sexta-feira, 30 de outubro de 2020

REFLEXÃO...


75 anos depois... o que podemos aprender com Dietrich Bonhoeffer.

Por Carlos Caldas
 
O teólogo e pastor luterano alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi, sem exagero, uma das figuras mais notáveis da primeira metade do século passado. Sua vida parece o enredo de um filme, com passagens que desafiam a criatividade de qualquer roteirista. Viveu pouco, apenas 39 anos, pois morreu executado por enforcamento, por ordem direta do próprio Adolf Hitler, o que aconteceu, por ironia dramática impossível de ser entendida, duas semanas antes do exército estadunidense invadir Berlim. Mas afinal, o que há de tão especial em Bonhoeffer que justifique pensarmos nele como um mestre ou um guia? Esta é a pergunta que este pequenino texto pretende responder. 
 
Uma das características mais impressionantes de Bonhoeffer é sua coerência entre biografia e teologia. Ele viveu o que ensinou, e ensinou aquilo no qual sempre creu. Sua vida foi um testemunho eloquente de tudo a respeito do qual escreveu e anunciou nos textos que escreveu e nas prédicas e preleções que proferiu. Foi pastor zeloso e dedicado, e ao mesmo tempo, teólogo profundo e de densidade inegável. Uma integração notável, pois superou a dicotomia infelizmente muito presente em seu tempo, e hoje também, tanto lá (na Alemanha) como cá (no Brasil) em que há quem seja apenas um intelectual teórico, e outros que são ativistas acríticos. 
 
Outro elemento extraordinário em sua trajetória é a quantidade impressionante de paradoxos, de quase contradições, na verdade, de elementos absolutamente inesperados em sua vida. Alguém que nasceu em berço de ouro, pois era filho de uma família de classe alta, mas que sempre foi pastor de igrejas formadas em sua maioria por trabalhadores de baixa renda, na própria Alemanha, e, por breves períodos, na Espanha e na Inglaterra. Um alemão que se fez amigo de um francês, um pastor por nome Jean Lassere, em uma época de tensões muito fortes entre França e Alemanha, depois da Primeira Guerra, que produziu traumas fortes nas relações franco-germânicas, e quando já se percebiam sinais de um novo conflito militar entre os dois países. Dois outros paradoxos notáveis da vida de Bonhoeffer: o primeiro, é o fato que ele era o estereótipo perfeito do “ariano”, pois era branco, de classe alta, alemão dos quatro costados, mas, mesmo assim, participou do movimento de resistência ao nazismo. O outro: no período acadêmico 1930-1931 que passou fazendo uma espécie de estágio pós-doutoral no conhecido Union Theological Seminary em Nova York, frequentou e colaborou com a Abyssinian Baptist Church no bairro do Harlem. Este momento de sua vida é uma sequência de inesperados: um alemão luterano branco de classe alta congregando com estadunidenses batistas negros pobres. Havia muitas igrejas de brancos de classe alta em Nova York naquela época, mas Bonhoeffer optou por, de certa forma, vivenciar uma espécie de paráfrase do texto de Lucas 4.25-26: “Na verdade vos digo que muitas igrejas de brancos ricos havia em Nova York no tempo que Dietrich Bonhoeffer passou lá, mas a nenhuma delas foi ele enviado senão a uma igreja de pretos pobres no Harlem”. 
 
>> Da série "Grandes Teólogos Para Todos", conheça Bonhoeffer para Todos <<
 
Uma palavra há de ser dita quanto à teologia propriamente de Bonhoeffer. Tal como afirmado no início deste breve texto, ele era luterano, e as marcas tradicionais de uma teologia luterana “raiz” podem facilmente ser detectadas em seus escritos. Lutero é sem dúvida uma influência decisiva em seu pensamento[1]. Talvez a característica mais importante da “luteranidade” da teologia de Bonhoeffer seja o que tem sido chamado de “concentração cristológica”, isto é, o elemento cristocêntrico de seu pensamento. Jesus de Nazaré, o Messias, o Cristo, é o revelador de Deus, é aquele a quem devemos seguir – Nachfolge (discipulado) – aquele que se identifica conosco em nossas dores e sofrimentos, e nos desafia a olhar a história na perspectiva dos que estão “no lado de baixo”. Cristo na teologia de Bonhoeffer é modelo da ética, entendida não como um conjunto moralista de regras do tipo “faça” e “não faça”, mas como um assumir de responsabilidade para com o próximo e para com o mundo diante de Deus. Cristo, aquele que viveu para o próximo, é modelo para a comunidade dos seus seguidores, comunidade esta que só será igreja de verdade quando viver não para si ou para sua própria glória, mas para o próximo. 
 
O espaço diminuto reservado para este artigo não permite que se aprofunde a exposição sobre a vida ou sobre o pensamento de Bonhoeffer. O que se pretende é estimular a leitura de seus textos, pois em geral Bonhoeffer ainda não é muito conhecido no Brasil. Mas há boas notícias: a Editora Sinodal está lançando suas obras, em tradução extremamente competente do original alemão. E recentemente (outubro de 2020) organizou-se a Sociedade Bonhoeffer – Seção Brasil[2], que mesmo antes de ser oficialmente organizada, conseguiu mobilizar centenas de pessoas através das redes sociais, e tem grande potencial para disseminar o conhecimento do teólogo alemão no Brasil.
 
Enfim, muito há o que aprender com Bonhoeffer. Passados 75 anos de sua morte prematura, seu ensino continua cada vez mais atual e desafiador, com relevância notável especialmente em contextos como o brasileiro, em que se vê em muitos setores da igreja evangélica uma relação servil ao poder governamental, a despeito deste poder manifesta de modo claríssimo que usa um discurso com palavras cristãs de modo utilitarista, apenas para ganhar apoio desta parcela da população, sem que haja um compromisso verdadeiro com os valores do evangelho de Jesus Cristo. Bonhoeffer também segue sendo um mestre, um orientador espiritual, na maneira pela qual valorizou as Escrituras e vivenciou a importância de uma vivência da espiritualidade que alimente um compromisso de responsabilidade para com e no seguimento – discipulado – de Jesus no mundo.
 
Ao finalizar, parafrasearemos o que Karl Barth disse a respeito de Calvino: o que importa é que sejamos seguidores, não de Bonhoeffer, mas daquele que foi o mestre de Bonhoeffer.

Notas
1. A este respeito a obra definitiva é Bonhoeffer’s Reception of Luther, de Michael DeJonge, jovem pesquisador estadunidense de temas bonhoefferianos publicado recentemente (2017) pela prestigiosa Oxford University Press. A obra ainda não está disponível em português, mas a Sociedade Bonhoeffer – Seção Brasil tem planos de providenciar sua tradução e publicação. 

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