DIA DO
PROFESSOR
Como um
professor de escola pública e uma parlamentar negra criaram o Dia do Professor
há quase 80 anos
Antonieta
de Barros, em foto sem identificação.
14
outubro 2025
Na sala
dos professores do Ginásio Caetano de Campos, conhecido como Caetaninho, uma
escola pública que funcionava na Rua Augusta, uma questão angustiava: era
preciso buscar uma solução para aliviar o calendário letivo no segundo
semestre, então carente de pausas para o descanso.
Foi
quando o piracicabano Salomão Becker (1922-2006) teve uma ideia. Ele se lembrou
de que em sua cidade-natal havia a tradição de um dia em que os alunos levavam
doces e salgadinhos para se confraternizar com os professores. Juntou alhos com
bugalhos e propôs uma pausa nas atividades escolares para que fosse celebrado o
Dia do Professor — que hoje é celebrado no Brasil todo dia 15 de outubro.
A
escolha da data não poderia ser mais conveniente: mais ou menos no meio do
segundo semestre escolar, coincidindo com o dia da primeira legislação
brasileira a instituir oficialmente a educação pública primária em todo o
território nacional, a Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, sancionada pelo
imperador d. Pedro 1º (1798-1834).
Em
1947, portanto, o Caetaninho passou a ter o Dia dos Professores. E a ideia logo
foi se espalhando por outros colégios. Tanto que, no ano seguinte, se tornou
lei paulista.
"A
iniciativa de Salomão Becker é a gênese afetiva e comunitária da data",
comenta à BBC News Brasil o publicitário Rinaldo Allara Filho, pesquisador da
área de educação e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Ele
percebeu o esgotamento físico e mental dos colegas ao final de um longo período
letivo e teve uma ideia simples, porém profundamente humana: organizar um dia
de folga e confraternização."
"O
objetivo dele não era criar um feriado nacional, mas sim um momento de pausa e
reflexão", explica Allara. "Era uma oportunidade para os professores
se reunirem, trocarem experiências sobre os desafios da profissão, analisarem
os problemas em comum e, principalmente, descansarem e se sentirem valorizados
por seus pares. A iniciativa nasceu 'de baixo para cima', a partir da vivência
real da sala de aula. Era sobre congraçamento, sobre criar uma comunidade de
apoio mútuo em um ofício que pode ser muito solitário."
Questão
constante na história brasileira, a busca pela valorização do trabalho do
professor era uma preocupação naqueles anos 1940. Tanto que, naquela mesma
época, a professora catarinense Antonieta de Barros (1901-1952), então deputada
estadual, criou uma lei instituindo o Dia do Professor como feriado escolar em
Santa Catarina.
Barros
entraria para a história como a primeira mulher negra a ser eleita para um
cargo público no Brasil, tornando-se um ícone de pioneirismo tanto para o
movimento negro quanto para a causa feminista.
"O
professor Becker não estava só em sua iniciativa. Outros personagens se
destacaram com essa ideia [de valorizar o magistério]. Por coincidência ou não,
a professora Antonieta de Barros trabalhou nesse mesmo sentido, de valorizar a
figura do professor mediante o estabelecimento da efeméride", afirma à BBC
News Brasil o educador Italo Francisco Curcio, consultor da Fundação Eduardo
Carlos Pereira. "E ela o fez, por meio de uma lei estadual."
Allara
pontua que embora não haja evidências de conexão direta ou colaboração entre
Becker e Barros, é preciso ressaltar o "espírito do tempo" do Brasil
daquela época.
"O
país vivia um período de redemocratização após o Estado Novo, e havia um debate
nacional intenso sobre os rumos da nação e o papel da educação nesse processo
de reconstrução. A necessidade de valorizar o magistério era uma pauta latente
na sociedade", diz o professor.
"Particularmente
penso que, as duas iniciativas, embora independentes, podem ser vistas como
duas manifestações distintas, porém complementares, dessa mesma necessidade,
uma nascida da prática e da solidariedade de classe em São Paulo, e outra, da
visão política e do compromisso social em Santa Catarina."
Allara
observa que há uma complementaridade entre as duas iniciativas.
"Mostra
que a luta pela valorização não é uma abstração, mas foi liderada por pessoas
reais, com motivações concretas. Becker nos lembra da importância do cuidado
mútuo e da saúde mental docente. Antonieta nos inspira com sua resiliência e
visão política", afirma.
Fato é
que a proposta pegou em todo o país. Em outubro de 1963, o então presidente
João Goulart (1919-1976) publicou um decreto instituindo o feriado escolar do
Dia do Professor no território nacional.
História,
geografia e direito.
Formado
em filosofia pela Universidade de São Paulo, Becker foi professor de história e
geografia em diversas escolas públicas e privadas ao longo de 49 anos. Ele era
filho de imigrantes que trocaram a Moldávia pelo Brasil no início dos anos 1910
e deficiente físico — tinha paralisia total no braço direito, desde o
nascimento.
Na
juventude, Becker teve uma breve passagem pelo jornalismo, como repórter do
jornal Folha da Tarde. Encontrou-se mesmo no magistério. Tanto que, já
aposentado, decidiu cursar Direito e, tão logo se diplomou, acabou se tornando
professor de direito internacional na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Curcio
reconhece que há poucas informações biográficas que detalhem a trajetória de
Becker mas que, "bastou essa iniciativa", a da criação da data
comemorativa, "para mencionar-se sua notoriedade".
"Entendo
que ele estava imbuído do mesmo princípio que o meu: o da necessidade de se
destacar uma data para homenagear um personagem marcante em nossa vida, o
professor, a professora", comenta o educador.
"Com
seus quase 50 anos de docência, os registros históricos disponíveis acerca de
sua biografia são parcos e não nos possibilitam destacar eventuais outras
grandes marcas, que possam ter sido vivenciadas. Mas, mesmo assim, sabe-se de
seu brilhantismo e dedicação singular na sua vida de professor", avalia
Curcio.
Para o
educador, Becker almejava "muito mais do que a efeméride". "Ele
queria festejar e promover um dia de destaque do professor"salienta.
Pioneira
Antonieta
de Barros é uma figura que vem sendo resgatada do apagamento nos últimos anos —
em 2023 teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Filha
de uma lavadeira, ex-escravizada, com um homem sobre o qual há poucas
informações, teve uma infância pobre e difícil em Florianópolis.
Para
ajudar nas despesas domésticas, sua mãe transformou a casa da família em uma
pensão para estudantes. Conta-se que foi essa convivência que fez da menina uma
apaixonada pelas letras. Tudo indica que foi por causa desses clientes de sua
mãe que Barros se alfabetizou, inclusive.
Tornou-se
professora e, ao longo da vida, dividiu-se entre empregos em escolas e o curso
particular que ela criou para alfabetizar crianças pobres e sem acesso escolar.
Também
foi jornalista. Fundou o dirigiu o jornal A Semana e escreveu para a imprensa
local, não raras vezes tecendo críticas sociais.
Na
política, iniciou como ativista de classe — foi uma das fundadoras da Liga do
Magistério Catarinense. Mais tarde, se tornaria deputada estadual, uma das
primeiras mulheres eleitas do país e a primeira mulher negra a ocupar um cargo
eletivo. Também foi constituinte em 1935.
"A
história de Antonieta de Barros ressignifica a data", ressalta Allara.
"Ela nos lembra de que a valorização do professor está intrinsecamente
ligada à luta por uma sociedade mais justa, inclusiva e equitativa."
"Ela,
uma mulher negra educando a partir das margens, viu na institucionalização do
Dia do Professor um ato de afirmação da educação como pilar da democracia.
Portanto, revisitar sua história não é apenas resgatar o passado; é nos
inspirar para lutar por um futuro onde a valorização do professor seja, de
fato, a prioridade que a sociedade brasileira merece."
Sala de
aula de curso de alfabetização para adultos e crianças no Rio, em 1963, ano em
que foi instituído o Dia do Professor no Brasil
,Sala
de aula de curso de alfabetização para adultos e crianças no Rio, em 1963, ano
em que foi instituído o Dia do Professor no Brasil
Marco
fundador
Estudioso
da história do magistério no Brasil há 30 anos, o linguista Vicente de Paula da
Silva Martins, professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), no
Ceará, lembra à BBC News Brasil que é preciso destacar a importância da data
escolhida no Brasil para comemorar o Dia do Professor.
"É
o marco fundador do sistema nacional de ensino e da valorização jurídica da
profissão docente", destaca ele, referindo-se ao decreto imperial de 1827.
"Escolher essa data não é apenas um gesto comemorativo: é o reconhecimento
da origem legal, institucional e simbólica da docência no Brasil."
Ao
analisar a legislação original, Martins explica que ali estão os fundamentos
que definem quem são os professores, quais seus papéis e como deveria se
estabelecer a autoridade pedagógica no país recém-independente.
"Tudo
isso inserido em um projeto de sociedade cujas marcas ainda influenciam a forma
como valorizamos, ou nem sempre valorizamos, o magistério", pontua.
A lei
daquela época, por exemplo, delimitava diferenças entre professor e mestre. O
primeiro era responsável direto pela instrução dos alunos. Já o mestre ocupava
posição mais elevada na hierarquia escolar, exercendo papéis de supervisão,
orientação, coordenação e liderança.
Martins
observa que tal "arranjo institucional" previa a "construção de
uma hierarquia sociopedagógica", com papéis definidos de instrução e de
controle e organização do ensino. Para ele, portanto, houve não apenas a
organização do ensino das primeiras letras, mas a consolidação de "uma
estrutura educacional marcada por desigualdades de função, prestígio e
gênero".
"Todos
os mestres eram professores, mas nem todo professor era mestre. E as mestras,
embora formalmente reconhecidas, atuavam sob limites impostos pela sociedade
patriarcal da época", resume. "Essa distinção, cristalizada
legalmente, ecoa ainda hoje em debates sobre valorização docente, liderança
pedagógica e igualdade de gênero na educação brasileira."
Para o
professor da UVA, a lei de 1827 tem de ser entendida como "documento
fundamental para compreender a formação da educação pública no Brasil".
"Ela representa, ao mesmo tempo, um avanço normativo e um reflexo das
contradições do liberalismo brasileiro no século 19", avalia Martins.
"É uma lei de inspiração moderna, que valoriza o mérito, a instrução e a
profissionalização do magistério. Mas que permanece presa às amarras da
centralização imperial."
Por
outro lado, ele reconhece que, ao determinar a criação de escolas de primeiras
letras em todo o território, o imperador empreendeu, para os padrões da época,
"uma tentativa ousada de universalizar o ensino básico".
"A
educação, que até então era privilégio das elites e muitas vezes restrita a
instituições religiosas, passou a ser entendida como um serviço público, sob
responsabilidade direta do Estado", contextualiza ele. "Essa mudança
de paradigma foi essencial para a construção de uma identidade nacional que
valorizasse o saber e a formação cidadã."
A lei
imperial foi a primeira a reconhecer o professor como "agente
fundamental" na "formação moral, intelectual e cívica dos
cidadão".
E
estabelecia até mesmo a remuneração que deveria ser dada aos professores. De
acordo com estudo de Martins, os valores previstos naquela legislação, se
atualizados para a realidade atual, indicariam que um professor deveria receber
ordenados mensais de no mínimo R$ 5.733 — e um teto de R$ 14.336.
O
currículo básico deveria ensinar leitura, escrita, aritmética, gramática, moral
cristã, religião católica, geometria e constituição e história do Brasil.
Para os
especialistas, a data ainda hoje é importante para provocar uma valorização do
magistério. "Apesar de ter menos pompa do que em outras épocas", diz
Curcio.
Allara
vê "uma dualidade" no feriado escolar.
"Por
um lado, há uma dimensão afetiva e genuína, manifestada por alunos e famílias,
que reconhece o impacto do professor em suas trajetórias. Esse reconhecimento é
valioso e necessário para o bem-estar emocional do docente", comenta ele.
"Contudo,
por outro lado, essa celebração pontual contrasta com um desafio estrutural. A
data promove um reconhecimento sentimental, mas ainda falha em impulsionar a
valorização profissional da categoria. A sociedade precisa avançar na percepção
do magistério, superando a imagem histórica de uma profissão puramente
vocacionada, que por vezes beira a filantropia em termos de condições de
trabalho, para consolidá-la como um pilar estratégico na construção de futuros
cidadãos."
Ou
seja: a data celebra o professor, mas ainda faltam políticas que valorizem
efetivamente o magistério.
"As
celebrações não dependem apenas do sentimento de alguém que as organiza ou que
as sugere, mas, sobretudo de quem as assimila, inclusive seu organizador ou seu
proponente. Por isso, o tom da celebração é relativo", pondera o educador
Curcio.
"Eu
ainda creio que o professor é uma figura respeitada e celebrada."

Sem comentários:
Enviar um comentário