O Natal em um lugar incerto
Jesus não nasceu isolado da hospitalidade, mas, pelo
contrário, ele foi acolhido em uma família
Por Lidice Meyer
Quando paramos para pensar na vida de Maria, algo que não se
pode dizer é que foi monótona! Desde o anúncio de sua gravidez por um anjo, à
desconfiança de seu noivo José e de, provavelmente, seus familiares, a viagem
para a casa de Isabel para esconder-se dos olhares curiosos, o retorno para
Nazaré e o casamento com José. Tudo havia acontecido em apenas poucos meses.
Agora, com sua gravidez em estado avançado, Maria recebe mais uma novidade: uma
viagem às pressas.
Nazaré, a cidade natal de Maria, e todo o seu entorno estava
sob o domínio do imperador romano César Augusto. O evangelista Lucas relata que
houve uma convocação para recenseamento durante a gravidez de Maria. E José,
sendo descendente de Davi precisaria ir com sua família até a cidade de Belém
para se cadastrar. Embora a tradição e o senso comum coloquem esta viagem nos
últimos dias da gravidez de Maria, não há nada no texto bíblico que indique
isto. Da publicação do édito imperial à viagem do casal não sabemos quanto
tempo terá decorrido, mas com certeza o deslocamento para longe dos olhares
curiosos da família de Maria deve ter sido providencial. Ao destacar que Maria
“estava grávida” (Lc 2.5), o evangelista pode indicar o motivo velado de uma
viagem, que a nossos olhos parece até arriscada demais para mãe e bebê.
Lucas também não dá detalhes da viagem e nem afirma quanto
tempo depois da chegada à Belém os dias da gravidez de Maria chegaram ao fim. O
texto simplesmente diz: “E, quando eles ali se encontravam, completaram-se os
dias de ela dar à luz” (Lc 2.6). Podemos perceber, então, que a imagem
tradicional de uma Maria com uma gravidez avançadíssima montada num burrico a
ser conduzido pela mão de José é uma extrapolação poética da nossa imaginação
perpetuada há séculos. Afinal, o texto bíblico não nos dá estes detalhes.
Da mesma forma, o relato que se segue também merece um olhar
mais atento. Diz o texto: “E teve o seu filho primogênito, que envolveu em
panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria”
(Lc 2.7). Deste breve texto, muito se escreveu, muitos hinos foram compostos e
muitos quadros foram pintados. Sempre o destaque foi a pobreza e simplicidade
do nascimento daquele que era o Rei dos Reis e a insensibilidade dos que lhe
negaram um local mais digno. Mas será esta a realidade deste texto?
A hospitalidade sempre foi algo extremamente importante para
o povo do antigo Médio Oriente. No Antigo Testamento são diversos os relatos de
hospitalidade, vindo de pessoas de posses como Abraão (Gênesis 18) ou de
pessoas muito pobres como a viúva de Sarepta (1 Reis 17). A hospitalidade
independia das condições financeiras. Como então entender que numa situação de
recenseamento fosse negado um lugar de pouso a uma jovem grávida? Isto iria
contra todos os valores comunitários judaicos!
Nas pequenas aldeias da Judeia não existiam pousadas ou
hotéis como hoje estamos acostumados. O único lugar onde existiam locais
semelhantes a pousadas era ao longo das estradas romanas oficiais. No caso de
um recenseamento como o relatado por Lucas, os viajantes seriam acolhidos nas
casas de seus familiares e amigos de familiares. É claro que já podemos
perceber que algumas casas ficariam superlotadas, mas pela prática judaica, não
se negaria a hospedagem, mesmo que para isso alguém tivesse de dar a sua
própria cama ao hóspede.
O fato de José ter de se recensear em Belém indica que sua
família era originária deste local. Logo, quando José e Maria chegaram a
cidade, com certeza foram acolhidos pela família de José ou por amigos
chegados.
Então, como explicar o fato do texto dizer “não haver lugar
para eles na hospedaria”? A explicação reside em uma falha de tradução para o
português. A palavra traduzida como hospedaria é em grego katalyma (καταλύμα)
cuja tradução correta seria uma sala ou quarto de hóspedes. Curiosamente o
texto da Bíblia em português traduz katayma como sala em Lucas 22.11 e como casa
em Mateus 2.11. Nas casas, construídas em dois pisos, existia um cômodo no piso
superior comumente reservado para hóspedes ou para alguma reunião especial. O
texto de Marcos 14.14-15 é bem elucidativo sobre a sala ou quarto de hóspedes
(katalyma) onde ocorreu a última Páscoa de Jesus: o cenáculo.
Se a intenção do evangelista era narrar sobre uma hospedaria
ou estalagem, ele usaria a palavra pandoxion (πανδοχεῖον), termo que pode ser
visto na parábola do bom samaritano, quando este, ao encontrar um homem agredido
por salteadores, “levou-o para uma estalagem (pandoxion) e cuidou dele” (Lc
10.34).
Outra percepção errada vinda da tradução para o português
deste pequeno versículo é a ideia do menino Jesus nascendo em um local cercado
por animais e dormindo em uma manjedoura usada para alimentação da criação. O
texto grego, traduzido para o português traz a palavra phátnē (φάτνῃ) que foi
tradicionalmente traduzida como manjedoura. Mas esta é apenas uma das possíveis
traduções deste termo. Segundo a concordância Strong, a palavra phatné também
pode significar tanto uma pequena cama para um bebê como um estábulo. Logo, a
tradução de Lucas 2.7 poderia bem ser: “e teve o seu filho primogênito, que
envolveu em panos e recostou numa pequena cama, por não haver lugar para eles
no quarto de hóspedes” ou “e teve o seu filho primogênito, que envolveu em
panos e recostou num estábulo, por não haver lugar para eles no quarto de
hóspedes”.
Os parentes de José muito provavelmente estavam recebendo
vários outros familiares vindos de outras cidades e a casa deveria estar cheia,
inclusive o quarto de hóspedes. Isso não impede que José e Maria estivessem
alojados junto com todo os demais familiares. Mas, quando as dores do parto
começaram, dificilmente Maria estaria à vontade para dar à luz cercada de tanta
gente. Isso explicaria o fato de ter se deslocado, por conselho dos anfitriões
ou mesmo por escolha própria, para um local mais reservado. Talvez para isto
tenha ido à parte adjacente à casa usada normalmente para abrigar animais nas
estações chuvosas. Isto explicaria a presença de uma manjedoura na cena do
nascimento de Jesus, ou mesmo a possibilidade da tradução de phatné como
estábulo. Apesar do improviso, Maria teria conseguido um pouco mais de
privacidade para o parto.
Como o local só era usado para a guarda de animais no
inverno ou no período das chuvas, dificilmente os animais teriam presenciado o
nascimento de Jesus. Isto porque um recenseamento nunca seria convocado no
inverno ou no período das chuvas!
Mas podemos perceber que a tradição moldou as traduções do
texto, unindo o fato da visita dos pastores à presença de animais (ovelhas e
outros) junto ao local de nascimento de Jesus, conformando o texto bíblico à
imagem tão conhecida do presépio. Isso não nos impede de gostar dos presépios.
Eles vão continuar a contar a bela história do Natal em sua simplicidade e
humildade.
Ao mesmo tempo, a tradução equivocada acabou por incutir uma
ideia de falta de hospitalidade e de compaixão relacionada aos habitantes da
aldeia de Belém. É como se o povo da Judeia já rejeitasse Jesus antes mesmo de
seu nascimento, o que não é verdade.
Recolocar o texto bíblico em sua origem cultural não deve
desconstruir nossas ideias sobre o nascimento de Jesus, mas sim ampliar nossa
visão sobre esse acontecimento único e maravilhoso. Jesus não nasceu isolado da
hospitalidade, mas pelo contrário ele foi acolhido em uma família, a família de
José, a família de Davi.
A cada ano, com a celebração do Natal, é hora de também
refletirmos sobre como temos acolhido Jesus em nossa casa e em nossa vida. A
sagrada família transcende os limites da maternidade e paternidade de Maria e
José para alcançar a todo aquele que recebe Jesus em seu coração. Somos todos
parte da grande família de Jesus.
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