O que
significa cegueira moral?
A
cegueira vivenciada pelos personagens da literatura, não é decorrente de
problemas físicos, mas está relacionada a perda de sensibilidade ao sofrimento
dos outros, ou seja, trata-se de uma cegueira moral.7 de jan. de 2021
Direção
Nina Guimarães
Cegueira
moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida
Ensaio
sobre o livro Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida.:
BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 264pp.
No ritmo acelerado do mundo
contemporâneo, no qual a atenção dificilmente consegue se fixar em algo
importante, corremos o sério risco de perder a sensibilidade em relação aos
outros. Em “Cegueira Moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida”
(2014), Zygmunt Bauman, o maior pensador social contemporâneo, junto com o
filósofo e professor de ciência política da Lituânia, Leonidas Donskis, fazem
uma análise brilhante desse novo mal que assola nossa época e nos anestesia
perante o sofrimento alheio. Uma leitura fundamental e de grande interesse para
todos aqueles que se preocupam com as mudanças mais profundas que,
silenciosamente, moldam a vida dos homens na modernidade líquida, uma
modernidade que retrata tanto fenômenos compostos de aparência, quanto desprovidos
de referências.
Bauman
é talvez o maior pensador da humanidade que traduz, nomeia e contribui para a
nossa compreensão sobre ela. Lembrando que a sociologia pertence ao campo das
ciências humanas, a sociologia dele é o próprio relato da experiência humana
(sentimentos, desespero, insensibilidade, relações humanas). Assim, ele provoca
no seu leitor uma postura ética de se implicar no próprio discurso, de
reconhecer a alteridade do Outro, deixando de lado a tão conhecida dicotomia
entre quem diz e quem escuta, entre quem escreve e quem lê.
Para
quem não tem familiaridade com a adjetivação pós moderna deste autor,
atribuindo aos fenômenos atuais as mesmas propriedades presentes nos líquidos,
a vida líquida é aquela que facilmente se dissolve, evapora e dissipa de nosso
controle, de nossa consciência e de nossos valores mais absolutos. Na
transitoriedade e na banalidade de nossos laços afetivos, o compromisso é um
palavrão, significando a contramão de como a pós modernidade se apresenta. A
palavra de ordem é, ao invés disso, o descaso, a indiferença e o mínimo
sentimento de coletividade. O individualismo se expressa ferozmente, nos
induzindo à nomeada imoralidade de tempos antigos, pois a defesa do grupo, o
olhar cuidadoso e genuíno às necessidades do outro persistem como uma esquecida
nota de rodapé de nossos tempos contemporâneos.
"Salve-se
quem puder" é o lema atual, cuja vida política se desloca para os
bastidores e os nossos líderes são fantoches desrespeitosos e incrédulos por
uma multidão que se veste de indiferença para sobreviver à violência da qual
não apenas faz parte, como contribui para sua existência. Impedido de assumir
uma postura ética diante dos devaneios atuais, distante de suas premissas mais
básicas do viver, o cidadão atual nada mais é do que uma ilha isolada
defendendo seus interesses, tão pouco apropriados pelo próprio sujeito que o
defende, visto que ele nada mais é do que um representante inócuo de uma massa
produzida e manipulada pelos meios de comunicação.
A
tirania de nossa Era Tecnológica nos obriga, constantemente, a sermos nas
redes, pois só assim nos fazemos presentes, ou melhor, existimos. Estamos em
uma Era cujos dilemas não são permitidos, pois as possibilidades são amplamente
ofertadas. Então, por que devo parar e me concentrar no outro ou em seu
problema, quando no meu curto espaço de tempo, na minha indisponibilidade, não
posso perder tempo com a vitimização de quem não reproduz a ideologia dominante
(dilemas, não, possibilidades)? O viés tecnológico nos induz a espionar a vida
do outro sem o menor interesse de nela permanecer. Invado e vazo, sem que
qualquer compromisso seja firmado. Apertando uma única tecla delete, apago
qualquer indivíduo que antes considerei amigo.
Estamos
vivendo na época da ambivalência. As certezas de outrora sobre onde estava o
bem e o mal foram substituídas por uma indiferença e um descaso que não mais
dialoga com qualquer tipo de parceria, mas, ao invés disso, nos convida a
buscar o mal dentro de nós mesmos, estabelecer um confronto e um diálogo com
nossas próprias perversões. "Assim, o mal não está confinado às guerras ou
às ideologias totalitárias, mas sim quando revelamos uma atitude indiferente ao
sofrimento do outro, muito comum na atitude que ele denomina de cegueira moral
do homem contemporâneo”.
O
formato invisível da maldade na Modernidade Líquida nos perverte a cometer
crimes em nome de uma lealdade absurda ou do cumprimento de uma ordem. Acender
a câmera de gás nos campos de concentração do regime nazista nos exime da
culpa, pois estivemos apenas cumprindo ordens. Parar em um semáforo e enxergar
apenas a luz vermelha ou verde, nos abstendo da miséria encarnada nos
flanelinhas, é mais um exemplo da nossa cegueira moral, do nosso descompromisso
diante da violência da qual somos parte operante.
A
alienação que nos acompanha em um cotidiano veloz é caracterizada pelo descarte
de certezas absolutas dos tempos sólidos. A incerteza existencial
indigestamente degustada pelo homem contemporâneo é uma apavorante mistura de
ignorância e impotência, fonte inesgotável de humilhação de um grupo denominado
precariado (mistura de proletariado e classe média, termo cunhado pelo
professor e economista Guy Standing) que vivencia o pavor de montantes de
contas a pagar e a concomitante realidade indisponível de um mercado frígido de
ofertas de trabalho, gerando uma fonte de sofrimento que, longe de agregar,
fragmenta e divide seus sofredores.
Muitos
foram os autores que denunciaram há tempos os prejuízos de nossa Era. Milan
Kundera em seu romance, “A Imortalidade”, defendeu de que a realidade
desapareceu. Apresentara uma de seus personagens, uma velha senhora do interior
da Boêmia, que mais domínio tinha sobre sua própria vida do que um empresário
que circulasse pela Wall Street. Somos um grupo anônimo de seguidores de
crenças frágeis e voláteis, robóticamente cumpridas por uma massa
descomprometida. Aquilo que momentaneamente nos é apresentado pela mídia ganha,
rapidamente, o status de verdade. Os imagólogos são os engenheiros e
construtores de imagem que se utilizam da mídia para manipular seus seguidores
que reproduzem modelos sem a mínima crítica. Simulações de realidade ou
fabricações de consciência foram descritas em livros como “1984”, de George
Orwell ou “Admirável Mundo Novo”, de Huxley, evidenciando a manipulação dos
meios de comunicação sobre os indivíduos e a sociedade.
Os
denominados atos adiafóricos são aqueles dispensados por consenso social (local
ou universal) da avaliação ética, portanto, atos descompromissados de qualquer
vergonha, dores na consciência ou estigma moral. O sujeito contemporâneo se
comporta desta forma "protegido" pelo anonimato de uma comunidade que
invalida qualquer Outro, considerando irrelevante tudo aquilo que não atende
aos interesses próprios. A solidariedade é esquecida, os acordos solenes são
desfeitos de uma hora para a outra visando apenas o que agora pareça relevante.
Nessa transitoriedade, adotamos uma atitude blasé em aspectos que em outros
tempos eram enaltecidos - o trabalho, as relações, os valores - perdendo-se o
discernimento entre o que é verdadeiramente importante e o que pode ser
descartado. Ser blasé é trocar de um polo a outro sem sequer saber o porquê da
troca.
"Não
vivemos em uma era de pensamentos mas, sim, de fragmentos sonoros", dizem
os autores. A possível evaporação de nós mesmos pode ser sanada mediante o
Outro que nos reconhece, porque a memória vem de fora. São os Outros que dão
testemunho de nós e do mundo ao nosso redor. Os outros encontram em nós o que
nós mesmos perdemos. Mas esses outros nada mais são do que uma comunidade do
esquecimento necessário aos interesses de uma classe dominante - os imagólogos.
O
romance ou evangelho do avesso de nossos tempos modernos “A possibilidade de
uma ilha” de Houellebec, apresenta a morte de Deus quando se exterminam os
laços humanos e sociais, atribuindo uma correlação entre a existência de Deus e
os poderes da comunidade. Quando os alicerces da sociabilidade humana se
esvanecem, quando a linguagem se obstrui e os sentimentos não encontram via de
expressão, estamos diante da presença de Satã. Os que habitam este tipo de
sociedade, os bárbaros da humanidade contemporânea são indivíduos desprovidos
de emoções e sentimentos, puramente inteligentes, frios e insensíveis. Estão
isolados em seus narcisismos, diluídos em comunidades virtuais, sem um líder a
quem respeitem, atribuindo a si mesmo a totalidade e o poder de suas decisões.
Esse livro é uma teoria sociológica da sociedade, uma sociedade onde as pessoas
não desejam mais estar juntas. Quando são frustradas, substituem qualquer laço
por outro que lhes forneça vantagens.
O
indivíduo contemporâneo teme sua morte e sua extinção. A ciência, a tecnologia
e a genética constroem possibilidades anti envelhecimento e pró imortalidade.
Estamos em um mundo que exacerba o desejo, ao mesmo tempo que o castra. O amor
e o erotismo são substituídos pela masturbação, ou seja, por fazer sexo com
quem realmente é importante para mim - eu mesmo. Portanto, não existe mais o encontro de corpo
e alma com um Outro, mas sim um prolongamento da autossuficiência do homem
tecnológico que se estimula no espaço virtual através da pornografia. Temos que
nos usar, uns aos outros antes que o nosso prazo de validade expire.
Leonidas
Donskis pontua a traição e a lealdade como fenômenos do nosso mundo dignos de
apreciação. Cita a analogia da identidade do homem moderno com os móveis
modulares da Inglaterra na década de 60: módulos independentes eram comprados
em quantidades referentes às condições do comprador e eram montados de acordo
com o que o instante exigia, o armário de ontem virava uma cama hoje, sem
garantias do que viria a ser amanhã. Assim, a identidade do indivíduo se
transforma a cada momento, a depender de sua situação e necessidade, podendo se
alterar a cada novo dia. Os seres humanos não pertencem a mais nada e a ninguém
em sua inteireza de personalidade, qualquer imersão em grupos de pertencimento
é desfeita e abandonada livremente, qualquer contrato assinado hoje pode ser
quebrado sem que a palavra entre em desonra.
Cada um
de nós pode se tornar o que quiser. Escolhe sua nação, bem como qualquer
identidade moderna que lhe convier. Os poderes da comunidade e da cultura estão
tão frágeis, a sociabilidade tão prejudicada, que a identidade passa a ser uma
compilação de máscaras sem significados. Sem essência e de pura aparência,
somos verdadeiros líquidos em recipientes, onde a nossa forma de ser se molda e
se adequa a cada novo círculo de convivência ao qual participamos. Nossa
maleabilidade é indecente - assumimos rostos diversos e disfarçados conforme a
exigência do agora, sem nos determos a qualquer dimensão de ética e lealdade. Nossos
direitos camaleônicos, auto-intitulados e endossados por uma sociabilidade
débil, assumem o ápice do narcisismo, ignorando qualquer vestígio de existência
de um camarada.
As
metáforas da Era Moderna não cessam. Assim como os móveis modulares, Don Juan
de Marco é outro herói da modernidade. Campeão da sedução, do erotismo e do
prazer absoluto e fugaz, ele extrai de suas amadas tudo que deseja e nada lhes
oferta, nem mesmo o seu nome para que se livre de qualquer compromisso. Diante
dessa metáfora líquida do descompromisso moderno, onde foram parar conceitos
como lealdade e traição? Na Era do homem situacional, a lealdade torna-se
inoperante, desconfortável e ofegante. A fidelidade, por sua vez, é o avesso de
Don Juan, é a coragem de revelarmos nossas fraquezas e limitações mais
profundas, é a entrega incondicional a outro que nos ajuda na revelação de quem
somos, ao mesmo tempo que admitimos nosso despreparo para reconhecer tamanhas
debilidades.
Será
que a evaporação de nós mesmos pode ser sanada mediante o encontro com outro?
Os Outros são o testemunho de nós e do mundo ao nosso redor. Vivendo um momento
de perfeccionismo, de culto ao corpo, de aparência e de satisfação momentânea e
situacional, que permissão nos damos para expressar nossos erros, nossas falhas
e nossas imperfeições?
Diferentemente
da postura habitual de transformar encontros verdadeiros em amores de bolso,
descartados mediante o menor vacilo e substituídos por qualquer promessa de
lucro e satisfação momentânea, Bauman apresenta um fio de esperança para a
humanidade quando nos convoca a refletir sobre em que consiste o verdadeiro
encontro com o Outro.
O Outro
é simplesmente quem pode encontrar em nós o que nós mesmos perdemos. O Outro é
o maior convite de entrega profunda de nossas fragilidades. É a promessa de nos
despir da caricatura criada para agradar em contraposição a inteireza de quem
verdadeiramente somos, incluindo nossas vulnerabilidades, as porções de nós
mesmos que nos envergonha, embora também nos constitua. O verdadeiro encontro
entre dois seres acontece quando nos dispomos a nudez reveladora de nossa alma,
quando nos abstemos das máscaras e dos disfarces que compuseram nosso
estereótipo performático.
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