A Geraldo Dias Machado, meu pai, in memoriam
FICÇÃO E REALIDADE
Sonhava
um sonho estranho, uma realidade desconhecida que o levava a ver sem
seus olhos, a falar sem suas palavras, a ter a pele eriçada e a mente
convulsa. Via-se numa ladeira, em descidas e subidas intermitentes. Às
vezes, ao cair, rolava até encontrar algo que o amparasse. E aí voltava a
subir.
A última vez que
assim procedera, descortinara longo caminho Uma estrada de barro,
longa, interminável e, ao longe, o mar lançando-se na praia em busca
de contato e de vida, em ação contínua e exaustiva. A estrada de barro,
sem sinais. No mar, um farol cintilava mostrando o caminho. Nele, um
navio cuja bússola fixava o norte, sem dia de retorno. Múltiplas foram
as visões entremeadas:
1.
1973...O jovem e inexperiente oficial, no tijupá da Corveta, deixava-se
molhar por gigantescas ondas. A embarcação flutuava, ao descer
mergulhava nas águas oceânicas. Aprendera que o navio poderia partir-se
ao meio, sob duas possibilidades de rompimento:
a. Para fora, se o seu centro fosse alçado por única onda; b. Para dentro, se elevado em suas extremidades por ondas distintas.
A consciência infunde temor.
Noite
escura, chuvosa, sem lua, fria. O marinheiro de serviço, ao seu lado,
silencioso. Ambos cumpriam a função de olhar para a frente prevenindo
abalroação. O Imediato, em posto de comando acima do convés principal,
atento, observava o rumo, o cumprimento da derrota. Por cautela, o
experiente comandante fizera diminuir a velocidade da embarcação
socorrista. A tormenta se agigantava.
A
angústia, a solidão, o medo controlado. O tenente em busca de sinais
elevou seu olhar, o céu escuro e impenetrável não permitia alcance. A
Corveta estremeceu com o impacto de mais uma onda, o convés ficara
alagado com águas que escorriam por escotilhas na amurada que o
limitava. O jovem oficial sentiu o ânimo fraquejar. Entregou a alma ao
Criador.
2. O sonho
profundo continuava. Escutou o toque do apito marinheiro chamando para
reunir-se em parada, depois exigindo silêncio. Um som, um gemido, toque
lúgubre penetrante, anunciando fato importante e derradeiro. Lembrou-se
do filme há muito assistido, em companhia de seu pai, Beau Gest.
3.
1965...Quatro filhos. Viajante, com representação importante. Iria a
uma terra seca, onde o sol ávido, sugava até as lágrimas que fazia
derramar. Ali notavam-se choros abafados, em luta silenciosa, para, quem
sabe, nada fornecer àquele ser implacável, que ressecava e que matava
toda gente, todo animal, num espetáculo de força e de impiedade.
4.
Os fatos se alternavam. Os palcos moviam-se. Surgiam. Desapareciam.
Estrada e mar assumiam configuração própria projetando cenas que, embora
diferentes, pareciam únicas na psique do jovem oficial.
5. A embarcação, naquele instante, transformara-se em veículo trafegando em estrada poeirenta.
6.
O desejo de retornar para casa era febril, a ponto de desprezar
qualquer outro meio confortável que não lhe diminuísse o tempo de
chegada. Abraçar a mulher e filhos, cantar vitória, saborear a vida, dia
a dia, viver sem pressa e intensamente. Tivesse ponderação evitaria,
talvez, a tragédia.
7. O
carro derrapou um quase nada. Virou, descambou devido a uma valeta. E
ele, o guerreiro, atingido pela longarina da capota da camioneta,
prostrou-se abatido na terra ressequida, onde não havia conhecidos. Os
que se achegavam falavam língua que lhe era desconexa e estranha.
Vislumbrou uma planície para aonde muitos se dirigiam.
Outro
acidentado tirara-lhe o relógio de ouro e o anel de diamantes. Uma
vaidade inexplicável. Uso inconsequente naquelas paragens. Deitado no
chão batido, seu espírito pairou assustado, inconformado. Gemidos
inaudíveis. Respiração ofegante. A caridade de um lençol que o cobriu. A
compaixão de comerciante local. Aquele homem forte, bonito, jovem,
calvo, imóvel “despedia-se”.
8.
O apito marinheiro, reverberava nos espíritos, curvados em oração
silenciosa. O jovem oficial escutava o som vindo do passado, contrito. O
presente projetava o pretérito dorido, inacreditável. Passado e
presente que não passam, dor que não termina. Só o tempo é testemunha
leniente, imparcial.
9. A
fúria da tempestade o alcançara em cheio, forte onda o derruba e o
lança numa amurada lateral cujo “portaló” não fora fechado. O mar
reclama-lhe a vida. Ele, o jovem oficial, por ato reflexo, agarra o
corrimão existente na parede da embarcação para não atender ao chamado.
Acaso despencasse sequer teria os curiosos da estrada para vê-lo. O mar
estenderia seus braços em oferenda e escravidão, depois, no dia
seguinte, o devolveria para ser achado através das rotinas de buscas.
10. O pensamento
retorna para a estrada poeirenta, ressequida pelo Sol cumprindo seu
dever de clarear e de infundir calor e fogo abrasador. As árvores
raquíticas, pacientes, esperavam as chuvas que não vinham. Com água
tudo seria vida e beleza explodindo em cores, em abundância sonhada.
Rezas, choros e pedidos eram apenas atendidos de quando em vez de
forma mitigada.
Mas, ali
havia chão onde assentar os pés, embora sofridos, rachados,
empoeirados. A estrada, sempre a mesma, firme, mantinha-se adormecida,
alongada, sem voz ou emoção. Deixava-se possuir. Bela ou não, existia
para servir a quem dela precisasse ou nela penetrasse.
O
mar, não. Voluntarioso, preexistente, de voz que se fazia estrondosa
não conhecia respeito. Tolerante até o momento em que entrava em embate
com o vento, que o açoitava, sem trégua. Então, se fazia monstruoso
engolidor de coisas e de homens.
11.
O sepultamento ocorrera, em cova no chão, em cemitério público, ao lado
de tantos desconhecidos, sem a presença do jovem que ainda não era
oficial. O tempo e a distância não o permitiram. A notícia lá dos
confins chegara tarde inviabilizando providências.
Seus
estranhos acompanhantes trataram dos aspectos legais. O lençol custara
CR$ 27,00, depois ressarcido – sem necessidade, não houve exigência -
por via bancária. O Jovem orgulhoso assim impusera.
12.
O tempo célere levara o Tenente a conhecer as fileiras infantes.
Caminhava na lente do futuro num amálgama que desconhecia épocas.
Passado, presente e futuro eram percorridos pelo pensamento de modo
fácil e personal, como se estivesse numa estrada que a tudo ou a nada
levasse. Difícil explicar: o tempo se alonga ou se contrai dependente do
pensamento. Tudo é agora ou nunca foi. Na verdade, o oficial pensava só
existir o presente porque logo o instante passa, o presente domina e
permanece e o futuro é o presente que está acontecendo ou que irá
ocorrer. A percepção delimita as épocas para necessária referência. Só
isso.
13. O jovem
oficial no portaló principal da Corveta perfila-se em continência à sua
bandeira. É o adeus às armas. Seu pensamento está no caminho que
deverá percorrer: a estrada de terra batida, onde jamais gostaria de
estar.
O toque de
silêncio do apito marinheiro, em respeito e reverência, reverberava em
sua mente. As vestes alvas foram-se. Agora, cabelos crescidos, ténis,
jeans, camisa branca e boné – o mesmo homem, não obstante. As coisas não
vão por terem passado, há permanência silente direcionando.
14.
Novamente, seu pensamento leva-o às secas terras, à estrada poeirenta
de suas visões. Recorda pequeno cemitério, covas rasas no chão. Onde
estaria aquele para quem o toque marinheiro permanecia ativo?
15.
A realidade nele apresentava-se dual. Situações mal resolvidas,
impostas, violentas, moldam espectro, num transtorno com sintomas
vários. Então o jovem oficial – ainda que não mais o fosse – vivia sob
dois prismas desde a perda sofrida.
Perda
sem volta, perda ditada pelo destino ou pela fatalidade. O certo é que
seu íntimo vomitava continuadamente excrecências, uma superfluidade
desequilibrando a harmonia do todo.
16.
Transtornado o jovem oficial emperdigou-se, comandou o cerimonial: oito
(8) marinheiros perfilhados, o sargento que faria o apito soar em
honraria ao Comandante “presente”. Põe-se em posição militar de sentido.
Com energia, ordena: em continência, oficial general, abre o toque.
O
apito longo e melancólico cortou o ar, penetrou na caatinga. Não havia
pássaros, apenas o seu som. Reverberou, como antes, na alma do jovem
oficial, que Imaginou o encontro entre o mar e a estrada poeirenta. Dois
homens em um. Pai e filho. Sua personalidade desdobrou-se. O navio e o
veículo acidentado.
Lágrimas
molham a poeira seca, o chão de barro, penetraram até encontrar
destino, fazer-se em oração. Seguiu-se silêncio profundo, e a resposta
íntima: Não estamos sós. Um nome Emmanuel, עמנוא, Deus conosco. Um
necessário e novo começo.
De
volta à realidade palpável, ainda sob o impacto da viagem e suas
ilações, deixa a Corveta para conhecer sua filha, recém-nascida.
SSA, 05.07.2021
Geraldo Leony Machado
Um contista da Bahia,
preocupado com o destino do povo brasileiro.
P.S.
– Gratidão à Elise, minha filha, nascida no HNSa, num dia 5.7. Hoje,
casada, 3 filhos, servidora da J. Federal, pelo competente incentivo.
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