75 anos depois... o que podemos aprender com Dietrich Bonhoeffer.
Por Carlos Caldas
O teólogo e pastor luterano alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945)
foi, sem exagero, uma das figuras mais notáveis da primeira metade do
século passado. Sua vida parece o enredo de um filme, com passagens que
desafiam a criatividade de qualquer roteirista. Viveu pouco, apenas 39
anos, pois morreu executado por enforcamento, por ordem direta do
próprio Adolf Hitler, o que aconteceu, por ironia dramática impossível
de ser entendida, duas semanas antes do exército estadunidense invadir
Berlim. Mas afinal, o que há de tão especial em Bonhoeffer que
justifique pensarmos nele como um mestre ou um guia? Esta é a pergunta
que este pequenino texto pretende responder.
Uma das características mais impressionantes de Bonhoeffer é sua coerência entre biografia e teologia.
Ele viveu o que ensinou, e ensinou aquilo no qual sempre creu. Sua vida
foi um testemunho eloquente de tudo a respeito do qual escreveu e
anunciou nos textos que escreveu e nas prédicas e preleções que
proferiu. Foi pastor zeloso e dedicado, e ao mesmo tempo, teólogo
profundo e de densidade inegável. Uma integração notável, pois superou a
dicotomia infelizmente muito presente em seu tempo, e hoje também,
tanto lá (na Alemanha) como cá (no Brasil) em que há quem seja apenas um
intelectual teórico, e outros que são ativistas acríticos.
Outro
elemento extraordinário em sua trajetória é a quantidade impressionante
de paradoxos, de quase contradições, na verdade, de elementos
absolutamente inesperados em sua vida. Alguém que nasceu em berço de
ouro, pois era filho de uma família de classe alta, mas que sempre foi
pastor de igrejas formadas em sua maioria por trabalhadores de baixa
renda, na própria Alemanha, e, por breves períodos, na Espanha e na
Inglaterra. Um alemão que se fez amigo de um francês, um pastor por nome
Jean Lassere, em uma época de tensões muito fortes entre França e
Alemanha, depois da Primeira Guerra, que produziu traumas fortes nas
relações franco-germânicas, e quando já se percebiam sinais de um novo
conflito militar entre os dois países. Dois outros paradoxos notáveis da
vida de Bonhoeffer: o primeiro, é o fato que ele era o estereótipo
perfeito do “ariano”, pois era branco, de classe alta, alemão dos quatro
costados, mas, mesmo assim, participou do movimento de resistência ao
nazismo. O outro: no período acadêmico 1930-1931 que passou fazendo uma
espécie de estágio pós-doutoral no conhecido Union Theological Seminary
em Nova York, frequentou e colaborou com a Abyssinian Baptist Church no
bairro do Harlem. Este momento de sua vida é uma sequência de
inesperados: um alemão luterano branco de classe alta congregando com
estadunidenses batistas negros pobres. Havia muitas igrejas de brancos
de classe alta em Nova York naquela época, mas Bonhoeffer optou por, de
certa forma, vivenciar uma espécie de paráfrase do texto de Lucas
4.25-26: “Na verdade vos digo que muitas igrejas de brancos ricos havia
em Nova York no tempo que Dietrich Bonhoeffer passou lá, mas a nenhuma
delas foi ele enviado senão a uma igreja de pretos pobres no Harlem”.
Uma
palavra há de ser dita quanto à teologia propriamente de Bonhoeffer.
Tal como afirmado no início deste breve texto, ele era luterano, e as
marcas tradicionais de uma teologia luterana “raiz” podem facilmente ser
detectadas em seus escritos. Lutero é sem dúvida uma influência
decisiva em seu pensamento[1].
Talvez a característica mais importante da “luteranidade” da teologia
de Bonhoeffer seja o que tem sido chamado de “concentração
cristológica”, isto é, o elemento cristocêntrico de seu pensamento.
Jesus de Nazaré, o Messias, o Cristo, é o revelador de Deus, é aquele a
quem devemos seguir – Nachfolge (discipulado) – aquele que se
identifica conosco em nossas dores e sofrimentos, e nos desafia a olhar a
história na perspectiva dos que estão “no lado de baixo”. Cristo na
teologia de Bonhoeffer é modelo da ética, entendida não como um conjunto
moralista de regras do tipo “faça” e “não faça”, mas como um assumir de
responsabilidade para com o próximo e para com o mundo diante de Deus.
Cristo, aquele que viveu para o próximo, é modelo para a comunidade dos
seus seguidores, comunidade esta que só será igreja de verdade quando
viver não para si ou para sua própria glória, mas para o próximo.
O
espaço diminuto reservado para este artigo não permite que se aprofunde
a exposição sobre a vida ou sobre o pensamento de Bonhoeffer. O que se
pretende é estimular a leitura de seus textos, pois em geral Bonhoeffer
ainda não é muito conhecido no Brasil. Mas há boas notícias: a Editora
Sinodal está lançando suas obras, em tradução extremamente competente do
original alemão. E recentemente (outubro de 2020) organizou-se a
Sociedade Bonhoeffer – Seção Brasil[2],
que mesmo antes de ser oficialmente organizada, conseguiu mobilizar
centenas de pessoas através das redes sociais, e tem grande potencial
para disseminar o conhecimento do teólogo alemão no Brasil.
Enfim,
muito há o que aprender com Bonhoeffer. Passados 75 anos de sua morte
prematura, seu ensino continua cada vez mais atual e desafiador, com
relevância notável especialmente em contextos como o brasileiro, em que
se vê em muitos setores da igreja evangélica uma relação servil ao poder
governamental, a despeito deste poder manifesta de modo claríssimo que
usa um discurso com palavras cristãs de modo utilitarista, apenas para
ganhar apoio desta parcela da população, sem que haja um compromisso
verdadeiro com os valores do evangelho de Jesus Cristo. Bonhoeffer
também segue sendo um mestre, um orientador espiritual, na maneira pela
qual valorizou as Escrituras e vivenciou a importância de uma vivência
da espiritualidade que alimente um compromisso de responsabilidade para
com e no seguimento – discipulado – de Jesus no mundo.
Ao
finalizar, parafrasearemos o que Karl Barth disse a respeito de
Calvino: o que importa é que sejamos seguidores, não de Bonhoeffer, mas
daquele que foi o mestre de Bonhoeffer.
Notas
Notas
1. A este respeito a obra definitiva é Bonhoeffer’s Reception of Luther,
de Michael DeJonge, jovem pesquisador estadunidense de temas
bonhoefferianos publicado recentemente (2017) pela prestigiosa Oxford
University Press. A obra ainda não está disponível em português, mas a
Sociedade Bonhoeffer – Seção Brasil tem planos de providenciar sua
tradução e publicação.
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