A multiforme Palavra para multiformes pessoas e etnias
Por Paulo Teixeira
Não pretendo gastar estas preciosas linhas descrevendo cada
gênero literário presente no Livro dos livros. Esta informação está registrada
em um número expressivo de obras disponíveis em português – em manuais
bíblicos, por exemplo. Lá, o caro leitor encontrará farta informação sobre o
gênero narrativo, legal, poético, sapiencial, profético, cronístico, epistolar
e apocalíptico, bem como sobre contos curtos, sagas, genealogias, parábolas e
apólogos da Bíblia.
Ter todos esses gêneros reunidos numa só obra, escrita ao
longo de pelo menos 1.500 anos, por cerca de quarenta escritores diferentes,
vivendo em épocas e lugares distintos, em três idiomas, faz da Bíblia – e de
cada livro que a compõe – uma obra literária singular. E, ao perceber que todo
o conteúdo bíblico, intencionalmente, se organiza ao redor de Jesus Cristo e a
ele remete, damo-nos conta de que este livro, embora escrito por homens e em
linguagem humana, só poderia ter nascido, assim como o próprio ser humano no
relato de Gênesis 2, de um sopro divino que costumamos chamar de inspiração.
Daí o justo reconhecimento dessa Bíblia como a santa e inspirada Palavra de
Deus, uma mensagem que quer chegar, na visão de Apocalipse 5, a pessoas de toda
tribo, língua, povo e nação.
Mas, ainda que a genética e a cultura confiram a indivíduos
de uma mesma etnia certos traços afins, a peculiaridade de cada pessoa continua
fazendo dele ou dela um universo em si. A psicologia cognitiva demonstra que o
ser humano é multissensorial e adquire ou constrói conhecimento de maneiras
diversas. A teoria do conhecimento reconhece e descreve variados estilos de
aprendizagem. Deus quer alcançar a todos, mas isso acontece, amorosamente, de
pessoa por pessoa, na pessoa do Filho que foi dado em favor do mundo e que
precisa ser conhecido e crido por todo ser humano que habita esta terra.
Alcançar a todas as pessoas é um desafio perene dessa
Palavra. E é exatamente neste ponto que enxergo a sabedoria de Deus em trazer à
existência uma multiforme Palavra, que transmita a multiforme graça divina às
multiformes pessoas espalhadas pelo mundo. Para um ser humano tão diverso, Deus
providenciou Escrituras igualmente diversificadas, o que se vê, de maneira mais
notória, ao pensar nos estilos literários presentes na Bíblia.
Trabalhando há algumas décadas na área da tradução bíblica,
tenho o privilégio de contemplar como diferentes estilos, porções e aspectos da
Palavra de Deus captam a atenção de diferentes pessoas e etnias. Para melhor
compreensão, explico brevemente um dos métodos utilizados para iniciar uma
tradução bíblica.
Uma pergunta fundamental que se faz a um grupo étnico antes
de começar uma tradução propriamente dita é qual livro ou trecho bíblico o
grupo gostaria de traduzir primeiro. Em se tratando de primeiras traduções para
uma língua, geralmente o conhecimento bíblico é bastante limitado ou mesmo
nulo, o que leva o consultor ou facilitador da tradução a passar semanas, senão
meses, compartilhando com representantes da etnia histórias e mais histórias da
Bíblia. Tal método permite que a comunidade linguística tenha uma percepção
mais ampla do conteúdo bíblico e com ele estabeleça relevantes conexões
culturais e espirituais.
Compartilhada e conhecida uma boa variedade de histórias
bíblicas, os calóns – etnia cigana que vive no Brasil – foram indagados sobre
por qual livro ou história, na opinião deles, a tradução bíblica poderia
começar. “Rute”, responderam, o que, de certa forma, surpreendeu os
missionários. A razão da escolha, no entanto, surpreenderia ainda mais. Segundo
aquele grupo, o livro de Rute tinha muitos ciganos, numa alusão a pessoas em
constante deslocamento, à organização familiar em clãs e a vários enredos que
se entrecruzam no tempo e no espaço. Contudo, o que chamou mesmo a atenção foi
a resposta sobre que parte de Rute os calóns mais apreciaram na história. “O
desfecho” – disseram, mas não o nascimento do filho de Rute e Boaz, e sim o
seguinte trecho:
“E estas são as gerações de Perez:
Perez gerou Esrom,
Esrom gerou Rão,
Rão gerou Aminadabe,
Aminadabe gerou Naassom,
Naassom gerou Salmom,
Salmom gerou Boaz,
Boaz gerou Obede,
Obede gerou Jessé,
e Jessé gerou Davi” (Rute 4.18-22, NAA).
Sim, a genealogia – um gênero tão pouco apreciado pela
maioria dos leitores da Bíblia – encantou os calóns! Naquela cultura, assim como
entre alguns povos da África e do Oriente, genealogias demonstram a importância
de alguém à medida que o registro da linhagem amplifica a história pessoal,
mesclando-a com as histórias de outros indivíduos que vieram antes, dos quais e
com os quais se aprendem saberes, fazeres e deveres. Isso para que, finda a
jornada, um dia se possa ser lembrado na genealogia de algum descendente como
um ancestral digno, alguém que, para além de um nome, deixou um legado.
E como os calóns ouviram histórias de Davi e de Jesus, a
conexão cristológica se manifestou de maneira praticamente natural. Aliás, as
genealogias de Cristo nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, que retrocedem até
aos tempos primevos da criação, são um dos argumentos mais fortes para que um
cigano do Brasil ou um indivíduo de grupos do interior da China ou de etnias do
Chade e do Mali reconheçam a singularidade, a sublimidade e a relevância de
Cristo em comparação com a precariedade, a falibilidade e a limitação de outros
seres humanos – homens e mulheres. Tal reconhecimento abre perspectivas
evangelísticas enormes, só aprendidas no contexto missionário por quem está
aberto a ser usado pelo Espírito de Deus para construir pontes entre a Bíblia e
as pessoas com suas variadas culturas e percepções.
Em meados do século passado, C. S. Lewis já ponderava que
“Deus nunca se faz de filósofo diante de uma lavadeira”. Jesus usa linguagem
erudita, acadêmica, com Nicodemos, o rabino, afeito à retórica judaica das
sinagogas e do Sinédrio. Mas com as crianças, proibidas de se aproximar e tocar
num mestre para não o contaminar ritualmente, Jesus prefere e se permite o
abraço, o colo e a bênção com imposição de mãos. Jesus mesmo, chamado em João 1
de “o Verbo” ou “a Palavra”, foi canal multiforme da multiforme graça de Deus
para multiformes pessoas e grupos étnicos. É um mesmo e único Salvador em
muitos estilos, assim como a Bíblia – e isso é muito bom. Nunca conseguiríamos
enxergar a estatura de sua glória não fosse ele baixar até nós, servindo a cada
um de nós em verdade e graça da maneira que melhor nos convém.
Paulo Teixeira é secretário de Tradução e Publicações da
Sociedade Bíblica do Brasil
Artigo publicado originalmente na edição 410 de Ultimato.
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