Ainda estou aqui — Lembrar, para que não aconteça de novo
Por Carlos Caldas
Zkor – esta é a forma do imperativo segunda pessoa do
singular do verbo hebraico zakar (lembrar-se). Logo, zkor é “lembra-te” em
português . Lembrar, lembrar-se. Zkor é a raiz do nome Zacarias – “O Senhor
(Javé) lembra”, ou “O Senhor lembrou-se”. Curiosamente, zkor – lembra-te – é o
mandamento mais vezes citado na Bíblia Hebraica. Em outras palavras, o que Deus
mais vezes ordenou a seu povo é que este não se esqueça de algumas coisas.
O que tem esta palavra hebraica a ver com o filme Ainda
estou aqui? Explicarei. Lembrei-me dela quando comecei a escrever estes breves
comentários sobre o mais novo sucesso dirigido por Walter Salles. Lançado no
final de 2024, o filme foi, e enquanto estas linhas estão sendo escritas, na
primeira semana de 2025, segue sendo um grande sucesso de bilheteria. Por
enquanto, cerca de 3 milhões de pessoas em todo o país já o assistiram. Peço
agora permissão a você que me lê para falar na primeira pessoa do singular: fui
assistir ao filme em Belo Horizonte mais ou menos quatro semanas depois de sua
estreia. Foi emocionante ver que a sala estava repleta, e depois do filme,
todos batendo palmas entusiasmadamente, e uma fila grande na porta esperando
sua vez para ver a sessão seguinte.
Do que trata Ainda estou aqui? Melhor falar primeiro do que
o filme não trata: não é um documentário sobre a ditadura militar. Antes, é a
história de uma família, tema tão caro para todos, independentemente de qual
seja a preferência política ou afiliação religiosa. Ainda estou aqui fala de
uma família que sofreu uma perda, um luto que perdura até hoje, pois à família
não foi dado o direito de sepultar o seu morto. Ainda estou aqui é a história
de uma mulher valente, guerreira, que não se deixou mergulhar em
autocomiseração nem se permitiu vencer pelo vitimismo, uma mulher corajosa que
enfrentou dificuldades imensas e nunca deixou de denunciar a injustiça
perpetrada contra sua família.
A base para o roteiro do filme é o livro homônimo Ainda
estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (n. 1959), filho do deputado federal Rubens
Paiva . Marcelo é escritor experiente: é de sua lavra Feliz ano velho, que
vendeu muitos milhares de cópias, onde ele narra sua tragédia pessoal, acontecida
em 1979, quando tinha apenas 20 de idade, um acidente que o deixou para sempre
preso a uma cadeira de rodas . Em entrevistas recentes Marcelo declarou que a
motivação para escrever o livro foi perceber que sua mãe, Eunice, começava a
sofrer perda de memória decorrentes de sofrer de Alzheimer. O livro é baseado
nas memórias da infância de Marcelo, mas também em uma pesquisa extensa que ele
realizou. Afinal, ele era um menino quando a desgraça se abateu sobre sua
família.
O filme foi roteirizado por Murilo Hauser e Heitor Lorega e,
como já afirmado, dirigido por Walter Salles, que dispensa apresentações,
tamanho o seu reconhecimento, no Brasil e no exterior. É a história do drama
vivido pela família de Rubens Paiva em 1971, época da ditadura militar no Brasil.
O casal Rubens e Eunice tem cinco filhos (quatro filhas e um filho). A família,
de classe média alta, vive muito confortavelmente na zona sul carioca, em uma
casa grande, e constantemente realiza jantares para recepcionar seus amigos.
Talvez as cenas iniciais do filme que mostram uma família feliz, funcional e
harmoniosa, com as crianças brincando na praia e na rua, tenham sido longas
demais. Mas está claro que o objetivo da narrativa é exatamente mostrar o
contraste do drama sofrido pela família, o antes e o depois: antes, uma família
“de propaganda de margarina”, e depois, dificuldades horríveis. A vida
tranquila dos Paiva se desmoronou por causa da truculência paranoica e perversa
do governo militar. Rubens era engenheiro de formação, e tinha sido deputado
federal pelo PTB, Partido Trabalhista Brasileiro. Teve seu mandato cassado e em
um dia fatídico de 1971, preso em sua casa e levado para um quartel de uma das
Forças Armadas. Ele nunca mais voltou para casa. Sua esposa Eunice e Eliana,
uma das filhas, também foram presas e ficaram incomunicáveis durante cerca de
duas semanas. Impossível imaginar a angústia sofrida por Eunice durante aqueles
dias. O filme vai então mostrar a luta heroica daquela mãe de família para
criar seus cinco filhos e lutar para que o Estado assumisse a morte de seu
marido. Posteriormente soube-se que Rubens veio a falecer em consequência das
torturas que sofreu.
O filme acerta na fotografia, no jogo de luz e sombras, e na
também na trilha sonora. Assisti-lo é uma experiência angustiante, pois tem-se
uma impressão de sufocamento ao vê-lo. E é aí que entra a atuação magistral de
Fernanda Torres, que deu uma aula magnífica de atuação no papel de Eunice. A
interpretação impecável de Fernanda Torres foi devidamente reconhecida com sua
conquista do Globo de Ouro na categoria Melhor Atriz de Filme Dramático,
ocorrida em Los Angeles na noite de 5 para 6 de janeiro. O que realça e
valoriza ainda mais sua vitória é que ela superou concorrentes de peso: Nicole
Kidman, Angelina Jolie, Kate Winslet, Pamela Anderson e a inglesa Tilda Swinton
– esta última conquistou o coração dos brasileiros pela reação espontânea,
“totalmente emocionada” que teve quando a atriz Viola Davis anunciou que a
brasileira, que não tem o inglês como língua materna, ganhou o prêmio.
De fato, a trajetória de Eunice é impressionante: a família
passou dificuldades financeiras sérias, pois o Estado não admitia a morte de
Rubens Paiva, logo, não havia certidão de óbito. Sem este documento, não seria
possível sacar o dinheiro que ele tinha em sua conta bancária. Ela se vê
obrigada a voltar para São Paulo, e reassume Facciolla, seu nome de solteira.
Aos 48 anos formou-se em Direito, e assumiu a causa da defesa dos direitos dos
povos indígenas. Uma mulher admirável, maravilhosamente bem interpretada por
Fernanda Torres. Há que se observar que Fernanda Torres tem longa experiência
na comédia, e é difícil alguém que se desempenha bem no humorismo conseguir
sair-se bem no drama. Geralmente quem é bom em comédia, não é bom em drama, e
vice-versa. Mas ela está se mostrando muitíssimo competente nas duas áreas.
Também foi emocionante o discurso de agradecimento de
Fernanda Torres na premiação do Globo de Ouro: bonito vê-la homenagear a outra
Fernanda, a Montenegro, sua mãe, já com 95 anos. A propósito, Fernanda
Montenegro teve uma ponta no filme, e mesmo sendo uma cena muito rápida,
impressionou com a expressividade de seu olhar. Bonito ver a maneira meiga e
delicada com que Fernanda Torres tem dado entrevistas após a conquista do prêmio,
falas isentas de arrogância ou estrelismo.
Zkor – lembra-te. Ainda estou aqui é um apelo profético a
que a sociedade brasileira se lembre dos abusos do governo militar . A geração
jovem, que nasceu depois dos anos 2000, não tem a menor ideia do que foi a
ditadura militar no Brasil. E alguns dos mais velhos idealizam um passado, e
dizem que “naquele tempo é que era bom”, mas falam de um passado que só existiu
em sua imaginação. Rubens Paiva foi um caso, um entre muitos. Há que se lembrar
também de Wladimir Herzog, de Paulo Wright, de Stuart Angel, e de tantos,
tantos outros que foram torturados brutalmente e assassinados pelo governo de
exceção. É preciso se lembrar de tudo isso que aconteceu, para que não aconteça
de novo. Neste sentido, Ainda estou aqui é extremamente importante para a nossa
sociedade. Zkor.
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1. O mandamento Zkor – lembra-te – está escrito em letras
garrafais no Yad Vashem, o “Memorial ao Nome”, o Museu do Holocausto (que os
judeus designam pela palavra hebraica shoah, que significa “destruição) em
Jerusalém. A ideia é justamente a de não se esquecer daquela tragédia, para que
ela não aconteça novamente.
2. O livro foi publicado em 2015 pela editora Alfaguara.
3. Feliz ano velho foi publicado originalmente em 1982 pela
editora Brasiliense.
4. Para detalhes quanto ao que foi na verdade o período da
ditadura militar no Brasil vale a pena consultar o documento Brasil: Nunca
Mais, o relatório de uma pesquisa extensa realizada de 1979 a 1985 por um
projeto homônimo liderado por Dom Paulo Evaristo Arns, à época, Arcebispo da
Arquidiocese de São Paulo, pelo pastor presbiteriano Jaime Wright e pelo rabino
Henry Sobel. A primeira edição do livro é de 1985, pela editora Vozes, e desde
então já teve mais de 40 edições. Consultar também a alentada e volumosa
pentalogia do jornalista Elio Gaspari: A ditadura envergonhada (Vol. 1); A
ditadura escancarada (Vol. 2); A ditadura derrotada (Vol. 3); A ditadura
encurralada (Vol. 4) e A ditadura acabada (Vol. 5), publicada pela editora
Intrínseca.
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OPINIÃO PESSOAL:
FINANCIADO PELA ESQUERDA //ROUANET
MÍDIA FAVORECEU...
NÃO FOI DITADURA...PERÍODO MILITAR...ESTAVAM ENTREGANDO O PAÍS AO COMUNISMO ... HOUVE EXCESSOS...PUNA OS CULPADOS...
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