quinta-feira, 28 de março de 2024

REFLEXÃO...01

 

Clarice Lispector, um guia de leitura...

Por Ricardo Iannace, no A Terra é Redonda

 

1.

 

Meses antes de morrer, em 1977, Clarice Lispector confiou à TV Cultura uma entrevista que é reprisada com regularidade. O jornalista Júlio Lerner chega a perguntar qual o perfil do leitor da escritora, pois à época já havia o mito de que uma minoria alcança a narrativa clariciana. Ante a indagação, a autora é categórica ao asseverar que lhe falta uma resposta.

 

 

Ela conta que um professor de português do Colégio Pedro II fora a seu apartamento e confessou ter lido quatro vezes A paixão segundo G. H., sem o mínimo êxito na compreensão do texto, ao passo que uma jovem universitária de apenas 17 anos revelara que era essa a sua obra de cabeceira. A ficcionista relata que recebia telefonemas de pessoas curiosas por saber onde comprar seus livros. E adverte que, se o interesse pela sua literatura aumentava, isso não se devia a nenhuma concessão ao público.

 

Reside aí uma verdade. Da prosa de estreia, Perto do coração selvagem (1943), ao póstumo Um sopro de vida: pulsações (1978), reiteram-se os ingredientes que concorrem para a densidade de suas histórias. Pode-se aferir, de início, que a linguagem craveja recursos que exploram exaustivamente a tensão, visando a um desgaste incansável do verbal. A sintaxe de Clarice Lispector, habitualmente crespa e corrida, é vez ou outra temperada com ritmo moroso, a fim de melhor reverberar o conflito que decorre de experiências-limite envolvendo narradores e personagens.

 

Investe-se, amiúde, no esvaziamento do sentido corrente da palavra pela desestabilização da frase e pelo desvio da forma. Acrescente-se a isso a epifania e a náusea decorrentes de imagens inesperadas que provocam um fluxo de estranhas associações, em que insetos e animais ganham presença. Tudo, enfim, oferece à escritura um lugar de destaque e de permanência, quer em solo brasileiro, quer em território estrangeiro.

 

Os procedimentos e os estratagemas ora mencionados se digladiam em maior ou menor grau de complexidade no conjunto da obra. Há narrativas que exigem fôlego dobrado do leitor determinado a acompanhar a evolução da intriga, a armar-se ao sabor acentuado da obscuridade – às vezes com digressões tendenciosamente sensoriais. O objeto narrado é custoso pelo peso derivado da pontuação que se estende irregularmente, constituindo uma malha aderente a elucubrações e combinados frásicos de efeito paradoxal, num malabarismo ímpar de força e equilíbrio.

 

Por essa razão, é suspeitável que um leitor desprevenido abandone de imediato os seus romances pautados pela intensidade de tais caracteres. É o caso, sobretudo, de A cidade sitiada (1949) e A maçã no escuro (1961), cuja fruição exige parceria e tolerância, tantas são as zonas de quase impermeabilidade aos incidentes que se enredam num vocabulário nada enxuto, mas excedente, numa redação em desenho virtualmente inacabado.

 

Se os romances mencionados não se mostram os mais indicados a um leitor principiante, por quais textos começar? Ficaria de fora, nessa aventura, tal gênero em que Clarice apostou e que grande parte da crítica elegeu, paradigmaticamente, para avaliá-la? A priori, sim. Os contos, as crônicas e a novela A hora da estrela (1977) estariam entre os recomendados nesse estágio inicial. Contudo, seria um contrassenso assegurar que esse grupo escape de todo ileso do então contundente esquema ficcional responsável pela estrutura da obra. Ele modela-se, quando muito, apenas mais disciplinado na condução do fio e tempo psicológicos que comandam a narração. De saída, dois volumes de contos saltariam à mão: Laços de família (1960) e A legião estrangeira (1964).

 

2.

 

 

Em Laços de família, o feminino assoma-se ao polo de convergência que orientou, do início ao fim, a literatura de Clarice Lispector. É o tema por meio do qual a ficcionista trata da rotina doméstica, matéria cultural recortada do cotidiano da família de classe média. Nesse aspecto, o conto “Amor” chega a ser emblemático. Em curta fração de tempo, o mundo se insurge caótico e perigoso aos olhos da protagonista.

 

Ana vive uma experiência insólita a caminho de casa. Surpresa por avistar um cego dando sinal para o bonde que a leva de volta à segurança do lar, abandona a sacola, quebrando parte dos ovos comprados para o jantar em família. Tal inquietação se aplica à imagem desse anônimo que gesticula acidentalmente um riso ao mascar chiclete. Desorientada, deixa passar o ponto, descendo ao acaso no Jardim Botânico. No interior desse espaço, sentada em banco público, envolve-se com o que há de mais hostil na natureza, porque os seus sentidos apreendem desse terreno, que a desvia dos afazeres alienantes, uma dinâmica em animação selvagem jamais vislumbrada.

 

Eis que “caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos”, “luxuosas patas de uma aranha”[i] pregadas no tronco da árvore, vitórias-régias, “volumosas dálias e tulipas”[ii] causam nojo à espectadora projetada no homem de olhos abertos à escuridão da goma mascada. Retorna ao apartamento a tempo dos preparativos da recepção. Mas não sem antes atinar que também ali opera uma lei mansa e secreta. Em sua direção vinha o filho “de pernas compridas e rosto igual ao seu”, as maçanetas da porta da sala “brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava – que nova terra era essa?”.[iii]

 

É uma terra grave, substancial nos demais contos de Laços de família. Terra igualmente receptiva à experiência de alteridade que ostenta sentimentos de amor e ódio. Não por acaso, a protagonista do conto “O búfalo” é surpreendida pela vertigem em passeio ao jardim zoológico. Abandonada pelo amante e de punhos cerrados e metidos nos bolsos de seu casaco marrom, ela assiste, com repugnância, à quente e à sensual correspondência entre pares enjaulados. Essa periclitante identificação da personagem com os bichos arrebenta como pulsão de vida e de morte, análoga à severa trepidação do carrinho da montanha-russa do parque vizinho que ela decide ocupar.

 

Não menos exposta se encontra dona Anita, em “Feliz Aniversário”, conto também inserido no livro Laços de família. Ela completa 89 anos faiscando lucidez, rodeada por filhos, noras, netos e bisnetos em cozinha enfeitada com motivos pueris. No apartamento da filha sobrecarregada com os cuidados da aniversariante, torna-se patética a situação dos membros de uma família malsucedida nos seus laços, reunindo-se, uma vez ao ano, entre toalhas com babados, bexigas e guardanapos coloridos.

 

Ressalve-se que a critica social subjaz na narrativa de Clarice Lispector – o mergulho de grandeza existencial nas espécies humana e animal vem em primeiro plano (não raro, “com docilidade para [fisgar] o delicado abismo da desordem”[iv], segundo a narradora de “A legião estrangeira”, trama que confere o título ao volume de contos). Daí a não gratuidade com que a inveja e a perversão, por exemplo, se desenvolvem nessa e em outras histórias enfeixadas na brochura. A propósito, a menina Ofélia, de oito anos, é prevenida e enérgica nos seus julgamentos. Miniatura de mulher recatada e com olhar de censura, mata um pintinho que a vizinha e narradora comprara para os filhos na feira livre. Nessa intriga, o crime é consequência de um amor incomensurável – pelo desespero de não ter o que está próximo, vivo e ao alcance da infância, e pela falta de jeito no afagar.

 

Faz-se indescritível a passagem em que a menina ouve da sala de visitas o piar na cozinha, ou seja, o momento em que a Ofélia adulta se encolhe na criança maravilhada; abre-se o episódio narrativo como um espetáculo sinistro. Espetáculo não muito diferente do que ocorre em “Os desastres de Sofia”, outro conto de Legião estrangeira cuja protagonista, com idade aproximada à de Ofélia, acompanha a metamorfose de seu professor, quando – frente a frente com ele – via nesse homem “os olhos que, com as inúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces”[v], isto é, “via uma coisa se fazendo na sua cara”.[vi] E o que “via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos”.[vii]

 

3.

 

No tocante às crônicas, formam um capítulo à parte na poética de Clarice Lispector – o assunto que as move nasce das observações diárias, ou melhor, do cotidiano das múltiplas Clarices: mãe, dona de casa, tradutora, escritora, jornalista (vários os expedientes narrados, vasta a galeria de pessoas alçadas a personagens). Emergem desse repertório incontáveis conversas: com vizinhas, empregadas domésticas, taxistas, editores, intelectuais. Amigos e familiares são bastante lembrados. Festas, viagens, passeios, impressões colhidas das ruas e dos jornais, livros percorridos, processo de criação compartilhado com leitores, superstições, acidente, desabafos; tudo cabe nesses escritos de livre extensão e espontânea dicção. De permeio entre o humor em tom de bate-papo, imprimem-se, no entanto, textos de latitude mordaz.

 

“A geléia viva como placenta” é um deles – fabula-se como pesadelo movido a impulso suicida, comprometendo a madrugada da cronista que, recém-despertada, reelabora e materializa em palavras a substância viscosa, gelatinosa, estampada no seu sonho. Se essas crônicas sinalizam um mundo pródigo em entretenimento, nem por isso ingênuo e menos implacável, a novela A hora da estrela (1977) logra tessitura de outra compleição: parodia as narrativas de folhetim, ironizando o conteúdo e a forma desse gênero que, ao longo do século XIX, promoveu cenas desmedidas de amor.

 

A autora constrói um casal sem reciprocidade, à margem, estéril para o romantismo, dado que os nordestinos Olímpico de Jesus e Macabéa, vivendo na cidade do Rio de Janeiro, “pouca sombra faziam no chão”. Ele: metalúrgico, truculento, disposto a vencer na vida a qualquer custo. Ela: datilógrafa semi-alfabetizada, sem noção de higiene, subnutrida. Olímpico sonha ser deputado; Macabéa, alheia à realidade – um “subproduto” que se alimenta de cachorro-quente e Coca-Cola –, idealiza Marilyn Monroe.

 

A página de abertura do livro registra 13 títulos, incluindo “A hora da estrela”. Apresentam-se verticalizados e ligados pela conjunção ou. Alguns deles: “Ela que se arranje”, “Eu não posso fazer nada”, “História lacrimogênica de cordel”, “Saída discreta pela porta dos fundos”. Eles tributam menosprezo à infeliz alagoana de 19 anos. Para relatar essa história, é concebido um narrador do sexo masculino, no intuito de que não fraqueje, comovendo-se a lágrimas em face do triste e do perplexo destino da heroína que perpassa a novela com dor de dente, dividindo o quarto de dormir, em bairro periférico, com moças balconistas das Lojas Americanas. Chama-se Rodrigo S. M. – é escritor. O ofício de parca remuneração distingue-o e o isola da massa iletrada, consumidora, quando muito, de fotonovelas.

 

Para solucionar o drama da personagem que tanto lhe exige, opta por morte triunfal, introduzindo um carro Mercedez-Benz na via de acesso da datilógrafa atordoada pelas previsões otimistas da cartomante que ela acaba de consultar. Madame Carlota anuncia à moça um futuro promissor ao lado de um gringo milionário (Olímpico troca-a pela colega de escritório da nordestina; chama-se Glória – além de “carnuda”, o pai trabalha em açougue, é “loira oxigenada”). Glória é quem oferece o endereço da médium à Macabéa e empresta-lhe o dinheiro. Explica-se o narrador-escritor: “Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago”.[viii]

 

A escrita é autocontemplativa em A hora da estrela: metalinguagem por meio da qual vida e morte se entreveem, sem que no paralelo se esfacele o encadeamento dos fatos narrados – senão, dificilmente essa trama se definiria com começo, meio e fim nas telas dos cinemas, em longa-metragem de 1985 dirigido por Suzana Amaral.

 

Nesse ponto, o texto de Rodrigo S. M. é mais figurativo, abrandando os contornos de expressão abstrata que borram, se comparados, as páginas de Água viva (1973), ficção cuja rede de palavras, liberta de enredo, às soltas, num exercício experimental, pigmenta-se no papel como tinta espessa lançada sobre tela virgem. O alfabeto é cor em Água viva: “Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras”[ix]. A arte é corpo, vibração: “Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo”.[x]

 

4.

 

Para uma leitura de maior deleite, talvez seja preciso um leitor mais desobrigado, descomedido, menos convencional, preferencialmente arredio a modelos institucionalizados. Porque a escrita que se autorretrata, em Lispector, é coreográfica – de um exibicionismo contínuo. Testa-se. Personifica-se. E irrompe, nessa representação, como um dínamo. Por isso a relutância do leitor ao ter de enfrentar aquele romance que se impõe como obra-prima: A paixão segundo G. H. (1964).

 

Inscreve-se em primeira pessoa. A mulher que narra o acontecimento vivido no dia anterior, identificada pelas iniciais G. H., é escultora e está só: o amante abandonou-a. Mora num luxuoso apartamento de cobertura e decide pela sua arrumação, preferindo o quarto dos fundos, antes ocupado pela empregada Janair. Nesse aposento cujas paredes são surpreendentemente brancas (dormitório iluminado), G. H. prensa com a porta do guarda-roupa uma barata que tenta escapar pelo vão. A partir daí inicia-se uma absurda, mítica e mística introjeção da protagonista no cerne desse inseto semivivo. A escultora, neste seu reconto, plasma várias imagens, sobressaindo a barata em decomposição, sem aquele invólucro que lhe esconde o sumo esbranquiçado e mucoso: a massa. Que G. H. experimenta. Procura, loucura, salvação pelo extremo palatável da amoralidade, êxtase com o sujo e o primitivo – toda uma cavidade alegórica se infunde em A paixão segundo G.H..

 

Por fim, se esses recortes da obra de Clarice Lispector anunciam um senso de insubordinação ao que se convencionou tomar como seguro, por que não atender ao chamado da escritora, o chamado da paixão? Pois bem poderia o leitor, transgredindo uma ordem classificatória – a ordem do que ler antes e do que ler depois –, render-se, de pronto e de impensado, ao romance A paixão segundo G. H.. Compete-lhe o risco.[xi]

 

*Ricardo Iannace é professor de comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia (Ed. UFMG).

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