Missa da Meia-Noite – o próprio Satanás se transforma em anjo de luz
Por Carlos Caldas
Atenção: contém spoiler
Atenção: contém spoiler
Missa da Meia-Noite – Midnight Mass no original – é
uma produção de 2021 veiculada pelo canal de streaming Netflix. É
criação do cineasta Mike Flanagan, que tem em seu currículo muitas produções do
gênero terror, e é exatamente nessa categoria que Missa da Meia-Noite se
insere. Terror definitivamente nunca foi e não é de modo algum meu gênero
favorito, mas há quem goste. Não sem razão dizem que gosto não se discute...
Todavia, justiça seja feita: o terror de Missa da Meia-Noite não é dos
mais pesados. É um terror com elementos de drama, que levanta questionamentos
importantes sobre como a crença religiosa – no caso da minissérie, a fé cristã
– pode ser vivenciada, ou como instrumento de cura e graça ou como expressão
das piores patologias e perversões que o ser humano é capaz de ser e cometer.
A narrativa é contada em sete episódios, chamados de “livros” cada um com cerca
de uma hora de duração, todos tendo por título um livro bíblico:
Livro I: Gênesis
Livro II: Salmos
Livro III: Provérbios
Livro IV: Lamentações
Livro V: Evangelhos
Livro VI: Atos
Livro VII: Apocalipse
A escolha dos mencionados livros bíblicos para títulos dos capítulos não foi
aleatória, pois o conteúdo de cada “livro” da minissérie capítulo/episódio se
relaciona de alguma maneira ao livro bíblico que o intitula. A relação mais
óbvia está justamente no primeiro – Gênesis, o início da narrativa – e no
último – Apocalipse, o desfecho cataclísmico da história. Além dos títulos dos
livros bíblicos, não há como não observar a quantidade de episódios: não são
nem seis e nem oito, mas exatamente sete, número simbólico de perfeição na
literatura bíblica. Outro ponto a ser observado é, no mínimo, curioso:
brasileiros evangélicos que a assistirem identificarão muitos hinos entoados
nas missas da Igreja de St. Patrick, que é central na trama.
De fato, o elemento religioso é central para que se entenda a minissérie. A
história se passa na (fictícia) Ilha Crockett, que tem apenas 128 habitantes,
ou seja, todo mundo se conhece. Quase todos na ilha são pescadores – de novo,
uma referência aos textos bíblicos que apresentam quatro dos primeiros
seguidores de Jesus como tendo sido desta mesma profissão. E quase todos são
católicos, com a exceção notável do xerife da comunidade, um muçulmano que é
viúvo e cria o filho único, um adolescente (mas há outras exceções, pois alguns
moradores não são católicos praticantes, e Riley Flynn, um dos personagens
principais, que se declara ateu). Com a chegada à ilha do mencionado Riley
Flynn, após cumprir pena de quatro anos no continente por ter dirigido
embriagado e provocar a morte de uma jovem em um acidente) e do jovem Padre Paul,
bastante carismático, no sentido sociológico, não no teológico, coisas
estranhas começam a acontecer. Algumas são boas, outras, nem tanto. Se por um
lado acontecem milagres, com destaque para uma adolescente paraplégica que
voltou a andar (ela fora alvejada por uma bala perdida disparada por um caçador
que, tal como acontecera com Riley Flynn, estava embriagado), e para uma idosa
com demência que rejuvenesce, ficando mais nova que sua filha, a médica da
ilha, por outro lado, ao mesmo tempo, acontecem coisas terríveis: algumas
pessoas desaparecem sem deixar vestígios e uma jovem grávida descobre que sua
gestação simplesmente desaparece, sem que seja possível explicar como tal
aconteceu. Esta situação chama a atenção, pois é exatamente o oposto da
narrativa bíblica da encarnação do Verbo: em Mateus 1 e Lucas 1 uma gravidez
acontece por obra divina, mas em Missa da Meia-Noite uma gravidez
desaparece por obra demoníaca.
Com tudo isso acontecendo, as questões ligadas à fé serão centrais nos diálogos
entre os moradores da ilha. Como seria de se esperar, se no início as missas
celebradas pelo padre Paul são frequentadas por no máximo meia dúzia de fieis,
mas com os “milagres” acontecendo, a igreja St. Patrick passa a ficar lotada em
todas as reuniões. Mas como se trata de minissérie, não demora para que a
narrativa de Flanagan “entregue” o que de fato está a acontecer na ilha: o
jovem padre Paul na verdade é o velho Monsenhor Pruitt, que fora o pároco de
St. Patrick por mais de quarenta anos. Como sinal de gratidão, os paroquianos
pagaram-lhe uma excursão a Israel, para conhecer os lugares onde Jesus andou.
Só que ele também estava apresentando sinais de demência, e, tendo se afastado
do grupo de sua excursão, foi parar no deserto, e após uma tempestade de areia,
descobriu uma caverna, onde recebeu a “visita” – entre muitas, muitas aspas –
de um ser que julgou ser um anjo, uma criatura alada horrenda que se alimenta
de sangue. Como consequência, ele rejuvenesceu, e voltou para os Estados
Unidos, mas levou a criatura com ele. As palavras “vampiro” e “demônio” não são
mencionadas nem uma vez em toda a narrativa, mas fica claro que a criatura é
uma coisa ou outra (ou as duas ao mesmo tempo).
A partir de então, só coisas horríveis acontecem: se até então as homilias do
padre Paul eram marcadas por acuidade bíblica saudável, a partir daí elas mudam
radicalmente, pois os textos bíblicos passam a ser distorcidos da maneira mais
grosseira e grotesca possível e o que é pior, com exceção da mãe da médica da
ilha, ninguém percebe a violência hermenêutica que está sendo cometida, que na
verdade é um processo de manipulação mental, psicológica e espiritual ao qual
toda a população da ilha é submetida. A manipulação chega a ponto tal que
quando o vampiro ou demônio sugador de sangue aparece na igreja na hora da
missa e ataca uma pessoa, ninguém se espanta ou se assusta.
Mas o verdadeiro monstro da narrativa de Flanagan não é o vampiro demoníaco –
ou demônio vampiresco. A pior manifestação da maldade na Ilha Crockett é
Beverly – “Bev” – Keane, a principal líder leiga da Igreja St. Patrick. Em
todas as suas falas ela cita versículos bíblicos, mas desde o primeiro episódio
percebe-se que é uma pessoa mesquinha, egoísta, hipócrita, mentirosa, perversa,
insensível, preconceituosa... é difícil achar um defeito de caráter que Bev
Keane não tenha. Ela tem a Bíblia na cabeça, mas é amarga, cheia de
ressentimentos, inescrupulosa e cruel. Bev é o exemplo perfeito de um aforisma
muito conhecido de C. S. Lewis: “de todas as pessoas más, as religiosas são as
piores”. No fim da narrativa os atacados pelo ser maligno levado à ilha pelo
Padre Paul sabem que serão destruídos pela luz do sol nascente (eles foram
“vampirizados”, e por isso não podem ser expostos à luz solar, que os destroi
imediatamente) , mas esperam seu fim com serenidade, juntos na praia, cantando
o conhecido hino protestante Nearer, My God, To Thee – no Brasil, “Mais
perto quero estar, meu Deus, de ti”. Mas Bev não – a reação dela ao saber da
proximidade do fim é totalmente diferente. Enquanto os demais, que ela sempre
criticou e desprezou, encaram o fim com calma e em paz, ela entra em desespero
total, completo e absoluto. A diferença da reação dos moradores da ilha diante
da certeza da morte que se aproxima rapidamente é notável. Na perspectiva
cristã a morte, conquanto seja um “inimigo” (cf. 1Co 15.26), já foi derrotada
com a ressurreição de Jesus: “Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó
morte, a tura vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Co 15.54-55).
Pela fé em Cristo é possível ter esta certeza, que faz com que quem crê tenha a
convicção expressa por Paulo: morrer é “estar com Cristo” (cf. Fp 1.23). Se Bev
Keane tivesse esta convicção, que brota da fé, não teria se desesperado diante
da morte.
O ponto positivo desta narrativa tão estranha é apresentar, sem estereótipos
superficiais, duas possibilidades de vivência da fé: para uns, o exercício da
espiritualidade resultará em perdão e restauração, mas para outros, a religião
poderá ser apenas uma capa que oculta trevas espessas e densas de maldade.
Nesse sentido, a produção de Flanagan é bem melhor que Greenleaf, outra
série recente na qual todos os religiosos são falsos e perversos. Enquanto Greenleaf
é estereotipada, da maneira mais rasa possível, Missa da Meia-Noite
é realista. Flanagan não zomba da fé. Antes, apresenta diferenças gritantes na
maneira como pessoas podem se apropriar do discurso religioso e da vivência
propriamente daquilo que acreditam, ou dizem acreditar.
Outro ponto importante da narrativa de Flanagan é a denúncia de como o discurso
religioso pode ser manipulador. Pessoas sinceras em sua fé, mas ingênuas, podem
ser vítimas fáceis de líderes inescrupulosos, como é o caso de Bev Kean.
Concluindo: em alguns momentos a série pode ser cansativa, pois sua narrativa
algumas vezes é um tanto arrastada, mas os diálogos são ricos e bem
construídos. Flanagan nos faz lembrar a advertência paulina, que Satanás (o pai
da mentira) pode se transformar em anjo de luz (2Co 11.14-15). Faz lembrar
também o relato do Êxodo, que diz que os magos do Faraó foram capazes de fazer
alguns dos sinais que Moisés fez (cf. Êx 7.22; 8.7). Mas o ponto mais
importante de Missa da Meia-Noite, tal como já afirmado, é a denúncia de
uma religiosidade vivida apenas como aparência, mas que não muda o coração.
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
- Textos publicados: 69 [ver]
Sem comentários:
Enviar um comentário