Bonhoeffer,
O Filme — Uma ideia boa, com alguns problemas...
Por
Carlos Caldas
Dietrich
Bonhoeffer (1906-1945) foi um dos mais importantes e influentes pensadores
cristãos do século passado e deste primeiro quarto do século presente. Teólogo
brilhante, profundo, complexo, denso, em sua vida tão breve (viajou, ou melhor,
“foi viajado” fora do combinado, pois foi executado quando tinha apenas 39)
produziu textos que ultrapassaram suas fronteiras linguísticas e
denominacionais – ele era alemão e luterano, mas seus textos foram traduzidos
para muitas línguas, e é estudado por protestantes, de A – anglicanos – a Z –
zwinglianos – e também por católicos e ortodoxos orientais. Bonhoeffer é um dos
pouquíssimos teólogos que é citado em sermões e palestras tanto por
conservadores como também por liberais. Via de regra, um teólogo apreciado em
meios conservadores não tem a mesma recepção em ambientes progressistas, e
vice-versa. Bonhoeffer consegue a “proeza” de ser apreciado pelos dois grupos.
Talvez não o seja apenas em alguns círculos ultra fundamentalistas.
Há
vários fatores que explicam isso. Um deles é que sua vida teve passagens que
parecem ter sido extraídas de roteiro de um filme. E é exatamente um filme
sobre Bonhoeffer, que pretende ser uma cinebiografia, que está dando o que
falar, tanto na Alemanha, como também nos Estados Unidos e, em menor medida, aqui
no Brasil.
O filme
em questão, produzido, dirigido e roteirizado por Todd Komarnicki e distribuído
pelos estúdios Angel, uma empresa estadunidense de streaming que utiliza o
expediente chamado de crowdfunding, isto é, financiamento coletivo, para bancar
suas produções. Angel é responsável por produções de muito sucesso e também de
muita polêmica, como é o caso do filme O som da liberdade e a série The Chosen.
Não vou entrar aqui no detalhamento destas polêmicas e muito menos em qualquer
tentativa de julgamento e análise de mérito delas, pois não quero incorrer em
fuga do tema. É sobre o filme a respeito de Bonhoeffer que este artigo quer
tratar.
O
título do artigo resume as próximas linhas: o filme de Komarnicki é uma ideia
boa, mas, infelizmente, tem alguns problemas. Por quê, você me pergunta. No que
se segue, responderei. Mas para tanto, um aviso: há spoilers.
Começo
pelos pontos positivos: o filme é bem produzido. A reconstituição dos cenários,
o figurino, tudo é muito bem feito. Achei interessante a escolha de atores
alemães para interpretarem personagens alemães, e americanos para interpretarem
personagens americanos (mas neste caso houve uma exceção: o ator David Jonsson,
que interpreta Frank Fisher, o amigo americano negro de Bonhoeffer, é inglês),
de atores ingleses para interpretar personagens ingleses. Pode parecer um
purismo, mas é mais agradável ouvir alemães pronunciando Dietrich Bonhoeffer da
maneira certa – o “ch” final de Dietrich é um som palatal que anglófonos
pronunciam com som de “k”, e o encontro vocálico “oe” tem som de “ê” que
anglófonos pronunciam como se fosse “ô”, fazendo desta maneira com que Dietrich
(o ch final levemente chiado) Bonhoeffer vire “Dítrik Bonrôfer”.
Outro
ponto positivo: o ator alemão Jonas Dassler impressiona pela semelhança com o
Bonhoeffer histórico. Dassler talvez seja um pouco mais magro que Bonhoeffer,
mas está muito parecido.
Agora
começam os problemas, graves e sérios, que infelizmente a maioria esmagadora
das pessoas que virem o filme não perceberão. Foi dito no início deste texto
que Bonhoeffer é lido e apreciado por conservadores e progressistas. Há um lado
bom e um lado ruim nesta situação. O lado ruim é que, conscientemente ou não,
grupos de tendências diferentes sequestram Bonhoeffer, transformando-o em um
dos seus. Claro que para tanto é necessário distorcer e ressignificar o tema ou
o personagem, e isto, conscientemente ou não, deliberadamente ou não, tem sido
feito com Bonhoeffer, e o que é pior, de maneira desonesta intelectualmente. É
este o caso do filme de Komarnicki. Antes de prosseguir, uma ressalva: toda e
qualquer cinebiografia, por mais que seja baseada em fatos e eventos, é, em
última análise, uma ficção. É simplesmente impossível apresentar tudo da vida
de alguém durante o curto período da projeção de um filme. Algumas lacunas
serão preenchidas com a imaginação do roteirista. A cinebiografia, por
definição, tem lugar para alguma ficcionalização. Até aí, tudo bem. O problema
é que no caso do filme de Komarnicki houve muito mais que ficcionalização. O
que houve foi uma deturpação grosseira do pensamento de Bonhoeffer e da maneira
pela qual aconteceu a apresentação de fatos importantes da vida do biografado.
Neste sentido, o filme tem mais erros que uma peneira tem furos.
A
propósito, segue-se neste parágrafo uma espécie de excurso, quase um desvio do
assunto: especulou-se que Komarnicki tenha se inspirado na biografia de
Bonhoeffer escrita por Eric Metaxas . A obra vendeu mais de um milhão de
cópias, e foi traduzida para cerca de 20 línguas. O problema é que Metaxas
“força a barra” em muitos momentos em suas conclusões, erra em suas
interpretações e mesmo quando confrontado com especialistas em Bonhoeffer,
insiste em uma posição do tipo “só eu sei, vocês não sabem nada”. Parece que
Metaxas gosta de “tretas”, pois tem se envolvido em muitas polêmicas nos
Estados Unidos por conta de declarações que não têm a menor base. Não é mera
coincidência que 86 familiares de Dietrich Bonhoeffer (em sua maioria,
sobrinhos-netos, pois ele não teve filhos) tenha publicado um manifesto, em
alemão e em inglês, repudiando a distorção do pensamento bonhoefferiano feita
por ele . O biógrafo retrucou acusando – sem provas – os parentes de Bonhoeffer
de serem defensores do Hamas e de odiarem os judeus. Os parentes de Bonhoeffer
por sua vez estudam tomar ações legais contra Metaxas por calúnia e difamação.
Pouco depois Metaxas se desculpou, mas de uma maneira muito leve, e o fez ainda
acusando os familiares de Bonhoeffer . O nome de Metaxas não aparece nos
créditos do filme de Tomarnicki, e o próprio Metaxas declarou não ter nenhuma
ligação com a produção. Mas é, no mínimo, curioso que haja uma coincidência
muito grande entre os dois títulos: no livro de Metaxas, Bonhoeffer é “pastor,
mártir, profeta, espião”, e no filme de Tomarnicki o teológo é “pastor, espião,
assassino”.
Pensemos
neste título: em português ficou A redenção: a história real de Bonhoeffer. O
título é muito pretensioso. O adjetivo “real” que modifica o substantivo
“história” estraga tudo, pois o filme não traz a história real de Bonhoeffer. O
filme traz a interpretação muito particular de Komarnicki, que, como se verá, é
bastante equivocada. Bonhoeffer: Pastor, Spy, Assassin (“Bonhoeffer: pastor,
espião, assassino”) – este é o título do filme no original em inglês, que
consegue ser ainda pior que o título dado no Brasil. Pois Bonhoeffer não foi um
assassino. O cartaz oficial do filme apresenta Bonhoeffer com uma arma na mão,
o que é um erro grosseiro, crasso, absurdo. O Bonhoeffer histórico muitíssimo provavelmente
nunca pegou em uma arma durante toda a sua vida. Este erro factual torna-se
ainda pior, porque é tendencioso. A divulgação do filme pelos Estúdios Angel
trouxe a seguinte pergunta: How far will you go to stand up for what is right?
(“Até onde você vai para defender o que é certo?”). Uma pergunta que aparenta
ser justa, mas que é perigosa em tempos de polarização política, quando pessoas
são manipuladas por líderes inescrupulosos e levadas a cometer atos de
violência e destruição. Conscientes do poder de manipulação que este filme tem,
o elenco alemão publicou um manifesto no qual rejeitam qualquer uso do mesmo
como incentivo ao uso de violência .
O
Bonhoeffer de Komarnicki é muito flexível moralmente falando, a ponto de dizer
algumas frases que o Bonhoeffer histórico nunca disse e jamais diria. Exemplos:
diante da ascensão da extrema direita na Alemanha (o partido Nacional
Socialista, ou nazista) ele diz “não posso fingir que orar e pregar seja o
suficiente” e “tudo que eu tenho a oferecer são mãos sujas”. A pior de todas é
quando ele diz que para enfrentar o nazismo e suas mentiras seria preciso
“mentir melhor que o pai da mentira”. Em outra cena em que há um diálogo entre
Bonhoeffer e seu aluno Eberhard Bethge a respeito do plano de assassinar Hitler,
e Bethge retruca o mestre, perguntando se Hitler é o primeiro líder maligno do
mundo desde que a Bíblia foi escrita. Bonhoeffer responde: “Não, mas ele é o
primeiro que eu posso impedir”. De onde Komarnicki tirou isso? Com certeza o
entusiasmado cineasta nunca leu Ética, de Bonhoeffer. Se leu, não entendeu,
pois se tivesse entendido jamais colocaria em seu roteiro frases como estas. O
Bonhoeffer de Komarnicki quer expulsar Belzebu pelo poder de Belzebu, isto é,
usando o mal para combater o mal. Jesus disse que isso não acontece. Bonhoeffer
foi sim oposição a Hitler, e levou adiante esta oposição com coragem. Não como
o filme apresenta: em uma cena, já preso, Bonhoeffer se posiciona diante de um
oficial da SS e o desafia a atirar nele. Uma cena clichê de filmes de ação, mas
que nunca aconteceu na vida real. Se Komarnicki quisesse apresentar a história
real de Bonhoeffer teria apresentado a cena em que em uma pregação em uma
emissora de rádio, Bonhoeffer fez um jogo de palavras que só funciona em alemão:
ele se referiu a Hitler não como o Führer – “guia” ou “líder”, mas como o
Verführer – “sedutor”, “enganador”. A transmissão radiofônica foi cortada
imediatamente . Estranho, muito estranho, que Komarnicki tenha optado por
inserir em seu filme cenas que nunca aconteceram, deixando de fora o que de
fato se deu na história.
Komarnicki
falseia fatos de maneira desavergonhada. Um exemplo menor: o filme destaca a
primeira ida de Bonhoeffer aos Estados Unidos (1930-1931), quando ele foi para
Nova York fazer uma espécie de pós-doutorado no Union Theological Seminary. Lá,
se faz amigo de Frank Fisher, um jovem estudante negro. Fisher na maioria das
vezes chama Bonhoeffer de “D”. Chamar um amigo pela primeira letra do seu nome
é comum em conversas coloquiais, não formais, no inglês contemporâneo falado
nos Estados Unidos, mas não era assim há 90 e poucos anos, como Komarnicki
apresenta. Exemplos maiores e mais graves: Bonhoeffer foi a Inglaterra para se
encontrar com o Bispo (anglicano) George Bell com objetivo de contar ao clérigo
o que estava acontecendo na Alemanha, para que o bispo por sua vez repassasse
as informações aos militares britânicos. No filme, Komarnicki inventa um
Bonhoeffer que pede a Bell que peça aos ingleses que contrabandeiem uma bomba
que seria usada para matar Hitler. Outro ponto que simplesmente não corresponde
à realidade: no filme, Bonhoeffer foi preso em consequência de seu envolvimento
no complô para assassinar o Führer. Na verdade, a prisão de Bonhoeffer
aconteceu por conta de seu envolvimento na Unternehmen Sieben – “Operação
Sete”, uma operação clandestina para levar 7 judeus da Alemanha para a vizinha
Suíça, que permaneceu neutra na guerra.
Há
também lacunas importantes na narrativa fílmica de Komarnicki, lacunas estas
que comprometem a acurácia histórica que o filme pretende ter. Uma delas está
no fato que o filme em nenhum momento cita o Almirante Wilhelm Canaris, líder
da Abwehr, o serviço de inteligência militar alemão da época . Canaris
“contrata” Bonhoeffer para trabalhar na agência por saber que o jovem pastor
não compartilhava das perspectivas do positives Christentum, “Cristianismo
Positivo”, a tentativa nazista de reconfigurar o cristianismo nos moldes da
ideologia da extrema direita nacionalista . Além disso, Bonhoeffer tinha muitos
contatos com o então nascente movimento protestante ecumênico na Europa, o que
o tornava ideal para, em uma época em que não havia tecnologia de comunicação
em tempo real como temos hoje, levar informações aos aliados sobre o que estava
de fato acontecendo na Alemanha. Canaris, junto com outras figuras de alta
patente das forças armadas alemãs da época, como os generais Hans Oster e
Ludwig Beck tiveram papeis de protagonismo na tentativa frustrada de assassinar
Hitler em 20 de julho de 1944, mas Bonhoeffer não. Komarnicki leva a crer que
Bonhoeffer teve papel destaque no complô, o que simplesmente não é verdade,
isso nunca aconteceu.
Mas
afinal, Bonhoeffer não foi da oposição a Hitler? Sim, foi. Ele se envolveu ou
não na tentativa de tiranicídio? A questão é séria, delicada e complexa. Para
Bonhoeffer foi um dilema moral, tipo, duas opções, sendo que nenhuma das duas é
boa. O que se pode dizer é que ele não teve qualquer papel de protagonismo
destacado ou liderança no complô.
Finalizando,
sem a pretensão de ter a última palavra: estes comentários se encerram como
começaram, isto é, por seu título: o filme de Komarnicki é uma ideia boa, mas
tem problemas. O filme é tendencioso, pois sutilmente pode levar quem o
assistir a ter atitudes totalmente contrárias ao pensamento de Bonhoeffer e,
pior ainda, totalmente contrárias ao mestre de Bonhoeffer: Jesus Cristo.
Notas
1Eric
Metaxas. Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião. São Paulo: Mundo Cristão,
2011.
2Descendants: do not distor and misuse Dietrich
Bonhoeffer. Disponível
em https://drive.google.com/file/d/17dSG_eOHrkvmUALUSKsu2G7ZtUu1b3UH/view
3 After Doubling Down, Eric Metaxas Apologizes on
Attacks on Dietrich Bonhoeffer’s Relatives. Disponível em https://warrenthrockmorton.substack.com/p/after-doubling-down-eric-metaxas
Acesso: 19 dez 2024
4 Statement from the Leading Actors of the Bonhoeffer
movie. Disponível
em https://drive.google.com/file/d/13KvDUrc2wq1wVr5sdV8OqBosn6u6PLoe/view
5
Eberhard Bethge casou-se com uma sobrinha de Dietrich Bonhoeffer. O casal teve
um filho, a quem deram o nome de Dietrich, em homenagem ao tio e amigo.
6 Para
detalhes, consultar Ferdinand Schlingensiepen. Dietrich
Bonhoeffer 1906-1945: Martyr, Thinker, Man of Resistance. London: T & T Clark, 2010,
p. 117. A biografia de Bonhoeffer por Schlingensiepen, ainda não disponível em
português, é considerada pelos experts no pensamento bonhoefferiano como a
segunda melhor de todas jamais escrita, só superada pela de Eberhard Bethge,
com mais de mais de mil páginas, e também ainda não disponível em português.
7 Há
uma biografia de Canaris em português, de autoria de Richard Bassett: Almirante
Canaris, misterioso espião de Hitler. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
Bassett cita Bonhoeffer apenas duas ou três vezes nas mais de 350 páginas do
livro.
8
Quanto ao Cristianismo Positivo na Alemanha e algo perigosamente semelhante no
Brasil, consultar Carlos Caldas, “Não posso suportar iniquidade associada ao
ajuntamento solene”: o “Cristianismo Positivo” tupiniquim. IHU Online.
Disponível em
https://ihu.unisinos.br/categorias/598306-nao-posso-suportariniquidade-associada-ao-ajuntamento-solene-o-cristianismo-positivo-tupiniqui