A segunda condenação da minha avó
Uma escandaleira, hem, avó! Lá, por trás dos montes, onde as fragas e os cães guardavam as virtudes como ovelhas em filinha!
Está pronto o teu cházinho, avó. Vamos conversar as duas. Conversas de mulheres. Grande mulher foste tu, avó! Foi-se embora cedo o meu avô. Deixou-te com quatro filhos. Todos ainda tão meninos. Vestiste o corpo de preto, enlutaste a alma pelo tempo da lei, mas a tua cabeleira frisada, o teu narizinho meio de judia, os teus olhos de cotovia, não se sepultaram com ele. E outro amor chegou. Complicado, sim, mas amor, avó. Um amor de paixão, um amor de rainha, um amor de vermelho e um amor de chuva. O amor continua a ser assim, avó. Não tem mesmo emenda. Foste mãe outra vez. Uma escandaleira, hem, avó! Lá, por trás dos montes, onde as fragas e os cães guardavam as virtudes como ovelhas em filinha! O teu pai, que te ensinou desde menina a seguir os bons costumes, envergonhou-se do teu pecado e penitenciou-te, não foi, avó? Deserdou-te! E tu, menina rica e bem-falante, a tomares chá desde pequenina, com sabedoria de escola, prendada com finas mãos, arte de bordados e rudimentos de costura, tu com cinco filhos, deitaste mãos à obra e começaste a vestir a fina flor da vila com vestidos da tua criação. Para mim, bordaste vestido de batizo, que dorme no malote dos tesouros pequenos. Ainda hoje o acordei. As florinhas precisam de ar e rega, de vez em quando, avó. E o teu chá, avó? E as duas amigas que tomavam chá contigo? As amigas que não beberam chá em pequeninas e que não se importavam que tivesses pecado? Ainda por cima, tu não tinhas nada ar de madalena arrependida, avó! Tu nunca rezaste as salve-rainhas que o senhor padre te receitou para curares essa tua inclinação para o amor, pois não? Tu nunca me ensinaste uma reza, nem sequer a do anjo da guarda! Tu contavas-me histórias. Eu adorava aquela da menina que corria atrás das palavras, as semeava no quintal e as vestia com retalhinhos de seda, chita ou flanela, como os vestidos das madames. Lembras-te, avó? Olha, avó, o teu pai, o padre, a vila, condenaram-te, mas tu encantaste a tua neta, acendeste-lhe a vida toda, avó.
Se tu tivesses vivido naquele tempo a seguir, hoje também envelhecido, naquele tempo em que a imaginação e a poesia foram colorindo o mundo, e o amor deixou de ser culpa e pecado e passou a ser um mandamento, naquele tempo em que as pessoas começaram a ter uma grande devoção por esta vida, naquele tempo em que os meninos, mesmo os nascidos de mães viúvas apaixonadas, começaram a ser filhos da mãe e do pai, tu tinhas sido uma heroína. Tinhas bebido chá com todo o mundo, avó, tinhas usado vestidos largos e coloridos e enfeitado de flores a tua cabeleira frisada. É certo que, até nesse tempo, houve gente que se acoitou em guaritas vigilantes, para que as virtudes velhas não criassem bolor, para espiar a alegria que roía o mundo e lançar maus olhados sobre as viúvas que não se sepultavam de preto.
Estás cansada, avó? Cansada, mas feliz? Tu é que sabias, que a vida não é para guardar na mosqueira, a vida vive-se cá fora a combater as moscas.
E a minha avó piscou-me um olho maroto de paixão no outro mundo e adormeceu.
Ainda bem que não lhe contei do primeiro sinal do fumo negro.
É que, altas instâncias judiciais, parece-me que ainda parentes das tais guardiãs das guaritas, decretaram, há dias, que a sexualidade da mulher morre cedo. Com 50 anos, já está a dar as últimas.
A minha avó não falava em sexualidade, ela vivia a paixão. Não é bem a mesma coisa, mas anda lá perto.
Esta foi a segunda condenação da minha avó.
Foto: Júlio Pando
Mulher - Dante Gabriel Rossett

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