terça-feira, 29 de setembro de 2020

A CORRUPÇÃO MATA...A ALMA...


A outra pandemia: a Covid-19 e a corrupção

Por Roberto Laver
 
Neste artigo, Roberto Laver chama a Igreja global a ser uma referência de integridade e honestidade. Ele expõe o legado prejudicial da corrupção em diversas sociedades ao redor do mundo, e pontua que a Covid-19 está amplificando o potencial de corrupção à medida que grandes somas de dinheiro circulam na luta contra o vírus e seus desdobramentos. Na sequência, outro artigo em resposta a Laver produzido pela Comissão de Missões da World Evangelical Alliance (WEA) [Aliança Evangélica Mundial] traz algumas implicações missiológicas sobre a reflexão de Roberto, e desafia a comunidade missionária a ajudar as igrejas no combate à corrupção.
 
A pandemia de coronavírus cobrou um drástico preço da humanidade, infectando milhões e tirando a vida de centenas de milhares de pessoas em todo o mundo. Não se trata apenas de uma crise de saúde, é também uma crise econômica e social. Por todo o mundo, o vírus forçou governos a decretarem confinamentos (lockdowns) severos, ocasionando a mais brutal recessão vivida por esta geração. O impacto do vírus, contudo, não é sentido da mesma forma por todos.
 
A pandemia está expondo os efeitos devastadores e os riscos reais de outra pandemia: a de corrupção sistêmica. Frequentemente sendo tachada como “normal” ou simplesmente como uma questão muito “política” ou abrangente demais para ser enfrentada, a corrupção sistêmica vem sendo amplamente negligenciada pela Igreja. Contudo, não podemos mais ignorar essa injustiça. A corrupção sistêmica (como prática institucionalizada de abuso de poder e confiança pública) prejudicou de forma grave a capacidade da maioria dos países de lidar com as consequências econômicas e de saúde pública recorrentes da pandemia. A soma de recursos destinados à saúde perdidos por conta de corrupção e desvios impressiona por si só. Várias fontes estimam que mais de 10% dos investimentos em saúde vão para o pagamento de propinas e peculato, acumulando perdas de mais de 500 bilhões de dólares anualmente.[1] Essa estimativa não leva em conta outras formas de corrupção que prejudicam o acesso à saúde e a qualidade dos serviços prestados como clientelismo generalizado, troca de favores, nepotismo e favoritismo.
 
Para tornar a situação ainda pior, a pandemia tem sido o cenário ideal para o aumento da corrupção. Suborno induzido pela escassez, desvio de recursos de respostas a emergências e propinas em processos de aquisição de emergência são apenas algumas das formas predominantes de corrupção que se manifestam durante esta pandemia. Isso aumenta o custo social, humano e econômico da crise, particularmente para os mais vulneráveis na sociedade. Quando há pacientes que podem pagar subornos ou usar conexões pessoais para receber acesso imediato ao atendimento, os mais vulneráveis são deixados no final da lista de espera. Se o suborno e as conexões forem usados para contornar as medidas de quarentena, então, existe um risco potencial de infecção maior para a população em geral, intensificando ainda mais a crise humanitária.
 
Um artigo recente publicado pela Carnegie Endowment colocou da seguinte forma:
 
A corrupção é como jogar gasolina nas chamas de uma pandemia. Sistemas de saúde já debilitados por práticas ilícitas lutarão para conseguir atender as necessidades mais básicas durante a crise. Cidadãos que não têm como pagar por privilégios podem ficar sem acesso a testes ou tratamento, um problema que pode acelerar a propagação do vírus. Aqueles que podem “dar um jeitinho” para driblar a quarentena provavelmente o farão… E as tentativas do governo de passar mensagens de orientação sobre medidas preventivas provavelmente fracassarão em lugares onde a confiança em relação ao estado foi minada por décadas de corrupção.[2]
 
A pandemia gerou enormes gastos públicos em todo o mundo relacionados à saúde e aos custos econômicos associados. O montante de ajuda financeira internacional não tem precedentes: só o FMI já forneceu cerca de 90 bilhões de dólares para ajudar 80 países a lidar com a pandemia, e prometeu um total de 250 bilhões de dólares.[3] Mas as evidências mostram que a eficácia dessa ajuda financeira será gravemente enfraquecida em contextos de corrupção generalizada.[4] Uma porção de relatos sobre fraudes e corrupção relacionadas a gastos públicos voltados ao combate da crise da Covid-19 emergiram.[5]
 
Atores da sociedade civil em países ao redor do mundo estão demandando medidas para  proteção e exigindo prestação de contas em relação às ações de assistência emergencial ligadas à Covid-19. Na América Latina, treze divisões da Transparência Internacional, a maior ONG anticorrupção no mundo, apresentaram propostas específicas para mitigar o risco de corrupção em gastos públicos como parte da resposta da região à pandemia.[6] Dentre essas divisões está a Asociación para una Sociedad Más Justa (ASJ) [Associação para uma Sociedade Mais Justa], uma ONG cristã em Honduras membro da Faith and Public Integrity Network (FPIN) [Rede de Fé e Integridade Pública]. A ASJ, junto com muitos outros grupos da sociedade civil, está ativamente monitorando gastos públicos com saúde (e com outras áreas) que estão sendo feitos pelo governo de seu país. A AJS é um modelo inspirador de engajamento de um grupo de fiéis na luta contra a corrupção governamental em sua própria comunidade.
 
A corrupção, como uma expressão de profunda injustiça, deveria fazer os fiéis se importarem quanto ao nosso comportamento e testemunho, bem como quanto à ordem social em que que vivemos. A crise da pandemia é um chamado para a Igreja – seus líderes e todos os seguires de Jesus – acordar para o fato de que a luta contra a corrução é central para nossa missão integral. A corrupção é algo com que Deus se importa imensamente.
 
A corrupção destrói uma nação (Pv 29.4). É um sorvedouro de fundos, recursos, oportunidades, esperanças e da habilidade de desenvolvermos nosso potencial e capacidades dados por Deus. É um câncer com efeitos corrosivos no desenvolvimento político, econômico e social das sociedades. É o pior dos obstáculos ao alívio da pobreza. É uma negação à justiça e uma obstrução ao shalom [de Deus], ao bem-estar comum da sociedade. Além do mais, como a pandemia mostra, é uma questão de vida ou morte.
 
Estamos esperançosos que uma vacina efetiva para a Covid-19 seja desenvolvida o mais breve possível e distribuída de forma equitativa. No entanto, nenhuma outra simples vacina pode ser desenvolvida para essa “outra pandemia”. Não há uma panaceia única contra a corrupção.
 
Ao longo das últimas três décadas, as principais organizações internacionais, governos nacionais e especialistas têm promovido e implementado medidas anticorrupção. Mudanças nas estruturas constitucionais, novas leis sobre transparência e prestação de contas e novas agências anticorrupção são algumas das ferramentas mais comuns. Essas reformas são primordialmente em prol de alterações legais e institucionais, e o esperado seria que tais mudanças modificassem, por consequência, comportamentos e padrões culturais. Mas, de forma geral, essas mudanças não estão produzindo uma transformação sustentável das sociedades na direção de uma integridade pública consistente e de menos corrupção. Inúmeras avaliações, corroboradas por experiências práticas, indicam que houve pouco avanço. A despeito de décadas de reformas e de bilhões de dólares investidos, muitos países se mantém tão ou mais corruptos do que antes das reformas.
 
Há uma crescente percepção entre a comunidade anticorrupção de que a luta não é simplesmente um esforço tecnocrático, mas algo que envolve mudanças culturais profundas e normas sociais sobre como os cidadão se relacionam com o estado e uns com os outros. Reformas legais e institucionais são mediadas e condicionadas pela política cultural prevalecente e por normais sociais. Em sociedades onde normas de privilégio, particularismo e favoritismo são a regra, não é de surpreender que a mera mudança burocrática nas leis e nas instituições não gere efeito algum. Pior, como muitos casos mostram, essas mudanças podem ser manipuladas e utilizadas de forma abusiva em detrimento daqueles que exigem serviços públicos honestos.
 
Vozes de especialistas enfatizam que sociedades devem construir uma cultura mais robusta e/ou restrições normativas contra um comportamento corrupto. Mudanças legais não são suficientes. Precisamos construir uma cultura de integridade, que inclua valores como justiça e honestidade, participação cidadã e engajamento político, além de social capital [uma tradução literal seria capital social, mas o conceito diz respeito a redes de relacionamentos entre as pessoas que vivem em determinada sociedade e que viabilizam um funcionamento efetivo/sustentável].
 
A Igreja, seus líderes e fieis de forma geral, estão em boa posição para serem agentes de transformação positiva. Precisamos, contudo, fazer as seguintes pergunta a nós mesmos:
  • Como as igrejas e seus líderes modelam e incutem valores de integridade pública e cidadania responsável?
  • Até que ponto as igrejas estão encorajando uma ação coletiva para influenciar as estruturas governamentais e as práticas de governança na sociedade?
Tragicamente, temos de admitir que o retrato não é muito encorajador. Integridade pública e corrupção são assuntos praticamente ausentes dos púlpitos e da reflexão teológica. Profissões de fé não são acompanhadas por atitudes e comportamentos que demonstram integridade pública. Testemunhamos muitos casos em que os líderes de igrejas e os crentes participam de práticas corruptas, ou são passivos e indiferentes a elas e a seus efeitos devastadores nas comunidades – particularmente entre os mais pobres e menos privilegiados na sociedade.
 
Oremos para que a crise da Covid-19 nos leve a ser uma Igreja transformada, ativamente engajada e comprometida em contribuir com a cura dessa “outra pandemia”.

> Confira a resposta da Comissão de Missões da Aliança Evangélica Mundial ao artigo de Laver.
 
• Roberto Laver é advogado e atua na área de direito internacional. Iniciou sua carreira na Argentina, e acumula três décadas de experiência nos setores corporativo, acadêmico, multilateral e no terceiro setor. Suas principais especialidades incluem governança anticorrupção, estado de direito, organizações internacionais de desenvolvimento (incluindo entidades confessionais). Ele é reconhecido como um forte estrategista, construtor de pontes e um honesto e entusiástico líder. Atualmente, está à frente da FIDES, uma ONG que ajuda a engajar e equipar líderes de igrejas e comunidades na promoção da integridade pública e na luta contra a corrupção.

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