Clarice
Lispector, um guia de leitura...
Por
Ricardo Iannace, no A Terra é Redonda
1.
Meses
antes de morrer, em 1977, Clarice Lispector confiou à TV Cultura uma entrevista
que é reprisada com regularidade. O jornalista Júlio Lerner chega a perguntar
qual o perfil do leitor da escritora, pois à época já havia o mito de que uma
minoria alcança a narrativa clariciana. Ante a indagação, a autora é categórica
ao asseverar que lhe falta uma resposta.
Ela
conta que um professor de português do Colégio Pedro II fora a seu apartamento
e confessou ter lido quatro vezes A paixão segundo G. H., sem o mínimo êxito na
compreensão do texto, ao passo que uma jovem universitária de apenas 17 anos
revelara que era essa a sua obra de cabeceira. A ficcionista relata que recebia
telefonemas de pessoas curiosas por saber onde comprar seus livros. E adverte
que, se o interesse pela sua literatura aumentava, isso não se devia a nenhuma
concessão ao público.
Reside
aí uma verdade. Da prosa de estreia, Perto do coração selvagem (1943), ao
póstumo Um sopro de vida: pulsações (1978), reiteram-se os ingredientes que concorrem
para a densidade de suas histórias. Pode-se aferir, de início, que a linguagem
craveja recursos que exploram exaustivamente a tensão, visando a um desgaste
incansável do verbal. A sintaxe de Clarice Lispector, habitualmente crespa e
corrida, é vez ou outra temperada com ritmo moroso, a fim de melhor reverberar
o conflito que decorre de experiências-limite envolvendo narradores e
personagens.
Investe-se,
amiúde, no esvaziamento do sentido corrente da palavra pela desestabilização da
frase e pelo desvio da forma. Acrescente-se a isso a epifania e a náusea
decorrentes de imagens inesperadas que provocam um fluxo de estranhas
associações, em que insetos e animais ganham presença. Tudo, enfim, oferece à
escritura um lugar de destaque e de permanência, quer em solo brasileiro, quer
em território estrangeiro.
Os
procedimentos e os estratagemas ora mencionados se digladiam em maior ou menor
grau de complexidade no conjunto da obra. Há narrativas que exigem fôlego
dobrado do leitor determinado a acompanhar a evolução da intriga, a armar-se ao
sabor acentuado da obscuridade – às vezes com digressões tendenciosamente
sensoriais. O objeto narrado é custoso pelo peso derivado da pontuação que se
estende irregularmente, constituindo uma malha aderente a elucubrações e
combinados frásicos de efeito paradoxal, num malabarismo ímpar de força e
equilíbrio.
Por
essa razão, é suspeitável que um leitor desprevenido abandone de imediato os
seus romances pautados pela intensidade de tais caracteres. É o caso,
sobretudo, de A cidade sitiada (1949) e A maçã no escuro (1961), cuja fruição
exige parceria e tolerância, tantas são as zonas de quase impermeabilidade aos
incidentes que se enredam num vocabulário nada enxuto, mas excedente, numa
redação em desenho virtualmente inacabado.
Se os
romances mencionados não se mostram os mais indicados a um leitor principiante,
por quais textos começar? Ficaria de fora, nessa aventura, tal gênero em que
Clarice apostou e que grande parte da crítica elegeu, paradigmaticamente, para
avaliá-la? A priori, sim. Os contos, as crônicas e a novela A hora da estrela
(1977) estariam entre os recomendados nesse estágio inicial. Contudo, seria um
contrassenso assegurar que esse grupo escape de todo ileso do então contundente
esquema ficcional responsável pela estrutura da obra. Ele modela-se, quando
muito, apenas mais disciplinado na condução do fio e tempo psicológicos que
comandam a narração. De saída, dois volumes de contos saltariam à mão: Laços de
família (1960) e A legião estrangeira (1964).
2.
Em
Laços de família, o feminino assoma-se ao polo de convergência que orientou, do
início ao fim, a literatura de Clarice Lispector. É o tema por meio do qual a
ficcionista trata da rotina doméstica, matéria cultural recortada do cotidiano
da família de classe média. Nesse aspecto, o conto “Amor” chega a ser
emblemático. Em curta fração de tempo, o mundo se insurge caótico e perigoso
aos olhos da protagonista.
Ana
vive uma experiência insólita a caminho de casa. Surpresa por avistar um cego
dando sinal para o bonde que a leva de volta à segurança do lar, abandona a
sacola, quebrando parte dos ovos comprados para o jantar em família. Tal
inquietação se aplica à imagem desse anônimo que gesticula acidentalmente um
riso ao mascar chiclete. Desorientada, deixa passar o ponto, descendo ao acaso
no Jardim Botânico. No interior desse espaço, sentada em banco público,
envolve-se com o que há de mais hostil na natureza, porque os seus sentidos
apreendem desse terreno, que a desvia dos afazeres alienantes, uma dinâmica em
animação selvagem jamais vislumbrada.
Eis que
“caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos”,
“luxuosas patas de uma aranha”[i] pregadas no tronco da árvore,
vitórias-régias, “volumosas dálias e tulipas”[ii] causam nojo à espectadora
projetada no homem de olhos abertos à escuridão da goma mascada. Retorna ao
apartamento a tempo dos preparativos da recepção. Mas não sem antes atinar que
também ali opera uma lei mansa e secreta. Em sua direção vinha o filho “de
pernas compridas e rosto igual ao seu”, as maçanetas da porta da sala
“brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava – que nova
terra era essa?”.[iii]
É uma
terra grave, substancial nos demais contos de Laços de família. Terra
igualmente receptiva à experiência de alteridade que ostenta sentimentos de
amor e ódio. Não por acaso, a protagonista do conto “O búfalo” é surpreendida
pela vertigem em passeio ao jardim zoológico. Abandonada pelo amante e de
punhos cerrados e metidos nos bolsos de seu casaco marrom, ela assiste, com
repugnância, à quente e à sensual correspondência entre pares enjaulados. Essa
periclitante identificação da personagem com os bichos arrebenta como pulsão de
vida e de morte, análoga à severa trepidação do carrinho da montanha-russa do
parque vizinho que ela decide ocupar.
Não
menos exposta se encontra dona Anita, em “Feliz Aniversário”, conto também
inserido no livro Laços de família. Ela completa 89 anos faiscando lucidez,
rodeada por filhos, noras, netos e bisnetos em cozinha enfeitada com motivos
pueris. No apartamento da filha sobrecarregada com os cuidados da
aniversariante, torna-se patética a situação dos membros de uma família
malsucedida nos seus laços, reunindo-se, uma vez ao ano, entre toalhas com
babados, bexigas e guardanapos coloridos.
Ressalve-se
que a critica social subjaz na narrativa de Clarice Lispector – o mergulho de
grandeza existencial nas espécies humana e animal vem em primeiro plano (não
raro, “com docilidade para [fisgar] o delicado abismo da desordem”[iv], segundo
a narradora de “A legião estrangeira”, trama que confere o título ao volume de
contos). Daí a não gratuidade com que a inveja e a perversão, por exemplo, se
desenvolvem nessa e em outras histórias enfeixadas na brochura. A propósito, a
menina Ofélia, de oito anos, é prevenida e enérgica nos seus julgamentos.
Miniatura de mulher recatada e com olhar de censura, mata um pintinho que a
vizinha e narradora comprara para os filhos na feira livre. Nessa intriga, o
crime é consequência de um amor incomensurável – pelo desespero de não ter o
que está próximo, vivo e ao alcance da infância, e pela falta de jeito no
afagar.
Faz-se
indescritível a passagem em que a menina ouve da sala de visitas o piar na
cozinha, ou seja, o momento em que a Ofélia adulta se encolhe na criança
maravilhada; abre-se o episódio narrativo como um espetáculo sinistro.
Espetáculo não muito diferente do que ocorre em “Os desastres de Sofia”, outro
conto de Legião estrangeira cuja protagonista, com idade aproximada à de
Ofélia, acompanha a metamorfose de seu professor, quando – frente a frente com
ele – via nesse homem “os olhos que, com as inúmeras pestanas, pareciam duas
baratas doces”[v], isto é, “via uma coisa se fazendo na sua cara”.[vi] E o que
“via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos”.[vii]
3.
No
tocante às crônicas, formam um capítulo à parte na poética de Clarice Lispector
– o assunto que as move nasce das observações diárias, ou melhor, do cotidiano
das múltiplas Clarices: mãe, dona de casa, tradutora, escritora, jornalista
(vários os expedientes narrados, vasta a galeria de pessoas alçadas a
personagens). Emergem desse repertório incontáveis conversas: com vizinhas,
empregadas domésticas, taxistas, editores, intelectuais. Amigos e familiares
são bastante lembrados. Festas, viagens, passeios, impressões colhidas das ruas
e dos jornais, livros percorridos, processo de criação compartilhado com leitores,
superstições, acidente, desabafos; tudo cabe nesses escritos de livre extensão
e espontânea dicção. De permeio entre o humor em tom de bate-papo, imprimem-se,
no entanto, textos de latitude mordaz.
“A
geléia viva como placenta” é um deles – fabula-se como pesadelo movido a
impulso suicida, comprometendo a madrugada da cronista que, recém-despertada,
reelabora e materializa em palavras a substância viscosa, gelatinosa, estampada
no seu sonho. Se essas crônicas sinalizam um mundo pródigo em entretenimento,
nem por isso ingênuo e menos implacável, a novela A hora da estrela (1977)
logra tessitura de outra compleição: parodia as narrativas de folhetim,
ironizando o conteúdo e a forma desse gênero que, ao longo do século XIX,
promoveu cenas desmedidas de amor.
A
autora constrói um casal sem reciprocidade, à margem, estéril para o
romantismo, dado que os nordestinos Olímpico de Jesus e Macabéa, vivendo na
cidade do Rio de Janeiro, “pouca sombra faziam no chão”. Ele: metalúrgico,
truculento, disposto a vencer na vida a qualquer custo. Ela: datilógrafa
semi-alfabetizada, sem noção de higiene, subnutrida. Olímpico sonha ser
deputado; Macabéa, alheia à realidade – um “subproduto” que se alimenta de
cachorro-quente e Coca-Cola –, idealiza Marilyn Monroe.
A página
de abertura do livro registra 13 títulos, incluindo “A hora da estrela”.
Apresentam-se verticalizados e ligados pela conjunção ou. Alguns deles: “Ela
que se arranje”, “Eu não posso fazer nada”, “História lacrimogênica de cordel”,
“Saída discreta pela porta dos fundos”. Eles tributam menosprezo à infeliz
alagoana de 19 anos. Para relatar essa história, é concebido um narrador do
sexo masculino, no intuito de que não fraqueje, comovendo-se a lágrimas em face
do triste e do perplexo destino da heroína que perpassa a novela com dor de
dente, dividindo o quarto de dormir, em bairro periférico, com moças
balconistas das Lojas Americanas. Chama-se Rodrigo S. M. – é escritor. O ofício
de parca remuneração distingue-o e o isola da massa iletrada, consumidora, quando
muito, de fotonovelas.
Para
solucionar o drama da personagem que tanto lhe exige, opta por morte triunfal,
introduzindo um carro Mercedez-Benz na via de acesso da datilógrafa atordoada
pelas previsões otimistas da cartomante que ela acaba de consultar. Madame
Carlota anuncia à moça um futuro promissor ao lado de um gringo milionário
(Olímpico troca-a pela colega de escritório da nordestina; chama-se Glória –
além de “carnuda”, o pai trabalha em açougue, é “loira oxigenada”). Glória é
quem oferece o endereço da médium à Macabéa e empresta-lhe o dinheiro.
Explica-se o narrador-escritor: “Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil,
matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem
um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago”.[viii]
A
escrita é autocontemplativa em A hora da estrela: metalinguagem por meio da
qual vida e morte se entreveem, sem que no paralelo se esfacele o encadeamento
dos fatos narrados – senão, dificilmente essa trama se definiria com começo,
meio e fim nas telas dos cinemas, em longa-metragem de 1985 dirigido por Suzana
Amaral.
Nesse
ponto, o texto de Rodrigo S. M. é mais figurativo, abrandando os contornos de
expressão abstrata que borram, se comparados, as páginas de Água viva (1973),
ficção cuja rede de palavras, liberta de enredo, às soltas, num exercício
experimental, pigmenta-se no papel como tinta espessa lançada sobre tela
virgem. O alfabeto é cor em Água viva: “Entro lentamente na escrita assim como
já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas,
cores e palavras”[ix]. A arte é corpo, vibração: “Escrevo-te toda inteira e
sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também com o
corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo”.[x]
4.
Para
uma leitura de maior deleite, talvez seja preciso um leitor mais desobrigado,
descomedido, menos convencional, preferencialmente arredio a modelos
institucionalizados. Porque a escrita que se autorretrata, em Lispector, é coreográfica
– de um exibicionismo contínuo. Testa-se. Personifica-se. E irrompe, nessa
representação, como um dínamo. Por isso a relutância do leitor ao ter de
enfrentar aquele romance que se impõe como obra-prima: A paixão segundo G. H.
(1964).
Inscreve-se
em primeira pessoa. A mulher que narra o acontecimento vivido no dia anterior,
identificada pelas iniciais G. H., é escultora e está só: o amante abandonou-a.
Mora num luxuoso apartamento de cobertura e decide pela sua arrumação,
preferindo o quarto dos fundos, antes ocupado pela empregada Janair. Nesse
aposento cujas paredes são surpreendentemente brancas (dormitório iluminado),
G. H. prensa com a porta do guarda-roupa uma barata que tenta escapar pelo vão.
A partir daí inicia-se uma absurda, mítica e mística introjeção da protagonista
no cerne desse inseto semivivo. A escultora, neste seu reconto, plasma várias
imagens, sobressaindo a barata em decomposição, sem aquele invólucro que lhe
esconde o sumo esbranquiçado e mucoso: a massa. Que G. H. experimenta. Procura,
loucura, salvação pelo extremo palatável da amoralidade, êxtase com o sujo e o
primitivo – toda uma cavidade alegórica se infunde em A paixão segundo G.H..
Por
fim, se esses recortes da obra de Clarice Lispector anunciam um senso de
insubordinação ao que se convencionou tomar como seguro, por que não atender ao
chamado da escritora, o chamado da paixão? Pois bem poderia o leitor,
transgredindo uma ordem classificatória – a ordem do que ler antes e do que ler
depois –, render-se, de pronto e de impensado, ao romance A paixão segundo G.
H.. Compete-lhe o risco.[xi]
*Ricardo
Iannace é professor de comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do
Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de
Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia (Ed. UFMG).
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