Como cérebros doados no
Brasil estão ajudando a descobrir origem do Mal de Alzheimer
Evanildo
da Silveira De São Paulo para a BBC News Brasil
Direito
de imagem Assessoria de Comunicação/FMUSP Image caption Adesão a projeto
surpreendeu cientistas - cerca de 94% dos familiares de falecidos concordam com
a doação de seus cérebros
Em duas
salas no prédio da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP),
no bairro do Pacaembu, na zona oeste da cidade, repousam, em formol ou
congelados, cerca de 4 mil cérebros humanos, de pessoas que morreram de causas
naturais com
idade ao redor de 50 anos ou mais. Não é uma mera curiosidade da capital
paulista.
Eles
foram doados pelas famílias dos mortos e têm ajudado neurologistas e neurocientistas a entender as doenças do cérebro
causadas pelo envelhecimento. Várias descobertas já foram feitas graças a esse
banco de encéfalos - entre elas, a de que o Mal de Alzheimer começa no tronco cerebral, que
conecta a medula espinhal com as estruturas localizadas acima, e não no córtex,
como se pensava até então.
O
"banco de cérebros", como é conhecido o Projeto Envelhecimento
Cerebral e Biobanco para Estudos no Envelhecimento da FMUSP, foi criado em
abril de 2004 e chegou aos números que ostenta hoje graças ao Serviço de
Verificação de Óbitos (SVO) da faculdade, que realiza cerca de 15 mil autópsias
por ano em São Paulo.
- Criados em laboratório por brasileiros, minicérebros ajudam a entender o cérebro humano
- A cientista que usa sushi para explicar o funcionamento do cérebro
Esse
número representa 45% das mortes por causas naturais, 60% das quais de pessoas
com mais de 50 anos. É uma taxa de exames de causa mortis muito grande
comparada à de outros países, onde ela não ultrapassa os 10%.
Depois
que decidem doar o cérebro, os familiares devem responder a um questionário que
tem como objetivo verificar se o parente tinha alguma perda de cognição ou
manifestação clínica que pudesse ser associada a algum quadro de demência.
"A
boa receptividade das pessoas aos nossos estudos foi surpreendente", conta
Léa Tenenholz Grinberg, professora do Departamento de Patologia da FMUSP e uma
das fundadoras do Biobanco. O índice de concordância com a doação chega a 94%.
Diagnóstico após a morte
O próximo
passo é a coleta do cérebro, que, em seguida, é levado ao Laboratório de
Fisiopatologia do Envelhecimento (Gerolab), onde passa por exames que
determinam se havia lesões cerebrais - como, por exemplo, as associadas ao
Alzheimer.
Os
pesquisadores usam os resultados e as informações prestadas pelos parentes para
fazer um diagnóstico do doador, ou seja, verificar se era sadio ou se sofria de
demência com sintomas clínicos apenas ou se tinha lesões anatômicas também.
Segundo
Lea, o SVO é único no mundo, pois é um serviço que verifica a causa de óbito de
grande parte da população de São Paulo. "Como ele possui base
populacional, o nosso Biobanco tem casos de indivíduos sem alterações
neurológicas e outros com vários diagnósticos de doenças neurodegenerativas",
explica.
Image
caption Pesquisas mostraram aos cientistas que Mal de Alzheimer começa a matar
neurônios em partes do encéfalo diferentes do que se imaginava
O
objetivo desse trabalho é justamente realizar pesquisas sobre as doenças
relacionadas ao envelhecimento.
Graças ao
Biobanco, a FMUSP ocupa uma posição de vanguarda no mundo na área de estudos de
doenças como o Alzheimer.
De acordo
com Léa, em muitos outros países, os estudos são realizados com pessoas que
procuram tratamento quando já apresentam algum sintoma, como perda de memória.
Isso dificulta o entendimento sobre o que antecedeu o problema.
Por meio
dos cérebros doados, o Projeto Envelhecimento Cerebral e Biobanco para Estudos
no Envelhecimento pode analisar casos que ainda não apresentavam sintomas da
doença, conseguindo determinar onde ela começa, como progride e quais os
sintomas iniciais, possibilitando o diagnóstico no início e facilitando a
interrupção do seu progresso.
Onde começa o Mal de Alzheimer
Foi assim
que Lea e sua equipe descobriram onde, de fato, o Alzheimer começa. Antes, é
preciso saber que o que os leigos chamam de cérebro na verdade é o encéfalo,
que é composto pelo cérebro propriamente dito, pelo cerebelo e pelo tronco.
Esse
último é uma importante estrutura do sistema nervoso central, que controla
funções involuntárias fundamentais para a sobrevivência, como a respiração, os
batimentos cardíacos, a pressão sanguínea e o sono.
Os
pesquisadores descobriram que o Alzheimer dá os primeiros sinais de sua
existência justamente numa parte específica do tronco, chamada núcleo dorsal da
rafe.
"Mostramos
que essa área, localizada no mesencéfalo (uma parte do encéfalo localizada no
pescoço) e maior produtora de serotonina do cérebro, desenvolve alterações da
doença antes das que eram consideradas as iniciais até então, situadas no
córtex entorrinal (uma parte do córtex cerebral)", explica Lea.
"Em
seguida, em outros estudos com colaboradores, descrevemos cerca de 15 áreas
cerebrais que apresentam essas lesões antes do córtex entorrinal."
O que Lea
encontrou nessa região do encéfalo foi uma das lesões mais características do
Alzheimer, os chamados emaranhados neurofibrilares, que levam à morte dos
neurônios. Eles assinalam o surgimento e progressão da doença, ao lado de
placas extracelulares, causadas pelo acúmulo anormal de uma proteína chamada
beta-amiloide.
Segundo a
pesquisadora, graças a essa descoberta, agora é possível diagnosticar o mal em
fases ainda mais iniciais, entender a relação entre essas primeiras alterações
e sintomas como depressão, ansiedade, problemas de sono e apetite.
O que já
se descobriu também em relação a esses sintomas é que eles não são fatores de
risco para Alzheimer, como se pensava antes, mas, sim, consequências da doença.
O estudo
foi apresentado em julho na Conferência Internacional da Alzheimer's
Association, realizada em Chicago, no Estados Unidos, que reuniu cerca de seis
mil pesquisadores da doença de diversas partes do mundo.
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caption Cientistas estão analisando cérebros humanos para tentar identificar
alterações em áreas onde o Alzheimer aparece primeiro no cérebro
Exame para rastrear a doença na população
brasileira
O
Biobanco também já possibilitou a descoberta de fatores relacionados a risco de
demência relevantes para a população brasileira, como a grande prevalência de
Alzheimer por alteração nos vasos sanguíneos e risco diferencial para problemas
causados por ela em descendentes de africanos e japoneses em relação aos de
europeus.
Agora,
Lea está desenvolvendo estudos para identificar alterações nessas áreas onde o
Alzheimer aparece primeiro, utilizando técnicas de neuroimagem.
"A
ideia é criar um exame simples de rastreio, que funcionaria como a mamografia
funciona para câncer de mama", explica.
"Será
acessível o suficiente para ter grande parte da população examinada por volta
dos 50 anos e reavaliada de tempos em tempos. Assim, se não houver alterações,
não há necessidade de outros exames."
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