Quem
foi Joaquim de Almeida, ex-escravizado que virou traficante de escravos
Ilustração
mostra como eram embarcados os africanos escravizados na costa da África
Entre
os séculos 16 e 19, pelo menos 4 milhões de homens, mulheres e crianças foram
trazidos, à força, do continente africano para o território brasileiro. A
imensa maioria deles morreu em condições subumanas, depois de uma vida precária
de pesados trabalhos forçados. Uma pequena proporção conseguiu a sonhada
liberdade. Uma minoria irrisória acabou ganhando dinheiro e ascendendo
socialmente. Joaquim de Almeida é um desses curiosos e raros casos — e sua vida
tem um enredo rico em complexidade.
Ele
nasceu no antigo país Mahi, uma área dominada pelo reino de Daomé, na África
Ocidental, região dos atuais Benim e Togo. Escravizado, foi mandado ao Brasil.
Depois de alguns anos, contudo, Almeida conseguiu a alforria e "mudou de
lado": tornou-se ele próprio um empreendedor do lucrativo negócio do tráfico
negreiro.
Muito
bem-sucedido, diga-se. De acordo com o recém-lançado livro 'oaquim de Almeida:
A história do africano traficado que se tornou traficante de africanos, do
antropólogo espanhol radicado no Brasil Luis Nicolau Parés, nove anos depois de
libertado, Almeida já era considerado um "homem de negócios
atlântico" e acumulava uma fortuna que o punha entre os 10% mais ricos da
Bahia.
Conforme
conta Parés à BBC News Brasil, foram muitas as dificuldades encontradas para
contar a trajetória desse personagem, em razão "da escassez de fontes
historiográficas, pois os africanos escravizados ou libertos raramente deixavam
rastros documentais".
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"Se,
por um lado, sua inusitada ascensão social gerou alguns registros, por outro, o
fato de ele participar de atividades clandestinas, como o tráfico de
escravizados atlântico no seu período ilegal, favoreceu seu silenciamento e
invisibilidade", diz o antropólogo, que é professor na Universidade
Federal da Bahia. "Foi preciso garimpar por mais de dez anos em diversos
arquivos, no Brasil, na Europa e na África, para juntar as peças que permitiram
reconstituir aspectos parciais de sua trajetória."
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A data
de nascimento de Almeida é uma lacuna que persiste. Mas muito provavelmente ele
é da primeira década do século 19. "Não conhecemos sua data de nascimento.
As tradições orais sustentam que ele foi escravizado, ainda criança, em tempos
do rei Adandozan [que governou o Daomé de 1797 a 1818], portanto antes de 1818,
quando esse rei foi deposto. Assim, podemos especular que ele nasceu na
primeira década do século", comenta Parés.
"Há
indícios, não conclusivos, de que ele teria sido escravizado por volta de 1814
e sabemos que comprou sua carta de liberdade em 1830", detalha.
"Conhecemos também a data de óbito, na cidade de Agoué [atual Benim], em
11 de maio de 1857."
Reprodução
da assinatura de Joaquim de Almeida
CRÉDITO,DIVULGAÇÃO/
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da foto,
Reprodução
da assinatura de Joaquim de Almeida
Infância
e chegada ao Brasil
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Episódios
Fim do
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Segundo
as pesquisas do antropólogo, Almeida nasceu na aldeia de Hoko, no país Mahi, ao
norte do reino do Daomé, na margem ocidental do rio Ouemé. Sua língua nativa
era o mahigbe e ele era da família Azima. Provavelmente ele também dominava os
idiomas nagô e iorubá, considerando o entroncamento regional de onde ele vinha.
A
tradição oral dá conta que Almeida se tornou escravo quanto tinha entre 8 e 12
anos. Ele teria sido vendido por seu irmão mais velho, Bibi Sokpa. "Nesse
tempo, reza a narrativa, todos se envolviam no tráfico, e, quando havia
epidemias, secas ou fome, as crianças eram enviadas do interior à praia pra
serem vendidas", escreve Parés, no livro.
Uma
outra versão relata que Sokpa caçava elefantes e, por ter matado um que estava
destruindo as plantações da capital do reino, o monarca Adandozan quis
recompensá-lo com a oportunidade de trabalhar no Brasil, onde seria feitor — o
supervisor, o capataz — a serviço de Manoel Joaquim de Almeida, capitão do mar,
senhor de escravos e traficante negreiro que mantinha boas relações com o rei
africano.
Sokpa
alegou cansaço e velhice e disse que mandaria o irmão no lugar.
Esta
segunda narrativa é incongruente, pois atestaria que Joaquim de Almeida chegou
ao Brasil já como homem-livre — o que não é verdade, afinal os documentos de
alforria dele, datados de 1830, existem.
Parés
encontrou uma certidão de batismo datada de 4 de setembro de 1814 que pode ser
o primeiro registro da presença de Almeida no território brasileiro. Ocorreu na
freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, onde morava o traficante
de escravos Manoel Joaquim de Almeida e, no texto, dizia que o batizado era
"Joaquim, adulto, escravo de Manoel Joaquim".
Ilustração
mostra interior de um navio negreiro
CRÉDITO,DIVULGAÇÃO/
COMPANHIA DAS LETRAS
Legenda
da foto,
Ilustração
mostra interior de um navio negreiro
Tudo
indica que Almeida tenha sido um dos primeiros escravizados à serviço de Manoel
Joaquim de Almeida. Para o antropólogo, esse fato, aliado ao dado de que foram
mais de 15 anos de trabalhos, devem ter criado uma cerca amizade entre os dois.
O africano provavelmente ganhou a camaradagem de seu senhor ao demonstrar lealdade,
comprometimento e boa índole.
Além
disso, o fato de ele dominar idiomas africanos e ter o que se convencionou
chamar de "língua geral", ou seja, uma boa comunicação interafricana,
com trânsito multicultural, fez de Almeida um parceiro importante nas
negociações escravagistas de seu senhor. Tudo indica que ele tenha sido
intérprete nas transações de compra e venda e o fato de ele ser africano dava
vantagem nos acordos, pois transmitia alto grau de confiança.
O
antropólogo também aventa a hipótese de que Almeida, dado seu conhecimento
linguístico e cultural, tenha assumido funções de controle e vigilância dos
escravizados, sendo o responsável por dar as ordens a bordo e também nos
barracões em que eles ficavam confinados antes do embarque ou após o desembarque.
O
antropólogo Parés
CRÉDITO,GISLENE
BARRETO/ DIVULGAÇÃO/ COMPANHIA DAS LETRAS
Legenda
da foto,
O
antropólogo espanhol Luis Nicolau Paré lançou o livro 'Joaquim de Almeida: A
história do africano traficado que se tornou traficante de africanos'
Livre e
empreendedor
De
acordo com documento do cartório do tabelião Manoel Pinto da Cunha, preservado
no Arquivo Público da Bahia, a carta de alforria de Almeida foi assinada em 30
de junho de 1830, na casa de seu então senhor Manoel Joaquim de Almeida. O
africano comprou a liberdade entregando a Manoel um feixe de notas no total de
600 mil réis — dinheiro que provavelmente ele havia acumulado nos trabalhos
paralelos que realizava quando participava das empreitadas atlânticas a mando
do capitão do mar Manoel.
A
liberdade propiciou a ele que seguisse a carreira aprendida com seu senhor --
ou seja, Joaquim de Almeida se converteu, ele próprio, em traficante de
escravos.
"[Ele]
é um personagem fascinante", afirma à BBC News Brasil o historiador Carlos
da Silva Junior, professor na Universidade Estadual de Feira de Santana e
presidente da Associação Brasileira de Estudos Africanos. "É importante
dizer: Joaquim de Almeida é um exemplo do que o Estado e as instituições
liberais contemporâneas celebram como o empreendedor, o self-made-man."
"Ele
saiu da escravidão à liberdade e alcançou prosperidade econômica agenciando o
transporte de seres humanos através do Atlântico. No capitalismo, ninguém
alcança grande projeção sem explorar a vida de outras pessoas. Foi assim com
Joaquim de Almeida, no passado, é assim como muita gente hoje", acrescenta
o historiador.
No
livro, Parés demonstra como o ex-escravizado galgou posições sociais na Bahia
daquele tempo, sendo que ainda em 1831 foi padrinho de batismo de um cativo e,
até 1838 já acumulava 16 afilhados, o que denotaria prestígio.
O
historiador Nielson Bezerra, professor na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, diz à BBC News Brasil que o caso de Almeida "é muito peculiar
porque ele fez fortuna" e teve negócios "na Bahia, em Cuba e na
África".
"[Sua
trajetória] mostra essas interconexões do [comércio do] Atlântico",
analisa ele, lembrando que Almeida tinha uma "visão capitalista" da
escravidão. "Aí vem a ideia do empreendimento, do empreendedor. E ele se
tornou um grande empreendedor", acrescenta o historiador.
Mas o
cenário, a partir de 1831, não era tão favorável à importação de mão de obra
escravizada como havia sido nos primeiros anos de Almeida no Brasil. Isto
porque em 7 de novembro daquele ano foi promulgada a chamada Lei Feijó que,
entre outras limitações ao uso de trabalho forçado proibia a importação de
africanos escravizados -- em 1850, uma legislação seria ainda mais rigorosa
quanto ao tráfico negreiro, a Eusébio de Queirós.
Ora, a
atividade de Almeida havia se transformado em ilegal. Ele não se resignou —
tornou-se um traficante clandestino, fazendo contrabando de escravizados.
Para
isso, contou tanto com o aprendizado do negócio, principalmente na década de
1820, quanto também com a rede de contatos que havia construído com africanos
livres na costa africana e também no Brasil. Havia todo um esquema para driblar
a legislação — e Almeida recorreu a todos os subterfúgios para exercer sua
atividade.
Em 1934
foi enquadrado e feito réu por contrabando. Contando com boa assessoria
jurídica, conseguiu comprovar que eram "falsas" as declarações. No
ano seguinte, foi absolvido e o caso encerrado.
"Um
aspecto instigante e complicado de sua biografia é a passagem que ele fez da
condição de escravizado para o envolvimento no lucrativo comércio do tráfico
atlântico", analisa Parés. "De fato, enquanto cativo de um capitão
negreiro, ele já participava dessa atividade antes de sua emancipação. Porém, o
que se destaca no caso de Almeida é que, uma vez emancipado, além do comércio
em pequena escala, ele conseguiu participar do grande negócio do tráfico
ilegal."
"Transitando
pela Bahia e atuando como feitor na costa africana, conduzindo os comboios
humanos e juntando os carregamentos para o embarque, ele passou a suprir alguns
dos mais poderosos negociantes das praças da Bahia, Recife e Cuba",
acrescenta. "Sua capacidade de articulação internacional e mobilidade
social é realmente notável e demonstra a agência, iniciativa e habilidade de
alguns libertos para operar em circunstâncias definitivamente adversas."
Autor
do livro 'Cativos do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e Brasil',
o historiador Renato Pinto Venancio, professor na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) lembra à BBC News Brasil que "casos de ascensão social de
ex-escravos" merecem ser melhor estudados.
"É
importante conhecer esses casos-limite da escravidão, em que o sujeito nasce
escravo e, depois morre milionário", comenta. "Mas também é
importante não perder de vista a excepcionalidade desses casos. [...] A grande
maioria dos libertos morria na miséria e era enterrado como indigente."
Agoué
vista do mar
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COMPANHIA DAS LETRAS
Legenda
da foto,
Agoué
vista do mar
Volta à
África
Na
África, Joaquim era Zoki Zata. E suas viagens traficantes também construíam
raízes na costa do continente. Em 1835, construiu uma capela em Zokikome,
dedicada a Nosso Senhor Bom Jesus da Redenção. O próprio bairro, aliás, em
Agoué, havia sido fundado por Zoki e seus seguidores. Zokikome significa
"o bairro de Zoki".
O
antropólogo Parés ressalta que este é um "outro aspecto relevante": a
religiosidade desses africanos retornados da escravidão brasileira. "Sem
esquecer suas tradições ancestrais, eles adotavam o catolicismo [...] como
forma de agregar recursos espirituais complementares", pontua.
"Almeida é lembrado, por seus descendentes, como o introdutor do
catolicismo no litoral africano e por ter construído, décadas antes da chegada
das missões europeias, uma capela sob a invocação de Nosso Senhor da Redenção,
o mesmo nome da irmandade católica de homens pretos da qual participara na
Bahia."
"Essa
forma de abrasileiramento cultural, assumindo as formas da religião dominante,
facilitou sua mobilidade social numa sociedade escravocrata que tendia a
marginalizá-lo. Porém, de volta na África, ele também formou uma grande família
poligâmica na contramão da ortodoxia cristã e nos moldes das chefias
locais", ressalta.
Ainda
nos anos 1830 Zoki Zata ergueu sua casa na África. Gradualmente, ele começava a
ficar mais tempo lá do que no Brasil. Segundo as pesquisas de Parés, em 1840
ele já estava oficialmente sediado em Agoué, de onde centralizava negócios da
Bahia e mantinha relações com lideranças locais. A correspondência lhe era
endereçada sob as referências de "capitão" e "ilustríssimo
senhor", o que denota o respeito social que ele havia conquistado.
De 1838
a 1842, sua residência foi contínua no território africano. Então morou por
dois anos novamente na Bahia. Sua última viagem ao Brasil teria sido em 1845.
Em
1849, o oficial da Marinha inglesa Frederick E. Forbes (1819-1851) descreveu
Almeida como "o residente mais rico de Uidá, originário do país Mahi,
vendido como escravo, retornou da Bahia e é hoje um traficante de escravos de
grande escala". No ano seguinte, Forbes escreveu mais sobre ele,
classificando-o de "um homem astuto e notoriamente inteligente, educado no
Brasil no período de sua escravidão".
Em
1850, com a Lei Eusébio de Queirós, o cerco antiescravista passa a se fechar
contra pessoas como Almeida. Almeida experimentou um declínio de sua fortuna,
mas mesmo assim segue envolvido em negócios com traficantes.
Passou
também a diversificar suas atividades, atuando também no comércio de tabaco e
azeite de dendê. Em 1852, Almeida perdeu grande parte do seu patrimônio em um
incêndio. Ele afirmou, exagerando, que havia ficado "com apenas a camisa
que vestia".
Parés
entende, contudo, que desde o reestabelecimento na África até a morte, o grande
projeto de Almeida era formar uma grande família "nos moldes
africanos", diz o antropólogo -- ou seja, como um chefe africano de seu
tempo, tendo a vida familiar baseada na poligamia, numerosa descendência e
agregação de escravizados, seguindo um padrão dos "grandes homens"
das sociedades iorubás. As informações são desencontradas, mas tudo indica que
ele reconheceu como legítimos 34 filhos, mas teve outras dezenas, com muitas
mulheres diferentes — há indicações de que eram pelo menos 80.
Escreveu
o antropólogo e etnólogo Pierre Verger (1902-1996) que "percebemos em
Joaquim de Almeida o retorno aos valores africanos, seja no afã de procriar
inúmeros filhos como no de ser enterrado em sua própria casa, com cerimônias
que nada têm a ver com o catolicismo"
De
acordo com a tradição oral, Almeida teve uma "boa morte", tendo
morrido na praia, jogando adji enquanto aguardava a chegada de um navio
negreiro. Adji é um jogo de cálculo popular na África Ocidental. Outra versão
afirma que o africano teve uma morte causada por feitiço de um inimigo, depois
de um desentendimento decorrente de uma dívida.
Ficou
sua singular história.
"A
vida de Joaquim de Almeida apresenta numerosos aspectos de interesse e, na
verdade, em termos narrativos, sua biografia funciona como fio condutor que me
permite abordar uma série de temáticas historiográficas interrelacionadas, como
a vida dos libertos na Bahia oitocentista, o movimento de retorno a África, o
tráfico de escravizados no período ilegal ou os pormenores do comércio
atlântico que permitiu aos retornados se constituir numa elite local em terras
africanas", comenta Parés.
O
antropólogo conta que, em sua pesquisa, tentou "decifrar as aparentes
motivações e contradições" do personagem, "abrasileirado e
transgressor, católico e poligâmico, liberto e traficante, oprimido e opressor,
negro em terra de branco e 'branco' em terra de negro, um apátrida atlântico na
era dos nacionalismos".
Para
ele, "é preciso insistir na excepcionalidade da trajetória de Joaquim de
Almeida, um caso raro e singular de relativo sucesso econômico numa sociedade
classista, racista e desigual que marginalizava a maioria dos negros,
escravizados ou libertos".
O
pesquisador afirma que essa trajetória única "oferece uma janela
privilegiada para acessar o mundo de uma minoria de libertos africanos que, com
seus descendentes, conseguiu retornar à África e se afiançar como um grupo
diferenciado".
Túmulo
de Joaquim de Almeida
CRÉDITO,DIVULGAÇÃO/
COMPANHIA DAS LETRAS
Legenda
da foto,
Túmulo
de Joaquim de Almeida
Consciência
racial
O
historiador Venancio recomenda cuidado ao dizer que africanos também traficavam
escravos africanos. Ele afirma que, na época, não havia "essa identidade
continental", então o que coexistiam eram "várias etnias e reinos com
identidades próprias e que entravam em conflitos".
"Então
afirmar sobre o 'envolvimento de africanos' no tráfico de escravos é também
injusto ou, em parte, equivocado. Foram pequenas frações da classe dominante
local que se envolveram com o tráfico de escravos", frisa o historiador.
"A imensa maioria dos africanos foi vítima do tráfico de escravos."
Ele
ainda atenta para o fato de que "os africanos nunca construíram navios
para o envio atlântico de escravos ao Novo Mundo", "quem fez isso
foram os europeus".
Silva
Junior ressalta que uma história como a de Almeida tem de ser vista como
exceção. "Segundo o site Slave Voyages [banco de dados internacional de
documentos ligados ao tráfico escravagista], o Brasil recebeu mais de 5 milhões
de africanos durante toda a duração do tráfico negreiro. [...] Desses, apenas
uma pequena parcela, irrisória mesmo, teve envolvimento efetivo no comércio
atlântico de escravizados. E um número ainda menor prosperou como Joaquim de
Almeida."
Por
outro lado, o historiador comenta que "a participação africana no tráfico
é assunto para lá de conhecido". "Almeida não foi o primeiro, embora
tenha sido um dos mais prósperos que se tem notícia", diz. "Esse foi
o mundo que parte significativa deles conheceu, nos dois lados do
Atlântico."
Perguntado
pela reportagem se encontrou alguma indicação de objeção de consciência de
Almeida sobre o fato de ele, depois de ter sido escravizado, passar a ganhar a
vida como explorador escravagista, Parés afirma que "as evidências são
silenciosas a esse respeito".
"Cabe
notar, porém, que ao mesmo tempo que Almeida se engajava no nefando negócio do
tráfico de gente, ele atuou como procurador, na Bahia, na concessão de várias
cartas de liberdade a escravizados", ressalta.
"É
preciso lembrar que a escravização era uma instituição legal e basilar, não
apenas no Brasil império, mas também nas sociedade africanas em que Almeida
tinha nascido", pontua. "Nosso julgamento moral condenatório do comércio
de escravizados certamente não responde aos mesmos valores e referenciais que
prevaleciam na primeira metade do oitocentos, embora as vozes dos movimentos
emancipacionistas já fossem bem audíveis."
O
antropólogo concorda, entretanto, que Almeida "obviamente estava informado
do debate e tomou suas decisões". E afirma que um dos desafios "é
entender esse paradoxo da vítima que se torna algoz".
Silva
Junior contextualiza que "essa consciência racial é um fenômeno mais
tardio". "Aliás, essa cobrança é uma operação racista, pois ninguém
cobra consciência racial dos capitalistas brancos na Inglaterra do século 19
que exploravam os operários brancos das fábricas. Nem lá atrás e nem
agora."
"Essa
questão das identidades raciais é teoria do século 19. A ideia de África e
africano é uma ideia exógena, uma identidade atribuída. Os africanos se
auto-identificavam com suas identidades étnicas, seus povos, suas conexões
linguísticas", pontua o historiador Bezerra.
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