À esse tempo, famosa por sua vistosa arquitetura de cores fortes, retilínea, simples, inspirando  aconchego e paz, marcava posições. O Brasil conhecia uma profissional futurista, sem perder o toque e os retoques do provinciano. O misto do técnico e do estético singular tornavam-na ímpar.  AFUÀ permanecia em sua alma e lhe dava contributo, sem que dele se apercebesse..  

*** 
O passar dos anos. A maturidade, ao dar-lhe maior consciência, estabeleceu em seu íntimo conflito que a fazia debater-se entre ser e não ser. Assim, a dignidade, a necessidade de estabelecer parâmetros, o ter, o alcançado, e o  querer ser o que realmente se é. Verdadeiro pluriverso de um Antero de  Quental,  poeta do século XIX, sobre quem recordou o livro Sonetos, revelando pessoa  às voltas com questões humanas, filosóficas e metafísicas – Deus -,  em poesia  angustiada e pessimista.. 

Contudo o que fazer se tinha em si as duas realidades, os dois argumentos, as duas visões, os dois sentires?

Esse drama a inquietava. Precisava sair de si, deixar-se, espantar sua intelectualidade para ver-se outra vez menina sonhadora e ingênua. Queria alimentar peixinhos, levantar para ver o peixe rosa.

***
Precisava retornar, seu temperamento sanguíneo lhe impunha decisão drástica: 

Não tinha filhos e o marido “accederia”. Ansiava – outra faceta de sua personalidade - por valores reais, humanísticos, cristãos. Não faria igual a Pedro.  

- Precisamos retornar à Ilha – diz ao marido.

Seis meses após, agora concordes, Isabela e Lorenzo, deixavam São Paulo com destino a Belém do Pará. Depois percorrerão 259 km de táxi aéreo ou, indo para Macapá, enfrentarão, em lancha, aproximados 80 Km até a Cidade das Palafitas. 

Ansiava voltar a banhar-se nos rios que fazem a Veneza Marajoara, percorrer caminhos descalça ou de bicicleta,  admirar os encantos e viver a vida pura de sua Cidade, ouvir seu Pastor, louvar a Deus, enternecer-se com Sua criação.

A consciência a alfinetava por ter deixado seu povo. Passou a acreditar estar vivendo para si, apenas, com tantos braços pedindo alento. Sentia-se infiel.    

De coração doce e alma pura, Isabela queria redimir-se. Jamais lhe passou pela mente que era diferente, de mundo complexo, concorrente, de posições disputadas, sem lugar para fracos ou emocionais. O seu lugar fora conquistado. Estava no topo da montanha. Mas, transfigurada, conforme sentia, deveria descer, afastar-se de ídolos.. Eis o drama vivencial.

***
Lorenzo, católico, sentia-se aniquilado. Entendeu que precisava de um tempo para refletir e sopesar os fatos, era preciso partir apesar do amor dedicado à Isabela. Dor imensa. Lágrimas, juras, explicações.. 

- Não é possível abandonar todo o construído, negar a si mesmo ou à parte de si. 

- Não foi isso o que vi em você, quando a conheci.
 
- Não o enganei. Estou em aflição sincera, sofrendo por você, amado marido.

Lorenzo retorna à Espanha e lá permanece.

Mulher de objetivos, religiosidade ferrenha, Isabela mergulha na nova-antiga-vida,  conformando-se em face da fé que alimentava sua posição de cristã convicta..

***

A igreja, estudos bíblicos, sermões - os seus -, o expediente na Prefeitura, a escola, professora e diretora, seus alunos, o rio, os peixinhos, o boto, as casas coloridas, a ausência de Lorenzo, o retorno prometido. Assim quisera, assim vivia Isabela, assim esperava o encontro consigo própria.

***

... Lorenzo voltara? ...Suas roupas, a gravata de tom róseo, sua alegria envolvente...O boto...aqueles olhos miúdos que piscavam, seus chamados...

Um sonho fantástico ou uma fantástica realidade? 
 
Isabela acordou cedo, logo foi ao rio, onde a lhe esperar estaria - quem sabe - o inesquecível Lorenzo.    

Viveriam felizes para sempre...no forte pensamento de Isabela...

SSA, 15.07.2021
CUBA LEVANTA E GRITA POR LIBERDADE.

Geraldo Leony Machado







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