Sylvio Malheiro Junior |
OS "PROGRESSISTAS"
O Novo Testamento da Virtude Política é um assombro. Mas o bom senso recomenda que se considere a realidade antes de chamar o padre para dar a extrema-unção ao mundo como ele é hoje.
J. R. Guzzo
Boa parte daquilo que lhe dizem hoje em dia nos meios de comunicação, ou nas conversas do seu círculo social, indica que o mundo está ficando cada vez mais sem noção. A sua lógica recebe tiros por todos os lados. Pela mais recente tábua de mandamentos do feminismo realmente avançado, por exemplo, não se pode mais mencionar a existência de mulheres que menstruam; agora é preciso dizer “pessoas que menstruam”, sob pena de machismo, fascismo e discriminação “contra os transgêneros”. Mas biologicamente só mulheres podem menstruar; não há nenhuma outra possibilidade, desde que o ser humano surgiu, há cerca de 2 milhões de anos. O que poderia haver de errado em dizer isso? Não interessa. É preconceito, pois nega a um homem que se sente “no corpo errado”, e gostaria de ser mulher, o direito de ficar menstruado. Em suma: a menstruação deve ser tratada como um fenômeno fisiológico que pode ser acessado por todas as “pessoas”.
Todo indivíduo de pele branca, seja lá qual for o seu comportamento, é racista; segundo os generais da atual guerra pela canonização imediata e mundial da etnia negra, o equipamento genético dos brancos, ou algo assim, os condena à prática do racismo, ou do crime de “branquitude”. Não se menciona como isso poderia funcionar com as etnias orientais, por exemplo, ou com os esquimós; também não há lugar, na cabeça dos defensores mais agressivos da nova consciência racial, para as pessoas que são fruto de séculos de cruzamento entre brancos e negros.
No Brasil, por exemplo, estamos diante de um problema sem solução. Dezenas de milhões de pessoas, na verdade a maioria da população brasileira, não são brancas nem pretas — o que se vai fazer com essa gente toda? Pelo que deu para entender das últimas liminares baixadas na vanguarda intelectual do antirracismo como ele é praticado hoje, o tipo chamado “brasileiro”, ou “moreno”, também é racista — talvez até mais que os brancos. Em suma: ou o cidadão tem o seu tom de pele negra aprovado pelo “campo progressista”, ou não tem salvação possível. A “branquitude”, em si, é um delito. O sujeito não precisa ser da Ku Klux Klan, ou a favor do apartheid, para ser racista; basta ter nascido branco.
É obrigatório, para todo cidadão que queira ter uma ficha politicamente limpa neste mundo, ir à rua, protestar ou manifestar-se em público contra “o fascismo”. Não está disponível a opção de pensar em outra coisa, ou simplesmente de não pensar no assunto; pelo novo catecismo hoje em vigor, o “silêncio” equivale à prática dos delitos de racismo, machismo, exclusão social, negação da “diversidade”, injustiça, promoção da desigualdade e sabe-se lá quantas outras calamidades mais. Também é compulsória a militância ativa por um “planeta sustentável”. Seria muita sorte, para todos, se esse dever se limitasse à preservação da natureza, do ar puro e das geleiras; mas hoje em dia tudo isso está longe de ser suficiente. É indispensável, também, denunciar o excesso de bois, frangos e porcos na população animal. Sua alimentação (e a dos animais) tem de ser orgânica.
É proibido aceitar a
mecanização da agricultura, o uso de fertilizantes, a aplicação de
defensivos químicos contra pragas, as “grandes propriedades” e, em
geral, a presença do capitalismo na atividade rural. O uso de hormônios
para apressar o crescimento de frangos, por exemplo, está
terminantemente
Pelas novas regras, homens e bichos devem ter direitos iguais
Há dois meses a cidade americana de Portland, com uma população de
quase 3 milhões de habitantes na sua área metropolitana, vem sendo
destruída, incendiada e violentada por gangues que se descrevem como
“antifascistas”
Levam-se intensamente a sério, no Primeiro Mundo e nos seus subúrbios, propostas para abolir as fronteiras entre os países, acabar com os passaportes e estabelecer como “direito fundamental do homem” a possibilidade legal de imigrar para qualquer país da Terra, sem pedir licença a ninguém. Imigrantes, além disso, deveriam ter o direito de não falar a língua dos países para os quais imigraram — e ser entendidos em tudo o que dizem no seu próprio idioma, a começar pelas autoridades. É comum que se pregue a criação de leis tornando ilegal a existência da família; ela seria a base dos preconceitos, da discriminação, das diferenças de classe, do sexismo, do autoritarismo e do capitalismo selvagem.
Não deveria haver mais distinções legais entre adultos e crianças. Todos os hospícios teriam de ser fechados; a psiquiatria é uma “ciência autoritária”, e seu exercício deveria ser colocado fora da lei. A criação de animais para a alimentação humana precisa ser proibida, por equivaler à prática da escravidão. Na verdade, pelas novas regras, homens e bichos devem ter direitos iguais. Há, nessas mesmas esferas e na direção oposta da abolição de fronteiras, todo um movimento para criar áreas fechadas na cultura: só negros teriam direito de escrever sobre negros, ou de usar os seus penteados, ou de representar o papel de Otelo no teatro.
“Julgar as pessoas é visto como uma conduta discriminatória
O que mais? Mais tudo o que você quiser; a lista completa daria para
encher uma Enciclopédia Britânica, e não é preciso chegar a tanto. Já
deu para entender, não é mesmo? “Todos os limites que deram significado à
experiência humana, por centenas de anos, estão sendo questionados e
postos à prova”, disse em entrevista publicada pela Revista Oeste em sua
última edição o sociólogo Frank Furedi. Isso é resultado, em sua visão,
de uma crise moral — que por sua vez tem origem na crença, muito em
voga hoje em dia, de que é errado fazer distinções e julgamentos.
“Julgar as pessoas é visto como uma conduta discriminatória
A questão, a partir daí, é tentar enxergar para onde essa marcha da insensatez está nos levando.
Ou, mais precisamente: o pensamento descrito acima, com todos os seus similares, será ou não será capaz de interromper o progresso das sociedades humanas, tal como ele é entendido hoje? A vida vai realmente mudar? Na prática, são essas as questões que interessam no curto prazo — que, como ensina a experiência, é sempre bem mais interessante que o longo. À primeira vista, a coisa toda está com a pior cara possível. Em sua comemoração do “Dia dos Pais”, a Natura, empresa do ramo de cosméticos, acaba de dar o título de “Pai do Ano” a uma mulher; há pouco tempo, o prêmio de “Miss Espanha” foi dado a um homem. Estátuas de Cristóvão Colombo são destruídas nos Estados Unidos, e murais em sua homenagem, fechados na Universidade de Notre Dame, para que ele pague, 500 anos depois, o crime de ter descoberto a América e, com isso, levado ao “genocídio dos povos indígenas”.
Multinacionais
bilionárias, que até anteontem se achavam exemplos superiores de tudo o
que pode haver de bom na liberdade em geral (e econômica em particular),
exigem que o Facebook e o Twitter formem comitês de censura para
proibir a circulação de mensagens de “de direita/de ódio/
Jornalistas são postos para fora (do The New York Times, digamos) por não se encaixar no modelo exigido pelo “coletivo” das redações.
O filme …E o Vento Levou, rodado em 1939, foi recentemente tirado de circulação por “racismo” — só voltou ao ar com uma introdução “histórica”, equivalente a um pedido de desculpas, em que uma “ativista” negra faz a denúncia da “injustiça social” e do “desrespeito aos negros” que teriam sido praticados 81 anos atrás pelos produtores, diretor, atores e técnicos responsáveis por essa “narrativa”.
Já mudaram o título que John Lennon deu
em 1972 a uma de suas canções (Woman Is the Nigger of the World) pela
mesma acusação — “racismo”. Fala-se em cotas na distribuição do Oscar;
“minorias” deveriam ter um número prefixado de estatuetas. Universidades
norte-americana
Uma confederação de empresas internacionais ameaça fazer boicote econômico contra os produtos agrícolas e a indústria de alimentos do Brasil caso continue o que descreve como “destruição da Amazônia”. O presidente da França não gosta do agronegócio brasileiro — nem o rei da Noruega, o Papa Francisco, o Comitê de Diversidade do Conselho da Europa e nove entre dez intelectuais atualmente vivos.
Tendem a dar mais atenção às ideias “corretas” os que menos precisam trabalhar para viver
Tudo bem — mas o futuro vai ser mesmo como essa gente está querendo, ou dizendo que quer? Isso aqui não é uma aula de sociologia; é só um artigo de revista. Em todo caso, a prudência e o bom senso recomendam que se pense um pouco mais nas realidades antes de chamar o padre para dar a extrema-unção ao mundo como ele é hoje. É provável que a resposta mais aproximada a essa pergunta seja a seguinte: depende. O Novo Testamento da Virtude Política deve gerar mais efeitos concretos nos setores da sociedade mais sensíveis à crença de que a vida possa realmente ficar melhor desse jeito; onde essa fé não existir, ou for apenas morna, o essencial não muda. Os efeitos vão variar, muito possivelmente, de acordo com as classes sociais — quanto mais pobre, ou menos rica, for a classe, menos importância vai se dar à ideia de que um pai pode ser mulher, ou que se deva derrubar as estátuas de Cristóvão Colombo, mesmo porque a maioria nem sabe quem foi Cristóvão Colombo. Da mesma forma, tendem a dar mais atenção às ideias “corretas” os que menos precisam trabalhar para viver; os que mais trabalham, sobretudo nas ocupações mais modestas, pesadas e mal pagas, devem ser os que menos tempo vão dedicar à igualdade de direitos entre animais e seres humanos, ao desarmamento da polícia ou ao aquecimento da calota polar.
Interesses econômicos de ordem prática, ligados ao próximo balanço a ser apresentado aos acionistas, também precisam ser levados em consideração. Empresas de origem francesa como a Renault, a Saint-Gobain ou a Danone, por exemplo, devem continuar empenhadas na defesa de suas posições no mercado brasileiro de automóveis, de vidros e de laticínios; não está claro quanto estão dispostas a concordar com o presidente Emmanuel Macron nos seus discursos de boicote ao Brasil.
Ainda quanto ao Brasil, sempre é bom lembrar que nunca houve tanta
pressão contra o agronegócio — e nunca o agronegócio brasileiro foi tão
forte como é hoje. Pelo barulho que se faz, o Brasil deveria estar de
volta à “pequena propriedade” rural, ao carro de boi e à importação de
alimentos. Pela realidade que se pode observar, o país tornou-se o maior
ou um dos maiores produtores de alimentos do mundo; mais de metade da
safra do ano que vem já está vendida, antes mesmo de ser plantada. Da
mesma forma, é melhor esperar um pouco antes de marcar uma data para o
fim do capitalismo nos Estados Unidos — ou no Japão, na Europa e no
resto do mundo. Alguém se lembra do movimento Occupy Wall Street, que ia
acabar com a bolsa de valores e os bancos norte-americano
Há valores diferentes, e muito, conforme o lugar do mundo onde você está. É duvidoso que a China, por exemplo, com o seu 1,4 bilhão de habitantes, esteja interessada nas queixas, exigências e necessidades da etnia negra, ou de qualquer outra. E a Índia? Seria um país negro? Ou sofreria de “branquitude”? Não dá para dizer — e lá se vai mais 1,3 bilhão de cidadãos.
As “causas” defendidas nas ruas norte-americana
É gente que não acaba mais; devem saber o que estão fazendo. Os valores defendidos em Seattle não são os que se levam em conta em Xangai. O que as pessoas têm em comum, no mundo de hoje, é muito menos do que aquilo que as separa.
Em suma: quem acredita que não pode mais haver limites para nada neste mundo precisaria combinar isso com os chineses. Além dos russos, é claro.
Título e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, 7-8-2020
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