Obscurantismo e mordaça na educação
13 set 2017
Texto
Os fungos que se espraiam sobre a superfície nem sempre são visíveis, mas são devastadores. A imagem construída por Hannah Arendt (1906-1975) é pertinente para os dias que correm no Brasil. A “banalidade do mal”, exposta em Eichmann em Jerusalém (1963), é próxima das pessoas e suas lógicas insensatas e cúmplices diante de uma catástrofe que se anuncia. A sociedade brasileira, se vingar a proposta da “escola sem partido”, será a própria expressão de estar entregue a pessoas comuns que em sua mediocridade e superficialidade são capazes de causar males avassaladores. Em torno do combate à suposta doutrinação praticada por professoras e professores contra estudantes indefesos está o projeto capaz de destruir o presente e o futuro da educação no país.
A comparação entre Eichmann, um burocrata do
nazismo, e o movimento da “escola sem partido” pode parecer desproporcional ao
associar experiências distintas historicamente. Mas, como estratégia de
pensamento e de formulação, há aproximações evidentes. Em ambos, um
procedimento comum: a destruição da pluralidade, da diversidade, da vida
política e a sedução das “pessoas de bem” que se apresentam sem nenhuma carga
de monstruosidade, mas são capazes de aniquilar as liberdades e as diferenças
que são premissas da tradição republicana e democrática.
Ao deturpar regras, estimular o obscurantismo e
ignorar as dinâmicas da realidade escolar – complexa, contraditória, desigual e
polifônica – o projeto em questão é apresentado como uma salvaguarda da
sociedade e dos bons costumes. Nada mais falso. Ao expor professoras e
professores como alvos a serem denunciados em suas práticas pedagógicas, o
movimento revela sua estratégia autoritária e intimidatória que defende, na
prática, a mordaça disfarçada por trás da sedutora ideia de imparcialidade.
Toda escola, como microcosmo da sociedade, expressa um amplo espectro
ideológico, pedagógico, político, didático, científico, artístico e cultural.
Manifestantes durante sessão da Câmara de Campinas,
no último dia 4: vereadores aprovaram o projeto “Escola sem Partido” em
primeira votação | Foto: Valério Paiva
A inconstitucionalidade da proposta, como já
manifestado em decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo
Tribunal Federal (STF), em relação ao projeto aprovado em Alagoas, não inibe os
defensores da “escola sem partido”. E, para além da questão legal, há relatos
constantes de professores sendo ameaçados por dirigentes escolares, pais e
causando um constrangimento imenso ao trabalho docente, inclusive com a
demissão de professores. Há um desdobramento efetivo no cotidiano de pessoas
que estão nas escolas.
Às professoras e aos professores, por piores que
sejam suas condições de trabalho, foi atribuída uma função “doutrinadora”,
subversiva e destruidora de lares e reputações, segundo os formuladores da
“escola sem partido”. A competência do magistério está sendo questionada, mais
uma vez, como se suas e seus profissionais fossem pessoas amadoras fazendo
proselitismo político. Na escola, é necessário repetir, lidamos com ideias e
questionamentos a postulados filosóficos, científicos, sociais e culturais. E
não apenas na área das humanidades, notadamente, o campo mais vulnerável aos
ataques do espectro de censura que ronda o país.
Quem conhece a realidade da maioria das escolas
brasileiras, públicas e privadas, sabe das dificuldades das professoras e
professores e o desprestígio enfrentado pela docência. A “escola sem partido”
quer intensificar o descrédito de docentes e coibir o trabalho desses e dessas
profissionais. Aparentando neutralidade, o projeto em questão é carregado das
marcas ideológicas mais obscuras e pretende aniquilar a politização e a
participação na vida pública. A política, tal como concebida e originada entre
os gregos, é debate, é contradição, é argumento e construção de consensos
possíveis em torno do bem comum.
A fragilidade dos saberes diante do obscurantismo
O conhecimento é sempre transitório e está fadado a
contínuas reelaborações e superações. As descobertas científicas, por exemplo,
são superadas em maior ou menor velocidade a depender das áreas e das condições
de produção e circulação dos saberes. Esse aspecto é um dos mais belos
estímulos aos cientistas, pesquisadores e professores. As certezas de uma época
são solapadas pelas gerações seguintes ou reafirmadas em outras bases. Para que
o conhecimento possa ser transformador, ele precisa ser estimulado na tarefa
básica de exercer a dúvida, de contextualizar questões e evitar a propagação do
dogmatismo de qualquer natureza.
A tarefa de pensar é o maior atributo que a escola
deve estimular. Não é fácil falar de classes gramaticais, das leis da física,
de gêneros textuais, da experiência colonial, de algoritmos, da genética e
tantos outros temas para crianças e jovens. Mas todos os saberes que compõem a
base do repertório curricular originam-se a partir de perguntas e questões que
estimulam a reflexão e estão relacionadas a mudanças na vida dos povos,
sociedades e indivíduos.
O projeto de lei que ameaça a liberdade de ensino e
restringe a liberdade de expressão de professoras e professores procura
apresentar-se como salvaguarda do “pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas”, da “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado” e da
“liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber”.
Entretanto, junto com essas afirmações extraídas de
seu documento oficial há mecanismos para a construção de um ambiente hostil a
professoras e professores e propício a denúncias anônimas. Instaura-se a
suspeição e rejeita-se a confiança necessária no espaço escolar. O projeto de
lei prevê que pais e estudantes denunciem, sem identificação, o que consideram
ser o descumprimento da lei. A inquisição, os regimes totalitários, o
macarthismo e as ditaduras, por exemplo, usavam o expediente do anonimato e
provocaram perseguições e execuções em nome de interesses variados. A
famigerada proposta da “escola sem partido” impõe a inversão dos princípios
basilares do direito moderno e reaviva episódios de triste e dolorosa
lembrança. Na democracia, as diferenças devem ser tratadas com transparência e
de forma pública.
A proposta estimula a autocensura e o
desaparecimento do potencial crítico que se deseja na educação e na formação de
crianças e jovens. A escola amordaçada estaria mais próxima do obscurantismo e
do conhecimento pautado na autoridade policialesca que teriam coordenadores,
diretores e dirigentes de ensino. Se há dúvidas em relação ao
obscurantismo, basta ler como a proposta menciona a questão do respeito à
educação religiosa e moral oferecida pela família. Será que professores estão
numa cruzada secular contra o pensamento religioso? Quantos docentes não
professam algum tipo de crença? Será que católicos, evangélicos, espíritas,
umbandistas e outras confissões ou mesmo os ateus estão na escola como
estratégias missionárias? Isso ofende até o senso comum.
Ao amparar-se na defesa da moral e da religião o
que se pretende? O que revela tal preocupação? Que o darwinismo não seja
ensinado? Será que, em pleno século XXI, há pessoas que supõem que seus filhos
não professam os mesmos princípios religiosos e morais dos pais por causa do
discurso científico ou de uma crítica sociológica feita por algum professor? É
curioso como os fundamentalismos religiosos são criticados do outro lado do
mundo, mas constrói-se um sistema de cumplicidades entre políticos
conservadores e pessoas amedrontadas diante do nosso nariz. O que diriam os
meios de comunicação, que salvo exceções não comprou esta batalha ao lado de
educadoras e educadores, se suas produções artísticas, humorísticas e
noticiosas tivessem que ser enquadradas na lógica da escola sem partido? Censura
ou apartidarismo?
O obscurantismo não está associado apenas ao
discurso moral e religioso: ele também é político e estético. Nas últimas
semanas, dois assuntos tiveram destaque nas discussões das redes sociais. Num
deles, a questão sobre o nazismo ser ou não de esquerda. É incrível como apenas
e tão somente nas redes sociais brasileiras isso seja algo a ser considerado.
Não há ninguém com mínimo critério e conhecimento que possa argumentar em torno
dessa falácia e negar que o nazismo, embora tenha o nacional-socialismo no nome
do partido de Hitler, seja a expressão mais radical da extrema-direita. O outro
assunto foi o encerramento de uma exposição de arte queer no Rio Grande
do Sul. A arte, com o potencial de incomodar e produzir outras visões de mundo,
desgostou um grupo reacionário e de eficiente atuação na política e na mídia
brasileira que, contrariado, exigiu o fechamento da mostra no espaço cultural
de um grande banco privado. Foi a evidência de um sistema de patrulhamento
camuflado pela defesa do “meu gosto individual”.
A necessidade de defender o óbvio
A “escola sem partido” é ofensiva por desconsiderar
que os princípios de uma educação republicana (tratamento isonômico e de
igualdade de oportunidades) e democrática (liberdades e direitos plenos) só
pode ser realizada com autonomia, crítica e pluralidade. Qualquer forma de
cerceamento é absurda e deveria ser rejeitada pelos diferentes grupos sociais e
políticos. A criminalização do espaço escolar e das práticas educacionais é um
mecanismo de dominação pública que nos aproxima de práticas de vida tirânicas.
A educação escolar, como questão pública, não pode
ser refém de projetos e devaneios que impõem ao outro a impossibilidade de
existir e de se manifestar. Restringir o acesso a informações, questionamentos,
acervos culturais e científicos são uma forma de perpetuar a desigualdade de
oportunidades.
Quando o padrão legal, como pretendido na “escola
sem partido”, é a base para impedir discussões sobre a transformação da
sociedade pela educação, é sinal de que não somos mais uma sociedade. Parte da
argumentação da “escola sem partido” ao acusar a escola de doutrinação está
associada aos esforços de se promover, a partir da Constituição de 1988, uma
educação pautada nos direitos humanos e no combate a preconceitos sociais,
étnico-raciais, de gênero, regionais e outros. Os mecanismos de controle sobre
educadoras e educadores não podem perpetuar a misoginia, o racismo, a homofobia
e qualquer forma de educação que apague o respeito às diferenças e a
expectativa de construir um outro futuro.
A hipotética vitória do projeto da “escola sem
partido” será a evidência do fracasso da educação como projeto transformador
das pessoas e da sociedade. Seremos uma sociedade desesperançada e destruída. E
não há educação, com o sentido que o termo indica, que não carregue consigo a
esperança, mesmo trilhando entre tantas incertezas.
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