ISABELA
Narrativa ficcional para você neta querida, cujo nome tomei por empréstimo, futura arquiteta, cabeça pensante:
ISABELA,
aos
12 anos sonhava com uma cidade de cristal e de luzes, seus habitantes
sempre belos, vestiriam roupas coloridas, falariam com delicadeza e
seriam letrados. Leriam a Bíblia com assiduidade. As moças casariam
depois dos 18 anos, teriam poucos filhos e os criariam com doçura, como
faziam os seus pais.
Uma
cidade multicolorida, casas em cores fortes, simples. Não havia ruas,
só o rio majestoso, onde toda a cidade pairava e dele dependia.
Automóveis, aviões, nem pensar. As bicicletas reinavam absolutas.
Palafitas de luxo e de arte. Veneza brasileira da ilha do Marajó: AFUÁ,
município de área superior a 8.000 km2, com mais de 39 mil habitantes,
vizinha de Macapá, Santana, Mazagão, Gurupá, Anajás, Breves. Ali,
Isabela morava e crescia pretendendo cores intensas, luzes
significativas.
Era feliz banhando-se no rio, correndo nas palafitas, usando canoas e rabetas.
Ouvira
falar em edifícios, teatro, cinemas, shoppings, carros de luxo,
mulheres elegantes e requintadas. Queria, algo que seu interior gritava,
contudo, sem saber definir.
Talvez,
um namorado alto, bonito, bondoso como seu pai, formado, com quem
casasse e que a levasse a viajar pelo mundo afora, fazia parte dos
desejos da bela e graciosa menina.
Nesses
sonhos e fantasias dizia falar com os peixes, que alimentava num
recanto do rio. Pequenos e rápidos, nervosos, movimentavam-se em
círculos, disputando as porções de ração que Isabela lhes atirava.
Sua
cadela Mel era-lhe companhia constante. Sua mãe – firme - chamava-a à
realidade, mas, ela encontrava sintonia com o pai, que lhe era
semelhante.
Um certo dia,
no mesmo recanto onde alimentava peixes dourados, Mel, a cadelinha,
percebera uma figura diferente, não costumeira. Pôs-se em alerta e
grunhiu. Isabela levantou os olhos, percebendo à sua frente, no meio do
rio, um peixe grande, rosado, de olhos miúdos, com um “bico” alongado e
uma “grande quantidade de dentes pequenos e cônicos”.
- Um boto - sussurrou.
Olhar
insistentes, perturbador. Lembrou-se das amigas que contavam sobre
botos encantadores: “O boto cor-de-rosa, inteligente e semelhante ao
golfinho, se transforma num jovem belo e elegante nas noites de lua
cheia”. Dizem elas, que o “boto se transforma em homem belo, seduz
mulheres para engravidá-las, depois as abandona, retornando para o rio
em sua forma animal”.
- Vem Mel. Vamos.
Isabela,
embora destemida e de pensamento lógico, sentiu-se constrangida, um
arrepio percorreu o seu corpo de criança. Afastando-se do rio, com
rapidez, retornou para sua casa:
Bela morada,
pintada de rosa forte, com destaques amarelos e azuis, nela, em sua
parte mais alta, entalhe de um grande peixe, coisa de seu amado pai.
- Seria um boto? - Indagou-se.
Contou o fato à sua mãe, que, sorrindo, lhe recomendou não voltar àquele local sem companhia.
Isabela
não se intimidou, nem levou a sério aquelas estórias. Curiosa,
justificando-se com o argumentando de que deveria alimentar os
peixinhos, decidiu retornar ao rio, no dia seguinte.
***
Manhã
clara e brilhante, bicicletas e barcos traziam as pessoas para o centro
da Cidade. As palafitas estavam repletas. As moradas de cores
“translúcidas” eram palcos de alegria. O calor abrasador levava a
criançada a banhar-se nas águas da Baia do Vieira Grande, no centro do
município,
Isabela, a caminho do encontro com seus peixes, sem temer as veredas desertas, cantarolava:
-
“Sou dono das asas do sonho...Singrando meu rio...Meu canto ecoa... E
me faz sonhar... O mundo amazoniar...Caboclo...Menino faceiro...”
***
Os anos veem Isabela crescer, ficar moça, 15 anos. O desejo de ir para a capital permanecia tornando-a ansiosa, impaciente.
Seu
pai, logo ele, tão companheiro, lhe retardava a realização desse
objetivo. Em discussão, o responsabilizou por estar ali, num dia e
noite sem futuro.
- Por que não se pode ir para a Capital?
- Por que ficar limitada à essas ruas, a esse rio, pescando, plantando, falando sem parar?
Criar filhos, apenas?
***
Aos 18, após sérios atritos com o pai, conseguira, com o patrocínio
da mãe, mudar-se para Belém, onde ficaria com parentes. Faria vestibular para arquitetura na almejada Capital.
Na
Cidade Morena, Chamava sua atenção as ruas largas, as mangueiras em sua
extensão, o piso firme sem água sob os pés - embora em tudo estivesse
presente as águas da baía do Guajará - os edifícios sóbrios, as largas
calçadas, o rebuliço, o ir e vir incessante. Tudo aquilo satisfazia seu
espírito irrequieto.
Os
dias passavam céleres e cheios de afazeres e de estudos. Denotava grande
talento para o desenho arquitetônico. Sequer lembrava-se de sua terra
natal. Seu pai reclamava presença. O tempo exíguo, a viagem longa, os
meios precários, faziam-na adiar a visita aos seus.
Depois,
a Cidade, seus encantos, o fascínio do convívio com os colegas, os
passeios, as festas. Não havia espaços ou tempo para nada mais. A ilusão
das luzes, muito própria na juventude, alcançara Isabela em cheio, com
força que a subjugava.
***
Fim
do curso, a colação de grau, os pais presentes, orgulhosos e ansiosos
para abraçar a inteligente filha, aguardando seu retorno para Afuá. A
escola local a esperava para compor seu quadro de professores. A
prefeitura também lhe ofertava emprego.
Isabela não atendeu aos reclamos dos pais. Permaneceria em Belém à espera da ocupação prometida por colega que a cortejava:
***
Um encontro marcado no Ver o Rio. Belo lugar de convívio. Estava ansiosa. O local deserto a sobressaltou. O colega não chegava.
Após
desculpar-se pelo atraso, seu pretendente aproximara-se de Isabela de
modo ousado, que ofereceu resistência. Insistindo ele tornou-se
agressivo, segurando-a pelos braços. Iniciava perda de controle. Isabela
debatia-se. Tentou um grito, abafado com aspereza. .Lembrou-se do pai. O
que fazer? Não se deixaria dominar, haveria de lutar e... lutou.
Vindo do rio, mesmo no embate, notou um rapaz, alto, magro, de estranhas vestes de cor rosa.
Rápido,
o atrevido foi alcançado por um joelho do seu salvador, depois enlaçado
pelo pescoço e lançado ao chão. Sem reação, assustado com tanta força, o
abusado colega fugiu.
O
rapaz, alto, magro, de estranhas vestes de cor rosa, sorriu para ela.
Nada disse. Da mesma forma que viera se afastou em direção ao rio.
Um
acontecimento inusitado, excêntrico, sem explicação, que a fez meditar
insone na noite do triste ocorrido. Também a fez voltar à AFUÀ.
Foi
visitar seus peixinhos e lá estava o grande peixe rosa, de olhos
miúdos, com um “bico” alongado e uma “grande quantidade de dentes
pequenos e cônicos”. Agora mais perto. Parecia sorrir-lhe e
cumprimenta-la. Isabela acenou para ele.
- Oi.
- Obrigada.
Retornando
para Belém, recebeu convite para trabalhar em Brasília, onde adquiriu
experiência e expôs seu talento e se fez destacar, auxiliando famoso
arquiteto. Demonstrou técnica de rara beleza provincial, com destaque
nas cores fortes e nas linhas sóbrias.
Ouvira
falar em Salvador, Bahia - terra de gente de pele morena, mulata, de
costumes e atitudes afro, de casarões coloniais. Uma arquitetura muito
atraente...
Ao chegar à
Boa Terra, como chamam a capital baiana, restou encantada: o mar, as
ladeiras, as duas cidades, a alta e a baixa, o sotaque, as comidas, as
belas mulatas, os homens negros altos e fortes, o casario nas ruas
estreitas.
Em Alagados,
sem a beleza de Afuá, de um cinza denotando carências, viu palafitas e
casebres de madeira, o pântano, o mar em tudo. Não havia a alegria das
cores das casas de sua Terra. Saudosa Lembrou de seus pais, do seu rio,
dos seus peixinhos e do boto rosa.
Os
reflexos de intenso caráter social ferem os espíritos sensíveis.
.Pobreza, fome e lama. Ao lado dessa realidade chocante observou o
espirito sobrepujar-se em artistas plásticos, em poetas e em cantores,
usando da arte e do talento que os distinguia para gritar suas histórias
aos ouvidos moucos do mundo.
Retirou-se
triste para depois explodir em êxtase com o prolongamento encantador da
Cidade, dividida em duas. Uma de sorrisos, outra de choro convulso.
Lembrou-se de ter lido “Os Dois Brasis”, e “Casa-Grande & Senzala”,
ao retratarem as situações presenciadas.
Encantou-se
com as igrejas e com o traçado singular - não planejado - das ruas.
Assombrou-se com a “loucura” do carnaval baiano. Procurou refúgio em
bairro distante, local de veraneio, de nome pomposo, Stella Maris, onde,
por muito gosto, permaneceu.
Seu
trabalho fora rapidamente reconhecido. Suas finanças tornaram-se
polpudas possibilitando-lhe viagens gratificantes em agrado ao seu espírito nobre. Conheceu Paris, deslumbrou-lhe a Torre Eiffel, o Arco do
Triunfo, o Museu do Louvre, a Catedral de Notre Dame, o Palácio de
Versalhes, o Centro George Pompidou, o Jardim de Luxemburgo....
Seu
encantamento maior e desafiador, no entanto, foi Dubai de arquitetura
ultramoderna: o Burj Khalifa, 828 m de altura, o mais famoso arranha-céu
em Dubai e o maior do Planeta; o The World um conjunto de 300 ilhas
artificiais; a casa do Sheikh Saeed Al Maktoum, exemplo de traçado
árabe do século XIX.
Isabela sentia-se fora do mundo ao recordar suas origens de menina pobre, natural de local desconhecido e ausente dos mapas.
Esse
sentimento calcava em seu âmago impressão de irrealidade ou de uma
realidade onírica que lhe gritava aos ouvidos para acordar, despertar,
sair da fantasia.
Não
lhe fazia justiça essa definição porque na prancheta encontrava sua
realidade de artista e de mestra respeitável em arquitetura.
Atraída, visitava Alagados com assiduidade, onde via a projeção lúgubre de sua Afuá.
***
Aos
29 anos conheceu um sociólogo espanhol, de personalidade moldável, bom e
simples. À esse tempo, famosa por sua vistosa arquitetura de cores
fortes, retilínea, simples, inspirando aconchego e paz, marcava
posições. O Brasil conhecia uma profissional futurista, sem perder o
toque e os retoques do provinciano. O misto do técnico e do estético
singular tornavam-na ímpar. AFUÀ permanecia em sua alma e lhe dava
contributo, sem que dele se apercebesse..
***
O
passar dos anos. A maturidade, ao dar-lhe maior consciência,
estabeleceu em seu íntimo conflito que a fazia debater-se entre ser e
não ser. Assim, a dignidade, a necessidade de estabelecer parâmetros, o
ter, o alcançado, e o querer ser o que realmente se é. Verdadeiro
pluriverso de um Antero de Quental, poeta do século XIX, sobre quem
recordou o livro Sonetos, revelando pessoa às voltas com questões
humanas, filosóficas e metafísicas – Deus -, em poesia angustiada e
pessimista..
Contudo o que fazer se tinha em si as duas realidades, os dois argumentos, as duas visões, os dois sentires?
Esse
drama a inquietava. Precisava sair de si, deixar-se, espantar sua
intelectualidade para ver-se outra vez menina sonhadora e ingênua.
Queria alimentar peixinhos, levantar para ver o peixe rosa.
***
Precisava retornar, seu temperamento sanguíneo lhe impunha decisão drástica:
Não
tinha filhos e o marido “accederia”. Ansiava – outra faceta de sua
personalidade - por valores reais, humanísticos, cristãos. Não faria
igual a Pedro.
- Precisamos retornar à Ilha – diz ao marido.
Seis
meses após, agora concordes, Isabela e Lorenzo, deixavam São Paulo com
destino a Belém do Pará. Depois percorrerão 259 km de táxi aéreo ou,
indo para Macapá, enfrentarão, em lancha, aproximados 80 Km até a Cidade
das Palafitas.
Ansiava
voltar a banhar-se nos rios que fazem a Veneza Marajoara, percorrer
caminhos descalça ou de bicicleta, admirar os encantos e viver a vida
pura de sua Cidade, ouvir seu Pastor, louvar a Deus, enternecer-se com
Sua criação.
A
consciência a alfinetava por ter deixado seu povo. Passou a acreditar
estar vivendo para si, apenas, com tantos braços pedindo alento.
Sentia-se infiel.
De
coração doce e alma pura, Isabela queria redimir-se. Jamais lhe passou
pela mente que era diferente, de mundo complexo, concorrente, de
posições disputadas, sem lugar para fracos ou emocionais. O seu lugar
fora conquistado. Estava no topo da montanha. Mas, transfigurada,
conforme sentia, deveria descer, afastar-se de ídolos.. Eis o drama
vivencial.
***
Lorenzo,
católico, sentia-se aniquilado. Entendeu que precisava de um tempo para
refletir e sopesar os fatos, era preciso partir apesar do amor dedicado
à Isabela. Dor imensa. Lágrimas, juras, explicações..
- Não é possível abandonar todo o construído, negar a si mesmo ou à parte de si.
- Não foi isso o que vi em você, quando a conheci.
- Não o enganei. Estou em aflição sincera, sofrendo por você, amado marido.
Lorenzo retorna à Espanha e lá permanece.
Mulher
de objetivos, religiosidade ferrenha, Isabela mergulha na
nova-antiga-vida, conformando-se em face da fé que alimentava sua
posição de cristã convicta..
***
A
igreja, estudos bíblicos, sermões - os seus -, o expediente na
Prefeitura, a escola, professora e diretora, seus alunos, o rio, os
peixinhos, o boto, as casas coloridas, a ausência de Lorenzo, o retorno
prometido. Assim quisera, assim vivia Isabela, assim esperava o encontro
consigo própria.
***
...
Lorenzo voltara? ...Suas roupas, a gravata de tom róseo, sua alegria
envolvente...O boto...aqueles olhos miúdos que piscavam, seus
chamados...
Um sonho fantástico ou uma fantástica realidade?
Isabela acordou cedo, logo foi ao rio, onde a lhe esperar estaria - quem sabe - o inesquecível Lorenzo.
Viveriam felizes para sempre...no forte pensamento de Isabela...
SSA, 15.07.2021
CUBA LEVANTA E GRITA POR LIBERDADE.
Geraldo Leony Machado
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