E a cocaína?
JOAQUIM FALCÃO
Importante gaúcho e respeitado ministro aposentado do Supremo contou-me esta história. Talvez possa trazer alguma luz ao debate sobre Lava Jato.
O Supremo julgava um traficante de drogas. Preso com trinta ou mais quilos de cocaína. Não lembro bem. Uma enormidade. Na apreensão, ou durante o processo, uma autoridade teria cometido ato duvidoso diante da lei.
A defesa argumentou ofensa ao princípio de devido processo legal. Donde, in dubio pro reo. O debate no Supremo caminhava rotineiramente para a soltura e absolvição do traficante preso.
Quando, surpresa, um ministro perguntou a seus colegas: “E a cocaína? O que fazemos com os mais de trinta quilos apreendidos?”
Se não houve crime, há que se devolvê-la a seu legítimo proprietário: o traficante. O estado não poderia confiscá-la com base em eventual equívoco processual da autoridade coatora. Pelo menos naquele processo e por aquele motivo.
A analogia é inevitável. O que fazer com a corrupção? Devolvê-la aos corruptos?
O que se faz com as provas provadas? Com os dólares do apartamento do ex-ministro Geddel Vieira? Com a mala de dinheiro de Rocha Loures? Com as contas não declaradas da Suíça? Com ilícitos recursos já devolvidos? Com as confissões confessadas? Perícias confirmadas? A quem devolver? À sociedade?
Dificilmente vai se combater a corrupção com processos individualizados.
O decisivo são as estratégias sistêmicas. A legislação processual e o formalismo interpretativo alimentam a irresponsabilização judicial.
O excesso do devido processo legal é uma doença. Inchaço. Patologia. É o processualismo.
Este processualismo tem efeito reverso. É como o muito receitar de antibióticos. O corpo cria defesas. De tantos incidentes processuais, a corrupção cria também defesas.
Longe viver sem o devido processo legal e o pleno direito de defesa. Ao contrário. Mas seu inchaço não nos leva à saúde da democracia.
Quem transforma o saudável direito processual em patológico processualismo?
A estatística, pura e simplesmente.
O mero cálculo das probabilidades.
São tantas, dezenas, milhares de condições exigidas pela nossa legislação processual que, estatisticamente, torna-se altamente provável que, no correr dos anos do processo, se consiga adiar ou anular qualquer um.
O culpado não são apenas os infinitos recursos, agravos, embargos, despachos, petições.
São as dezenas de juízes que interferem em um só processo. O juiz de primeira instância, os juízes substitutos, os desembargadores, os plenários, as turmas, juízes de plantão, juiz que foi removido, outro que foi transferido, o que foi promovido, o outro que está de licença, outros tantos entraram em férias. E por aí vamos.
Com quantos juízes se fez um processo até o Supremo? A crença do juiz natural é apenas uma ilusão jurídica liberal.
Basta um bom advogado, pagar os custos da demora e pronto. O labirinto dos recursos se cruza com as dezenas de juízes em um mesmo caso.
Probabilisticamente, a irresponsabilização da corrupção é tiro certo.
Este processualismo não defende a sociedade. São rituais de impunidades e desigualdades judiciais.
Como dizia Talleyrand: “Tudo em excesso, torna-se insignificante”.
Artigo publicado originalmente no jornal O Globo, no dia 09 de julho de 2019.
https://joaquimfalcao.com.br/blog/2019/07/09/e-a-cocaina/
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