Mauritânia: o último reduto da escravidão tradicional no
mundo
O governo mauritano nega há décadas que a escravidão exista.
Isso dificulta ainda mais que as pessoas escravizadas tenham acesso a seus
direitos.
Beatriz Sanz, do R7
Muitas crianças na Mauritânia ainda nascem como escravas
É difícil de acreditar que no século XXI ainda exista no
mundo um lugar onde crianças nascem escravas, mas na Mauritânia essa ainda é a
realidade de muitas pessoas.
No país do noroeste da África, o sistema de escravidão ainda
é o tradicional, semelhante ao que o Brasil viveu por quase quatro séculos. Lá,
os mais ricos ainda podem ser “donos” de outras pessoas. A condição de escravo
é hereditária e passa de mãe para filho.
“Eles [as pessoas escravizadas] estão socialmente mortos,
invisíveis. Ao contrário de outras formas de escravidão, essas pessoas não
conhecem a vida fora da zona permitida em que vivem”, explica a primeira
Relatora Especial sobre Escravidão no Conselho de Direitos Humanos da ONU,
Gulnara Shahinian, que acompanha muito de perto a situação no país africano.
Não existem dados oficiais confiáveis sobre a quantidade de
pessoas escravizadas que vivem na Mauritânia, mas as estimativas são altas. O
Índice Global de Escravidão divulgado em 2016 aponta que 43 mil pessoas, o que
equivale a 1% da população do país executa trabalhos forçados.
Mas o especialista em escravidão Mike Dottridge, ouvido pelo
R7, questiona esse dado.
“Isto é baseado em uma amostra aleatória, uma pesquisa
nacional representativa conduzida em 2015, que procurou identificar casos de
casamento forçado e trabalho forçado na população em geral”, afirma. Gulnara
confirma que os dados disponíveis não são confiáveis.
Oficialmente, o governo da Mauritânia nega a existência da
escravidão no país. Logo, não existem dados do governo sobre o número de
pessoas escravizadas no país conduzido pelo presidente Mohammed Ould Abdelaziz,
um militar que deu um golpe de estado para chegar ao poder.
A abolição oficial da escravidão no país só aconteceu em
1981. A Mauritânia foi o último país do mundo a proibir a escravidão
legalmente.
Mas a transformação da prática da escravidão em crime só
aconteceu 26 anos depois, em 2007. Até então, apenas dois donos de escravos
haviam sido condenados judicialmente, segundo um relatório da Anistia
Internacional.
Estupros e casamentos forçados
Uma das faces mais cruéis da escravidão na Mauritânia é que
as mulheres que ainda vivem no sistema da escravidão são estupradas por seus
donos, já que a escravidão é condição hereditária e essas crianças também
nascerão escravas.
Além disso, mesmo sendo pessoas livres, os mouros negros que
tiveram familiares escravizados sofrem com o preconceito e continuam a carregar
os estigmas de uma vida de servidão.
“Mesmo depois de escaparem da escravidão eles não podem
acessar nenhum dos benefícios que o estado fornece a outros cidadãos, porque
eles não têm certidões de nascimento”, conta Jakub Sobik, gerente de
comunicação da ONG britânica Anti-Slavery.
Como são considerados propriedades, essas pessoas podem ser
vendidas, herdadas e até mesmo doadas como presente de casamento.
Outro costume dos
donos de escravos é casar as adolescentes à força.
Escravidão é baseada na cor da pele
Como aconteceu na maior parte do mundo, a escravidão na
Mauritânia também é baseada na cor da pele dos escravos. No país, os mouros
brancos escravizaram os mouros negros.
Os mouros negros, são divididos em duas grandes categorias
os haratine, que são pessoas que tiveram ancestrais escravizados, mas são
livres; e os abid, que continuam no regime de servidão.
A sociedade moura se divide em castas semelhante ao sistema
hindu. Os estratos mais altos — sacerdotes religiosos e guerreiros, por exemplo
— são reservados para os mouros brancos.
Eles são ainda maioria no governo, no Legislativo e também
no Judiciário. Isso é apontado pelos especialistas como um dos principais
fatores que dificultam as condenações dos escravagistas mauritanos.
“Promotores, juízes, policiais e autoridades locais em sua maioria
são das castas dominantes e mantém relações com donos de escravos ou eles mesmo
são donos de escravos”, afirma Jakub Sobik.
Os censos de população na Mauritânia não são divulgados, mas
acredita-se que a população negra seja maioria.
No sul do país, existem ainda outras etnias de população de
pele escura que não foram escravizadas.
Dificuldade para condenar escravistas
A criminalização da escravidão, no entanto, não facilitou a
condenação de outros donos de escravos como era esperado. A lei existe no papel,
mas não é colocada em prática.
O governo sequer admite que a escravidão tradicional ainda
exista.
Para Gulnara Shahinian, que trabalha denunciando casos de
escravidão na ONU, a falta de ação do governo mauritano pode ser explicada em
parte por conta da responsabilidade legal gerada ao se admitir que a escravidão
existe.
Ainda assim, algumas vezes, a Justiça da Mauritânia faz
alguma condenação, no melhor estilo “para inglês ver”. Em março deste ano, dois
antigos donos de escravos foram condenados há 10 e 20 anos de prisão pelo crime
de possuir escravos.
Em janeiro de 2018, uma decisão internacional surpreendeu os
militantes antiescravidão da Mauritânia. O Comitê Africano de Especialistas em
Direitos e Bem-estar da Criança exigiu que o governo mauritano preste auxílio a
dois garotos que fugiram dos maus tratos de seu antigo dono em 2011.
Este caso já havia sido julgado no tribunal do país e a pena
já havia sido definida: dois anos de prisão para o mestre escravista Ahmed Ould
El Hassine e indenização no valor de cerca de US $ 4.700 (cerca de R$ 16 mil)
para cada um dos garotos.
A pena, no entanto, não foi cumprida e o caso ficou parado
no tribunal, o que gerou a condenação internacional. Agora o governo mauritano
está obrigado a arcar com a indenização.
Militantes e ONGs têm dificuldades para atuar
Além de dificilmente punir donos de escravos, a Mauritânia
facilmente pune ativistas que defendem o fim da escravidão.
A principal ONG sobre o tema do país se chama SOS Esclaves
(SOS Escravos). Ela atua desde 1995 no país, mas só foi legalizada em 2005.
Um dos principais líderes da SOS Esclaves, Biram Dah Abeid,
foi preso e processado por “atividades ilegais”, em 2010. No ano seguinte ele
foi condenado a 12 meses de prisão, mas foi perdoado pelo presidente Abdel Aziz
na sequência.
Outra organização que trabalha pelo fim da escravidão no
país é a IRA (Iniciativa para o Ressurgimento do Abolicionismo, em tradução
livre do francês) que até hoje atua na clandestinidade pois não é reconhecida
pelo governo.
Em 2016, 13 membros dessa organização foram sentenciados a
15 anos de prisão cada por participarem de um protesto contra a escravidão.
Os militantes destacam que, como aconteceu no Ocidente, a
religião é usada na Mauritânia para justificar a escravidão. A religião oficial
do país é o islamismo.
“Como os escravos são analfabetos, o mestre usa a religião,
a divisão da família e outros fatores para mantê-los sob controle”, conta
Gulnara Shahinian.
Muitos sacerdotes utilizam trechos do alcorão para
fundamentar a escravidão.
Em protestos contra a escravidão é comum a queima de livros
religiosos.
A realidade do país onde ser escravo de nascença ainda é
'normal'
Na Mauritânia, um país no noroeste da África, as pessoas
mais ricas ainda podem ter escravos. O país não reconhece oficialmente que a
escravidão seja uma realidade e não toma medidas reais para punir os donos de
escravos. A abolição legal só aconteceu em 1981 e a escravidão tornou-se crime
apenas em 2007
Não existem dados oficiais confiáveis sobre quantas pessoas
vivam nessa condição no país, mas estima-se que seja cerca de 43 mil pessoas, o
que equivale a 1% da população. A maioria das pessoas escravizadas seriam
mulheres
Muitas crianças também são escravas porque, quando uma
mulher que está na condição de escrava tem um filho, ele também será
escravizado. Alguns desses garotos conseguem se livrar dessa situação e fugir
quando crescem, mas muito poucos conseguem libertar suas famílias
A escravidão na Mauritânia é baseada em um sistema de
castas, como na Índia. Os mouros brancos escravizaram os mouros negros, que
também são chamado de haratine. Mesmo depois que um haratine é libertado, ele
continua sofrendo preconceito de toda a sociedade
Os especialistas em escravidão ouvidos pelo R7 explicam que
em sua maioria, as pessoas escravizadas não possuem certidão de nascimento e
quando são libertadas não podem receber auxílio do Estado
Como são tratados como propriedade, os escravos podem ser
vendidos ou dados de presente em casamentos. Eles não possuem independência. É
costume entre os donos de escravos referir-se a essas pessoas como "da
família" o que dificulta ainda mais a fiscalização
Como os donos de escravos são ricos e fazem parte da elite
local, eles raramente são punidos por seus crimes. São muito poucas as
condenações de donos de escravos na Mauritânia
Além disso, ativistas que trabalham pelo fim da escravidão
têm seu trabalho ameaçado pela Justiça e muitas vezes são presos ao tentar
denunciar essa realidade degradante para o resto do mundo
Veja também: A realidade do país onde ser escravo de
nascença ainda é 'normal'
Na Mauritânia, um país no noroeste da África, as pessoas
mais ricas ainda podem ter escravos. O país não reconhece oficialmente que a
escravidão seja uma realidade e não toma medidas reais para punir os donos de
escravos. A abolição legal só aconteceu ...
Na Mauritânia, um país no noroeste da África, as pessoas
mais ricas ainda podem ter escravos. O país não reconhece oficialmente que a
escravidão seja uma realidade e não toma medidas reais para punir os donos de
escravos. A abolição legal só aconteceu em 1981 e a escravidão tornou-se crime
apenas em 2007
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