HISTÓRIA DOS CIGANOS NO BRASIL – Ladrões e o mito do roubo
de crianças
Publicado em 21 de março de 2006
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Ladrões de galinha, de cavalos e de crianças, eis
algumas variações da mesma forte imagem do cigano ladrão. Entre os delitos dos
quais são acusados, nenhum foi mais frequente e significativo do que o roubo.
Por esta razão é também o mais temido traço do "caráter cigano". Como
um ato imperdoável, principalmente num momento em que a noção de propriedade ia
ganhando cada vez mais força, a associação ao roubo impregnava com um estigma
marcante os tão "suspeitos" ciganos.
Há uma longa trajetória de incompreensão dos não-ciganos quanto aos furtos ciganos. Alguns ciganólogos consideram que os primeiros ciganos que chegaram ao continente europeu traziam consigo o hábito da pilhagem, comum em certas regiões da Ásia (continente de origem provável de pelo menos alguns grupos ciganos). Ao contrário do que entendiam os direitos consuetudinários dos países europeus, nestas regiões asiáticas, a pilhagem não era considerada um delito, principalmente quando feita por viajantes. "Desde sua chegada à Europa, os ascendentes dos Rom continuaram a exercer seu ‘direito à pilhagem’, moldando-se assim em tudo inocente uma primeira reputação de ‘ladrões’."
Tendo em vista esta longínqua origem da principal má fama dos ciganos, em Minas Gerais, durante o oitocentos esta reputação engendrava a seguinte dinâmica: à medida que apareciam boatos de que um bando de ciganos estava chegando a uma determinada região, muitos ladrões não-ciganos passavam a aumentar suas atividades, na certeza de que estariam impunes e a culpa seria atribuída por toda população aos ciganos. Diante da freqüência com que isto ocorria, atribuindo-se toda desconfiança aos ciganos, estes não tinham mais razão de ficarem constrangidos ¾ saliente-se que a má fama dificultava as transações comerciais ¾, o que reforçava a imagem que originalmente lhes foi imposta. Por outro lado, o fato de um cigano roubar e ser pego, era mal visto pelo bando ao qual pertencia, já que a culpa do cigano José ou do cigano Pedro, seria atribuída a todo o grupo. Se José é um homem pobre livre que rouba, por exemplo, ele é um mau sujeito. Se ele é cigano, rouba porque é cigano. Com o desenrolar destas relações hostis, os ciganos reverteram essa imagem moral, em princípio negativa, transformando-a em algo para se orgulhar em determinadas circunstâncias, pois os diferenciava frente aos não-ciganos.
Para o cigano, o uso de artimanhas, para ludibriar o não-cigano, era uma forma de afirmação frente ao grupo, demonstrando ser mais esperto que o negociante mineiro. A variante do ladrão de animais, sobretudo cavalos e bestas de carga, é a mais forte desta imagem. As acusações de roubo de animais eram frequentes, embora fossem difíceis de provar tais queixas. Em Vila Rica, num documento de 1800, registra-se "A devassa pelo achado dos furtos de bestas em poder do cigano João Manoel e outros no sítio dos crioulos."
Além das já citadas suspeitas de roubos de escravos, constavam também acusações relativas a roubo de crianças. Neste sentido, é importante considerarmos, ligeiramente, o percurso da imagem do cigano ladrão de criança na Europa.
Quando Cervantes, no início do século XVII, criou o tema do roubo de crianças pelos ciganos, estava inaugurando um dos maiores filões da literatura ficcional sobre os ciganos. No século XIX, numerosos autores utilizaram o tema da criança roubada como objetivo "educativo". Acreditavam que o contraste entre o "mundo civilizado" dos jovens leitores e a "vida perniciosa" dos ciganos, por suposição, incitaria as crianças a apreciar mais sua própria cultura e a obedecer a seus pais. Essas “estórias” fantasmas contribuíram bastante para criar uma imagem extremamente negativa dos ciganos. Assim os autores manipulavam a imagem dos ciganos para valorizar as virtudes cívicas e civilizadas dos não ciganos. Essa literatura sobre os ciganos foi uma estratégia de educação moral, portanto de dominação.
Uma vez considerada a origem literária do mito de roubo de crianças, não devemos descartar a possibilidade de ciganos acolherem crianças que ficavam fascinadas, com seu modo de vida. Eventualmente, famílias ciganas podem ter adotado crianças não ciganas abandonadas por mães (geralmente solteiras) não ciganas. Vale lembrar que nas vilas de Minas entre 1700 e 1715, "de cada 100 nascimentos, 90 eram de filhos ilegítimos." Com a decadência da mineração e a sedentarização crescente da população mineira, o número de filhos ilegítimos diminuiu, mas durante os oitocentos ainda era grande o número de enjeitados.
Provavelmente, algumas famílias ciganas adotaram muitas dessas crianças. Além de ser uma estratégia de fortalecimento do grupo pelo aumento numérico, a adoção restituía parcialmente o status aos casais ciganos que por alguma razão não podiam conceber naturalmente seus filhos ¾ já que a maternidade e, se possível uma prole numerosa, era bastante valorizada pelos ciganos. Dessas adoções, obviamente sem qualquer formalização jurídica, surgiram muitas reclamações de pais legítimos arrependidos.
Ilustrando tais suspeitas, houve em Pará de Minas, em 1881, o caso do menino Benjamim Oliveira que fugiu junto com a Companhia Sotero, circo do qual posteriormente escaparia: "Partiu com ciganos (…) Descobre, entretanto, que os ciganos desejavam trocá-lo por um cavalo. Escapou novamente (…)." Há, ainda, acusações mais graves. A primeira de que ciganos teriam seqüestrado uma criança em Vassouras (Província do Rio de Janeiro) para comê-la, em 1888. Já, em 1892, encontrou-se em Bom Sucesso (Minas Gerais) "o esqueleto de uma criança desaparecida há seis meses". Como na mesma época do desaparecimento, havia chegado um bando de "turcos" (uma das designações dos ciganos dadas pelos mineiros), esta mera coincidência, associada às imagens tradicionais, revoltou a população, colocando os ciganos mais uma vez como bode expiatório.
Há uma longa trajetória de incompreensão dos não-ciganos quanto aos furtos ciganos. Alguns ciganólogos consideram que os primeiros ciganos que chegaram ao continente europeu traziam consigo o hábito da pilhagem, comum em certas regiões da Ásia (continente de origem provável de pelo menos alguns grupos ciganos). Ao contrário do que entendiam os direitos consuetudinários dos países europeus, nestas regiões asiáticas, a pilhagem não era considerada um delito, principalmente quando feita por viajantes. "Desde sua chegada à Europa, os ascendentes dos Rom continuaram a exercer seu ‘direito à pilhagem’, moldando-se assim em tudo inocente uma primeira reputação de ‘ladrões’."
Tendo em vista esta longínqua origem da principal má fama dos ciganos, em Minas Gerais, durante o oitocentos esta reputação engendrava a seguinte dinâmica: à medida que apareciam boatos de que um bando de ciganos estava chegando a uma determinada região, muitos ladrões não-ciganos passavam a aumentar suas atividades, na certeza de que estariam impunes e a culpa seria atribuída por toda população aos ciganos. Diante da freqüência com que isto ocorria, atribuindo-se toda desconfiança aos ciganos, estes não tinham mais razão de ficarem constrangidos ¾ saliente-se que a má fama dificultava as transações comerciais ¾, o que reforçava a imagem que originalmente lhes foi imposta. Por outro lado, o fato de um cigano roubar e ser pego, era mal visto pelo bando ao qual pertencia, já que a culpa do cigano José ou do cigano Pedro, seria atribuída a todo o grupo. Se José é um homem pobre livre que rouba, por exemplo, ele é um mau sujeito. Se ele é cigano, rouba porque é cigano. Com o desenrolar destas relações hostis, os ciganos reverteram essa imagem moral, em princípio negativa, transformando-a em algo para se orgulhar em determinadas circunstâncias, pois os diferenciava frente aos não-ciganos.
Para o cigano, o uso de artimanhas, para ludibriar o não-cigano, era uma forma de afirmação frente ao grupo, demonstrando ser mais esperto que o negociante mineiro. A variante do ladrão de animais, sobretudo cavalos e bestas de carga, é a mais forte desta imagem. As acusações de roubo de animais eram frequentes, embora fossem difíceis de provar tais queixas. Em Vila Rica, num documento de 1800, registra-se "A devassa pelo achado dos furtos de bestas em poder do cigano João Manoel e outros no sítio dos crioulos."
Além das já citadas suspeitas de roubos de escravos, constavam também acusações relativas a roubo de crianças. Neste sentido, é importante considerarmos, ligeiramente, o percurso da imagem do cigano ladrão de criança na Europa.
Quando Cervantes, no início do século XVII, criou o tema do roubo de crianças pelos ciganos, estava inaugurando um dos maiores filões da literatura ficcional sobre os ciganos. No século XIX, numerosos autores utilizaram o tema da criança roubada como objetivo "educativo". Acreditavam que o contraste entre o "mundo civilizado" dos jovens leitores e a "vida perniciosa" dos ciganos, por suposição, incitaria as crianças a apreciar mais sua própria cultura e a obedecer a seus pais. Essas “estórias” fantasmas contribuíram bastante para criar uma imagem extremamente negativa dos ciganos. Assim os autores manipulavam a imagem dos ciganos para valorizar as virtudes cívicas e civilizadas dos não ciganos. Essa literatura sobre os ciganos foi uma estratégia de educação moral, portanto de dominação.
Uma vez considerada a origem literária do mito de roubo de crianças, não devemos descartar a possibilidade de ciganos acolherem crianças que ficavam fascinadas, com seu modo de vida. Eventualmente, famílias ciganas podem ter adotado crianças não ciganas abandonadas por mães (geralmente solteiras) não ciganas. Vale lembrar que nas vilas de Minas entre 1700 e 1715, "de cada 100 nascimentos, 90 eram de filhos ilegítimos." Com a decadência da mineração e a sedentarização crescente da população mineira, o número de filhos ilegítimos diminuiu, mas durante os oitocentos ainda era grande o número de enjeitados.
Provavelmente, algumas famílias ciganas adotaram muitas dessas crianças. Além de ser uma estratégia de fortalecimento do grupo pelo aumento numérico, a adoção restituía parcialmente o status aos casais ciganos que por alguma razão não podiam conceber naturalmente seus filhos ¾ já que a maternidade e, se possível uma prole numerosa, era bastante valorizada pelos ciganos. Dessas adoções, obviamente sem qualquer formalização jurídica, surgiram muitas reclamações de pais legítimos arrependidos.
Ilustrando tais suspeitas, houve em Pará de Minas, em 1881, o caso do menino Benjamim Oliveira que fugiu junto com a Companhia Sotero, circo do qual posteriormente escaparia: "Partiu com ciganos (…) Descobre, entretanto, que os ciganos desejavam trocá-lo por um cavalo. Escapou novamente (…)." Há, ainda, acusações mais graves. A primeira de que ciganos teriam seqüestrado uma criança em Vassouras (Província do Rio de Janeiro) para comê-la, em 1888. Já, em 1892, encontrou-se em Bom Sucesso (Minas Gerais) "o esqueleto de uma criança desaparecida há seis meses". Como na mesma época do desaparecimento, havia chegado um bando de "turcos" (uma das designações dos ciganos dadas pelos mineiros), esta mera coincidência, associada às imagens tradicionais, revoltou a população, colocando os ciganos mais uma vez como bode expiatório.
Nenhuma das acusações de roubo, acompanhada ou não por assassinato ou canibalismo, foi comprovada. No entanto, estas simples suspeitas somadas a eventuais casos reais de trapaças e roubos, por exemplo, no comércio de cavalos, solidificava a ideia de ciganos como sinônimo de ladrões.
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