“Alguém
tem de dizer aos negros a verdade”: Olavo de Carvalho sobre a contribuição
negro-africana à cultura ocidental.
“Someone has to say the truth to blacks”: Olavo de
Carvalho on black-african contribution to western culture”
Fernando Danner
fernando.danner@gmail.com
Universidade
Federal de Rondônia, Brasil
Griot:
Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 3, pp. 351-374, 2021.
Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia
Esta
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Resumo:
No
artigo, estudaremos o pensamento filosófico de Olavo de Carvalho, especialmente
no que concerne à sua posição frente ao movimento negro brasileiro e
norte-americano em sua luta por reparação pelo colonialismo-escravismo-racismo.
Argumentaremos que sua recusa de qualquer práxis reparatória para com as
minorias político-culturais e sua posição de um não-lugar das tradições
negro-africanas no contexto da cultura/civilização ocidental, incluindo-se sua
defesa da inferioridade da cultura/civilização negro-africana quando comparada
com a tradição judaico-cristã, greco-latina e medieval-renascentista, são
fundadas por uma metafísica dualista com caráter altamente antimoderno e
antimodernizante, em que a dinâmica específica que perpassa o “drama humano
frente ao universo e à eternidade” se caracteriza (a) pela luta entre
necessidade natural (Behemot) e consciência individual (Leviatã), a qual só
pode ser vencida pela correlação de graça divina por Jesus Cristo e
interiorização e intuição pessoais, diretas, imediatas e imediadas por parte de
cada indivíduo para com Deus; (b) pela recusa da política, da história e da
ação intersubjetiva, afirmadas como materialismo e, nesse sentido, como lugar
das ideologias políticas totalitárias (do qual a modernidade iluminista é o
maior exemplo); e, finalmente, (c) pela centralidade do espiritualismo, da
relação íntima e direta entre Deus e homem, mediada pela Revelação, o que
aponta para a inexistência, no pensamento de Olavo de Carvalho, de parâmetros
objetivos de discussão, de interação e de justificação racionais – daí,
inclusive, sua deslegitimação da ciência, da política, da história e da ação
institucional macroestrutural, e seu apelo ao individualismo metodológico
intuicionista-espiritualista.
Palavras-chave:
Escravidão,
Povos negros, Reparação, Civilização ocidental, Periferização.
Abstract:
:
In the paper, we will study Olavo de Carvalho’s
thought, focusing on his position regarding Brazilian and American Black
movement in its struggle for reparation in terms of colonialism-slavery-racism.
We will argue that his refusal of any reparatory praxis to political-cultural
minorities and his position of a non-place for Black-African traditions in the
context of Western culture/civilization, as with respect to his defense of the
inferiority of Black-African culture-civilization when compared to
Jewish-Christian, Greek-Latin and Medieval-Renaissance tradition, is pervaded
by a dualist metaphysics with a highly anti-modern and anti-modernizing
character, in which the dynamic of streamlining of “human drama about universe
and eternity” is constituted (a) by the struggle between natural necessity
(Behemont) and individual consciousness (Leviathan), that can only be won by
the correlation of divine grace given by Jesus Christ and personal direct and
immediate interiorization and intuition by each individual with God; (b) by the
refusal of politics, history and intersubjective action as basically
materialism and, in this sense, as the sphere of totalitarian political
ideologies (to which Enlightnment modernity is the biggest example); and,
finally, (d) by the centrality of spiritualism, of intimate and direct relation
between God and man, mediated by Revelation, which points to the non-existence,
in the Olavo de Carvalho’ thought, of objective parameters to rational
discussion, interaction and justification – that is the reason of his
delegitimation of science, politics, history and macro-structural institutional
action, and his appeal to methodological, intuitionist and spiritualist
individualism.
Keywords:
Slavery, Black Peoples, Reparation, Western
Civilization, Pheripheralization.
Considerações
iniciais
No
artigo, reconstruiremos a posição de Olavo de Carvalho relativamente à
reivindicação, pelo movimento negro brasileiro e americano, de reparação
prático-político-institucional pelo colonialismo-escravismo-racismo contra os
povos negros, de modo a salientar suas ideias estruturantes, a saber: (a)
negros não têm direito a reparação alguma e ela representa uma incongruência e
uma seletividade, já que, antes de seres escravizados, os próprios negros –
quando foram faraós no Egito – escravizaram judeus e árabes; (b) a culpa pela
escravização dos negros é dos próprios negros, por causa de sua cultura
decadente, desestruturada e degenerada, cujo maior exemplo são suas tradições
religiosas mágico-animistas africanas; (c) negros não deram nenhuma
contribuição cultural à civilização ocidental, mas apenas uma contribuição
material, sob a forma do trabalho escravo, não tendo por que reivindicar
qualquer tratamento especial por parte do Ocidente branco; e, finalmente, (d) a
cultura negra é inferior à cultura ocidental, à tradição judaico-cristã, à
ontoteologia greco-latina-medieval e ao Renascimento, não podendo sequer ser
equiparada com esta, o que mais uma vez mostra que os negros mais ganharam que
perderam com a colonização.
Essa
posição, como argumentaremos ao longo do texto, é caudatária de uma metafísica
da existência humana que se constitui e se desenvolve a partir de alguns
princípios estruturais, a saber: (a) o drama humano no universo e na eternidade
é dinamizado em termos do combate entre a necessidade natural ou materialismo,
como pode ser exemplificado através da escatologia judaico-cristã por meio da
figura de Behemot, e o indivíduo de carne e osso (ou a consciência angustiada,
influenciada pelos instintos, desejosa da verdade), tal como podemos perceber mais
uma vez pela escatologia judaico-cristã em termos da figura de Leviatã; (b) não
existe a sociedade, não existem condições intersubjetivas com caráter
macroestrutural (ou, se existem, não dão a palavra final em termos de
determinação dos processos de socialização e de subjetivação), mas apenas o
indivíduo jogado no âmbito da materialidade e dependente da graça divina para
efetivamente sobreviver e se salvar dessa perspectiva totalizante própria ao
materialismo como necessidade natural; (c) a política e a história são o espaço
da materialidade, nela (materialidade) não existe Deus e não pode haver
salvação, de modo que a consequência da centralidade da história e da política
– que a modernidade iluminista, materialista, relativista e ateia radicalizou –
é a consolidação de ideologias políticas totalitárias demarcadas por violência
estrutural; (d) o acesso à verdade somente pode ser feito em termos de uma
relação verticalizada do homem para Deus e de Deus para o homem, por meio da
interiorização pessoal, imediata, direta, imediada e espiritualista, em que
cada indivíduo, adentrando em sua alma, alcança a iluminação divina – aqui, a
política, a história e a ação intersubjetiva humana não permitem o acesso à
verdade, uma vez que, por serem basicamente materialistas, são e geram apenas
ideologias políticas totalitárias; e, assim, como consequência, (e) é
necessária uma perspectiva antimoderna e antimodernizante que nega a história,
a política e a ação humana intersubjetiva em favor da revelação judaico-cristã,
da graça divina e do espiritualismo intuicionista. Assim, para Olavo de
Carvalho, posições histórico-políticas, discussão e justificação racionais,
estruturas sociais e ação intersubjetiva são apenas ideologia, não conseguem
nos dar uma base objetiva de legitimação e um fundamento normativo
intersubjetivamente vinculante, da mesma forma como representam a mais nefasta
consequência da degeneração moderna como perspectiva pós-metafísica ou
pós-tradicional. E isso significará, para ele, a necessidade da retomada da
ontoteologia clássica, só que interpretada de modo renovado como espiritualismo
privatista-personalista e intuicionismo anticientífico, antipolítico e
antiparadigmático, ou seja, como postura antimoderna e antimodernizante,
altamente individualista e antissistêmica.
“Alguém
tem de dizer aos negros a verdade”: Olavo de Carvalho, o movimento negro e o
(não)lugar da cultura negro-africana na civilização ocidental
Um dos
eixos estruturantes da crítica realizada por Olavo de Carvalho ao movimento
negro brasileiro e norte-americano consiste exatamente na recusa de que os
povos negros tenham produzido e, por consequência, legado uma contribuição
cultural substantiva à civilização ocidental. Com efeito, para o referido
autor, negros, por meio do trabalho escravo e, aqui, como objetos/animais
racializados, efetivamente produziram – e lhes foi usurpada – enorme riqueza
material que possibilitou o enriquecimento de elites coloniais e das metrópoles
às quais estavam direcionadas, mas é somente isso: produziram apenas riqueza
material, não foram artífices de uma civilização. Nenhuma contribuição cultural
e nenhum progresso civilizacional dignos de nota vieram dos povos negros, foram
gerados por eles à humanidade e, portanto, não apenas não há lugar central para
a cultura africana no que se refere à formação e ao desenvolvimento da
cultura/civilização ocidental, como também, por causa disso, não se gera
qualquer práxis reparatória frente à instrumentalização, à menorização e ao
etnocídio-genocídio dos povos negros (e indígenas) em termos exatamente da
escravidão colonial. Ele nos diz:
A
contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada através do trabalho escravo,
que construiu a riqueza da colônia e do império: foi uma contribuição material,
não cultural. E os elementos de cultura africana que se introduziram na nossa
mentalidade, se são um fato histórico e antropológico inegável, têm um valor,
para dizer o mínimo, duvidoso. Pois, se os negros africanos são de fato, como
proclamam, descendentes da classe dominante egípcia, então, ao ter seus
primeiros contatos com o dominador muçulmano ou europeu, já eram um povo
decadente, enfraquecido, reduzido das antigas glórias imperiais à dispersão
tribal e à impotência de uma vida diminuída: que grande contribuição cultural
podiam dar aos dominadores muçulmanos ou cristãos que então iam alcançando o
máximo esplendor de suas respectivas civilizações? (CARVALHO, 2018, p. 85; os
destaques são nossos).
A
questão de fundo, específica à passagem acima, diz respeito à legitimidade ou à
ilegitimidade da reparação aos negros pela escravidão colonial (e, inclusive,
pela atualidade do racismo estrutural), mas, como se pode perceber, ela carrega
elementos mais amplos que configuram uma perspectiva normativa, uma determinada
visão antropológica do negro genérico, da cultura negra em sentido amplo, que
merece ser salientada porque, na verdade, é a partir dela que efetivamente
Olavo de Carvalho pode concluir seja pela completa incongruência e
ilegitimidade da práxis reparatória acerca do colonialismo-racismo, seja, de
modo mais amplo, pelo próprio caráter periférico, em muitos casos nulo, da
cultura negra (sempre em termos do negro genérico, por óbvio, sem quaisquer
especificações internas e diferenciações étnicas incisivas) e, nesse último
caso, pela sua inferioridade pura e simples quando comparada à
cultura/civilização ocidental. Com efeito, pudemos perceber na passagem acima,
primeiramente, a afirmação, por Olavo de Carvalho, de que os povos negros
apenas contribuíram de modo material para a constituição de nossa sociedade,
via trabalho escravo, mas não deram nenhuma contribuição
cultural/civilizacional aguda que pudesse enriquecer (simbolicamente) de modo
pleno à sociedade/cultura brasileira: povos negros ofereceram braços para a
lavoura, mas não cérebros para a cultura; manejaram a enxada, não a caneta.
Daqui
emerge o segundo ponto importante apresentado pela passagem acima, e ele diz
respeito ao argumento de que os aspectos socioculturais legados pelos povos
negros à sociedade/cultura brasileira, se por um lado são um fato histórico e
antropológico inegável, por outro representam um conteúdo altamente ambivalente
ou mesmo duvidoso. Esse tópico é central para entendermos a postura de Olavo de
Carvalho em relação à questão negra (enquanto uma fantasia fomentada aos povos
negros pela intelectualidade brasileira, na sua opinião): o fato da escravidão
revela, antes de tudo e de modo fundamental, a decadência das culturas negras,
a degeneração dos povos negros, os quais, se supostamente possuíram, no passado
longínquo, uma história importante ao ponto de terem governado o Egito, teriam
ao longo do tempo perdido a corrida da história frente a outras civilizações e,
assim, entrado em decadência cultural/civilizacional, sendo dominados por elas.
Nesse sentido, a cultura e os valores negros seriam altamente ambivalentes ou
duvidosos porque não foram capazes de permitir a hegemonia negra contra os
colonizadores, primeiro árabes, depois europeus. E, na verdade, se trataria de
uma cultura fraca e decadente que não só não conseguiu garantir hegemonia negra
contra árabes e europeus, senão que também não deixou marcas profundas – no
máximo arranhões superficiais, contribuições materiais – nas civilizações que
efetivamente colonizaram e escravizaram aos povos negros. Como dissemos, essa
compreensão antropológico-histórica da saga negra no mundo como decadência
cultural/civilizacional é fundamental a Olavo de Carvalho em sua recusa da
práxis reparatória aos povos negros pelo colonialismo e pela escravidão,
apontando, na verdade, para a inferioridade da cultura negra quando comparada
com a civilização ocidental de um modo mais geral, estando ali, na cultura
negra deficitária, e não no colonialismo europeu, a causa explicativa da
decadência, do atraso e da degeneração negra. Ele nos diz:
O fato
de nos repugnar a espoliação escravagista que foi a origem da riqueza nacional
não deve nos levar a tentar oferecer por ela uma compensação enganadora sob a
forma de lisonjas demagógicas – isso resulta apenas em substituir, ao abuso
econômico, o ludíbrio psicológico. Alguém tem de dizer aos negros a verdade: a
verdade é que todos os ritos iorubás não valem uma página de Jalal ad-Din Rumi
e a história inteira do samba não vale três compassos de Bach. A verdade é que
a contribuição cultural das religiões africanas ao mundo é perfeitamente
dispensável, tão dispensável que mais de metade dos negros que há no mundo vive
perfeitamente bem sem ela e jamais trocaria a língua árabe por um dialeto
iorubá ou a ciência europeia pelas receitas de macumba do sr. Verger (CARVALHO,
2018, p. 85-86).
Note-se,
assim, que a questão não é mais a colonização e a escravidão – e, assim, a
práxis reparatória por um processo histórico-político que demarca o (não)lugar
do negro no mundo, a universalização da condição negra do mundo, conforme
argumenta Achille Mbembe; a questão importante, acima de tudo, para Olavo de
Carvalho, diz respeito à própria cultura/civilização negra: é por causa da
decadência, da degradação e da deturpação desta que os povos negros efetivamente
perderam protagonismo histórico e, assim, foram periferizados pelos
colonizadores árabes e europeus. A escravidão negra pela Europa e em termos do
colonialismo, se por um lado certamente é condenável, por outro representa,
antes de tudo, uma consequência seja de uma dinâmica humana mais ampla enquanto
instrumentalização, usurpação e dominação recíprocas (como veremos mais
adiante, todo mundo escraviza todo mundo, o que retira qualquer perspectiva
crítico-reparatória mais ampla de um povo relativamente a outro), seja de algo
mais fundacional, que é a própria decadência cultural/civilizacional negra, a
qual se reflete tanto na incapacidade de os povos negros resistirem aos
colonizadores quanto na sua parca contribuição efetiva às culturas/civilizações
que os colonizaram – ao contrário destas que, como veremos logo adiante, foram
assimiladas pelos povos negros colonizados ao ponto de eles terem abandonados
seus costumes caducos ou atrasados e assumido os valores de seus dominadores.
Mais uma vez Olavo de Carvalho nos diz:
A
verdade, amigos negros, é que vocês perderam a corrida da história – pagando
talvez pelas maldades cometidas na época do esplendor faraônico –, se
dispersaram e se enfraqueceram, e acabaram sendo escravizados e vendidos aos
portugueses pelos mesmos semitas – pois árabes são semitas – em cujo lombo
desceram o chicote sem dó no tempo da construção das pirâmides. Não existe povo
bom: e vocês, se foram escravos por três séculos após terem sido senhores de
escravos por mais de um milênio, devem agradecer a Deus pela clemência do seu
destino. Perto dos judeus, escravizados por egípcios e babilônios, explorados
por muçulmanos, expulsos daqui para lá pelos cristãos e finalmente dizimados
pelos nazistas, vocês são uns sortudos. E olhem bem: em cada nação por onde
passaram, os judeus deixaram, em troca dos sofrimentos obtidos, um legado
cultural infinitamente mais precioso do que o carnaval, o samba e outras
bossas... (CARVALHO, 2018, p. 86).
Perceba-se
que os “amigos negros”, essa é a “verdade” que tem de lhes ser dita, de vítimas
do eurocentrismo-colonialismo-racismo e/como fascismo (cf.: CÉSAIRE, 1978, p.
17-24; MEMMI, 1967, p. 63-64; FANON, 1968, p. 25-39; FANON, 2008, p. 26-70;
MBEMBE, 2014a, p. 13-66; MBEMBE, 2014b, p. 21-99), se tornam em culpados de sua
própria instrumentalização, usurpação, menorização e escravização – ou
simplesmente são submetidos ao colonialismo-racismo por causa de sua decadência
cultural/civilizacional, situação que, por isso mesmo, não gera e não legitima
nenhuma reparação moral, política, institucional. A causa explicativa da
derrocada negra e, por consequência, da inexistência de um lugar
normativo-simbólico efetivo na cultura ocidental por parte dos povos negros,
por parte das culturas negras – ao contrário do lugar material, dos braços
negros, que, sim, possuem esse lugar – se deve, no entendimento de Olavo de
Carvalho, ao fracasso, à degradação e à deturpação culturais negras. E,
ressalte-se muito esse ponto, não é o colonialismo e não é a escravidão os
responsáveis por essa degradação, porque o povo judeu, não obstante ter sido
durante toda a sua trajetória um povo violentado, escravizado e explorado,
ainda assim deixou verdadeiras e indeléveis conquistas culturais, ao ponto de
se constituir em parte fundamental da civilização ocidental – é a cultura negra
o grande problema, ou melhor, a sua falta de cultura. Por isso mesmo, os povos
negros devem agradecer aos europeus colonizadores pela sua “bondade” para com os
negros: não lhes destruíram completamente e, ainda por cima, lhes deram,
obviamente além do chicote, da enxada e do estupro, a Bíblia – ou, de modo mais
geral, a cultura/civilização ocidental. Por conseguinte, é preciso dizer a
verdade aos negros: vocês possuem uma cultura inferior à cultura ocidental; sua
civilização é decadente, deturpada e periférica quando comparada com a pujança
e universalidade dessa mesma civilização ocidental. Olavo de Carvalho
complementa:
Mas é
no tópico religião que as reivindicações do movimento black chegam ao cúmulo do
absurdo. Por que um branco deve tomar os cultos africanos como elevadas
expressões da cultura negra se a maioria dos negros que há no mundo se
converteu ao Islã e hoje abomina esses cultos como idolatria politeísta? Um
xeque negro, pregando em uma mesquita de Adis Abeba ou Nova York, lhes dirá que
o culto afro é a desgraça da raça negra, um resíduo de tribalismo que deve ser
sepultado no esquecimento, como os árabes sepultaram os seus cultos
pré-islâmicos. Aliás, não é preciso ir tão longe. A toda hora vejo na TV
pastores evangélicos negros e mulatos dizendo que umbanda e candomblé são
religiões do capeta e apontando esses cultos como causas do milenário azar da
raça negra. Alguns apelam a um temível argumento weberiano: É imaginável um
país rico, próspero e culto governado por praticantes de vodu? A economia da
Suíça com a religião do Haiti? (CARVALHO, 2018, p. 84; os destaques são de
Olavo de Carvalho).
Os
cultos africanos – perceba-se que Olavo de Carvalho não os chama de religião,
na medida em que esta exigiria institucionalização e doutrina objetiva
codificada, de modo, portanto, que as manifestações religiosas africanas (e
indígenas) sequer poderiam ser classificadas nesse patamar – são a causa do
atraso cultural-civilizacional dos povos africanos: por isso, a consequência
cultural-civilizacional deles é o Haiti, e não a Suíça. Onde se pratica vodu,
não se pratica ciência, não se tem tecnologia, não se constrói progresso, mas
regressão mágico-animista, brutalidade prático-política e imobilização no
passado antropológico. Onde se tem tribalismo e vodu, a consequência é África,
e não Europa. Ademais, a pobreza cultural e material caudatária das tradições
africanas pode ser vista no próprio fato de que sujeitos negros – o xeque
negro, o pastor neopentecostal negro e até o presidente da Fundação Palmares! –
abominam e abandonam esse tribalismo selvagem, adotando, ao contrário, matrizes
cultural-religiosas próprias às sociedades colonizadoras dos povos negros, sejam
árabes, sejam de origem europeia. Se os próprios sujeitos negros renegam a sua
origem e as suas tradições ancestrais, buscando assumir a herança da
civilização ocidental como sua, por que diabos um membro desta pura, nobre e
avançada civilização ocidental teria seja de se render a uma suposta
superioridade cultural/civilizacional negra, seja, finalmente, à legitimidade
da práxis reparatória relativamente ao colonialismo-escravidão-racismo
reivindicada pelo movimento negro? São questões que não fazem sentido. E não o
fazem, no fim das contas, porque a cultura/civilização negra é inferior à
cultura/civilização ocidental, já estando em decadência, degenerada e
desagregada muito antes da própria colonização, da própria escravidão. Ademais,
a reparação reivindicada pelos negros em relação à colonização, à escravidão e
ao racismo é não só ilegítima, mas também obtusa e contraditória porque... os
negros também escravizaram outros povos quando foram faraós e, nas suas lutas e
divisões tribais, escravizavam-se mutuamente. Diz-nos Olavo de Carvalho:
A
exigência de reparações é o exemplo mais visível. Movidos pela oratória de
intelectuais esquizofrênicos, os negros agora exigem uma indenização dos
bisnetos de seus antigos senhores, mas ao mesmo tempo gabam-se de ser descendentes
dos faraós, que escravizaram dezenas de povos durante quinze séculos. Não vejo
como poderão escapar da pergunta: por que vocês não pagam primeiro o que devem
aos judeus?
Em
segundo lugar, a escravidão não foi introduzida na África pelos brancos
europeus, mas, muito antes da chegada deles, pelos muçulmanos, entre os quais,
por ironia, era grande o número de negros e mulatos; e, antes ainda do domínio
muçulmano, escravizar as tribos vencidas já era costume generalizado entre
vários povos africanos, que mais tarde vieram a vender os prisioneiros a árabes
e portugueses. É curioso, portanto, que a exigência de reparações seja jogada
seletivamente em cima dos brancos europeus. Mais curioso ainda é que essa
exigência venha predominantemente de negros islamizados, esquecidos não só de
que os muçulmanos já praticavam a escravidão negra antes dos europeus, mas de
que muitos países islâmicos continuaram a praticá-la até o século XX (CARVALHO,
2018, p. 82).
Note-se,
pela passagem, que, mais do que ilegítima, a reivindicação, por parte do
movimento negro, relativamente a reparações acerca do colonialismo, da
escravidão e do racismo é incongruente, ilegítima e, finalmente, seletivamente
direcionada apenas aos brancos europeus, inclusive sendo demarcada pela falta
de consciência crítica sobre o próprio fato de que negros escravizaram negros,
escravizaram árabes e escravizaram judeus. É importante salientar-se,
relativamente a isso, dois tópicos fundamentais que emergem dessa passagem:
primeiramente, uma questão de fundo, a qual consiste na naturalização de uma
geopolítica da raça, por assim dizer, que correlaciona
Europa-branco-branquitude, África-negro-negritude e, se se quiser,
América-índio-indianidade, bem como Oriente-oriental-orientalismo, geopolítica
da raça que é caudatária da expansão europeia em termos de colonialismo e
escravidão e que se constitui, em termos de justificação normativo-simbólica,
pela conjunção de filosofia da história etnocêntrica (pensemos, aqui, em G. W.
F. Hegel) e de racismo biológico (pensemos, aqui, em Charles Darwin); segundo,
e de modo muito explícito na passagem acima, de que negros já escravizaram
outros povos – árabes e judeus – e, inclusive, degeneração das degenerações,
escravizaram seus próprios congêneres, situação que, por um lado, inviabiliza
qualquer reivindicação política de reparações pelo
colonialismo-escravismo-racismo e, por outro, mostra a falta de autocrítica e,
inclusive, a própria ousadia do movimento negro. Como conclusão, portanto, à
pergunta específica pela legitimidade da práxis reparatória reivindicada pelo
movimento negro como correção dos erros históricos cometidos em termos do
colonialismo-escravismo-racismo e, de modo mais geral, à delimitação do lugar
da cultura/civilização negra no contexto mais amplo da cultura/civilização
ocidental (e a cultura/civilização ocidental é mais abrangente – e perene –
porque é universal), bem como no que se refere à comparação entre uma e outra
em termos de pujança e de importância, Olavo de Carvalho pode argumentar: fujamos
da cultura negro-africana!
[...] é
nada mais que justo que enfim se reconheça o Brasil como um país racialmente
mulato ou mesmo negro (eu mesmo contribuí para essa finalidade). Mas, se isso
implicar a aceitação do primado da cultura afro sobre a europeia, judaica e
cristã na educação nacional – ou mesmo o seu nivelamento com elas –, então só
restará aos brancos, negros e mulatos inteligentes caírem fora antes que o novo
Estado os obrigue a seguir, em vez do papa, um Papa Doc. Os intelectuais de
elite – brancos, negros e mestiços – são culpados de cultivar no povo negro,
por oportunismo ou perversidade, ilusões quase demenciais quanto ao valor da
cultura afro (CARVALHO, 2018, p. 85).
É
ilusão demencial querer afirmar seja a superioridade da cultura/civilização
negro-africana em relação à cultura/civilização ocidental (isto é,
judaico-cristã e greco-latina), seja mesmo sua equiparação, sua simetria, sua
paridade e seu nivelamento – assim como é incongruência, contradição e falta de
autoconsciência crítica o movimento negro defender a necessidade e a
legitimidade de uma práxis reparatória relativamente ao
colonialismo-escravismo-racismo, isto é, uma práxis reparatória seletiva contra
os brancos europeus, já que negros escravizaram negros, árabes e judeus! Ora,
dizíamos acima que a questão da reparação exigida pelo movimento negro em
relação ao colonialismo-escravismo-racismo era interpretada – e negada –, por
Olavo de Carvalho, a partir de uma visão antropológica de fundo sobre a
história humana de um modo geral e sobre o sentido da civilização ocidental e
do povo negro-africano em particular. Vimos, nesse capítulo, esse lugar
antropológico da cultura/civilização negra na história humana – como
degradação, decadência e degeneração – e frente à cultura/civilização ocidental
– como inferioridade, atraso, periferia. Restam-nos ainda duas perguntas a
serem respondidas por Olavo de Carvalho: qual é, então, sua noção de história
humana? Qual é sua compreensão da civilização ocidental? Responderemos essas
duas perguntas no próximo capítulo.
A
dinâmica da história humana, a civilização ocidental e o fim da política
Há uma
metafísica da história humana em Olavo de Carvalho que se correlaciona, se
evidencia e se sintetiza de modo pungente nisso que ele chamará de interpretação
global da história do ocidente, a saber: “[...] o combate entre Leviatã e
Behemot no horizonte inteiro da história ocidental” (CARVALHO, 2018, p. 32).
Estas figuras bíblicas são utilizadas por Olavo de Carvalho desde a afirmação
pungente de que representam não apenas noções escatológicas próprias às
religiões judaico-cristãs, mas uma condição universal da natureza humana. Assim
é que Behemot significa a necessidade natural, ao passo que Leviatã significa a
consciência humana. Note-se, acerca disso, que a base fundacional e
dinamizadora de constituição humana tem dois eixos estruturantes:
primeiramente, o peso maciço – e humanamente incontrolável – dessas condições
naturais sobre a consciência do homem; segundo, o fato de que este homem
massacrado pela necessidade natural é pura e simplesmente um indivíduo, cada
indivíduo. Portanto, no primeiro caso, temos a correlação/contraposição/tensão
entre mundo natural e indivíduo, tendo a política – como relacionalidade, como
intersubjetividade, como perspectiva normativo-simbólica – sido negada como
princípio, arena e dinâmica da condição humana e reduzida completamente à
ideologia; no segundo caso, temos a recusa de qualquer perspectiva
macroestrutural, de qualquer instituição comum, de qualquer determinação objetiva
dos processos de socialização e de subjetivação humanos fora do eixo da
subjetividade, a qual é reduzida a protagonista central do drama humano frente
à necessidade natural – dali, inclusive, o sentido do livro que estamos
estudando aqui, ou seja, o idiota coletivo diz respeito às ideologias políticas
que afirmam a primazia da socialização, da intersubjetividade, das instituições
ou das estruturas sociais no que tange à determinação e à configuração seja dos
indivíduos, seja da vida em comum. Ora, toda a dinâmica humana se centra na e
se dinamiza pela tensão entre necessidade natural e indivíduo, mediada pela
graça divina. Nesse sentido, como o indivíduo resolve a tensão entre o mundo
natural totalizante, Behemot, e a consciência individual atormentada, Leviatã?
Por meio de interiorização e da graça de Jesus Cristo. Esta é, para Olavo de
Carvalho, a dinâmica central da história humana e de seu desenvolvimento ao
longo do tempo, os quais culminam na civilização ocidental. Ele diz:
O
sentido que Blake registra nessas figuras não é uma “interpretação”, na acepção
negativa que Susan Sontag dá a essa palavra: é, como deve ser toda boa leitura
de texto sacro, a tradução direta de um simbolismo universal. Para Blake,
embora Behemot represente o conjunto das forças obedientes a Deus, e Leviatã o
espírito de negação e rebelião, ambos são igualmente monstros, forças cósmicas
desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma à outra no
cenário do mundo, mas também dentro da alma humana. Entretanto, não é ao homem,
nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. A
iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviatã para fora
das águas, prendendo sua língua com um anzol. Quando, porém, o homem se furta
ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta
destrutiva entre a natureza e as forças rebeldes antinaturais ou infranaturais.
A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário externo da
História (CARVALHO, 2018, p. 29; os destaques são nossos).
Note-se,
na passagem, antes de tudo, a ideia de que o conflito entre Behemot e Leviatã
representa um simbolismo universal e, nesse sentido, que ele significa e denota
a própria condição humana em termos de contradição entre as necessidades
naturais, isto é, aqui, uma perspectiva de materialismo totalizante, e os
desejos, os dramas e as psicoses próprias à consciência individual, mergulhada
nesse mundo material necessitarista em termos de seus instintos, seus desejos,
sua reflexividade e suas identidades, uma consciência que, embora situada na
materialidade, anseia pela eternidade. Ora, nem a natureza é boazinha, nem a
consciência é pura e simplesmente paz e amor: são realidades interpenetradas e
mutuamente determinantes, que detonam luz como detonam sombra, o que implica em
que a necessidade natural ou o materialismo não pode controlar a consciência e
esta, de sua parte, não pode encontrar escora e ancoragem na necessidade
natural ou no materialismo: o Leviatã, ou seja, a consciência, não pode ser
materialista e encontrar na materialidade – porque ela é só necessidade natural
cega – sentido, mas também não pode ser controlado de seus instintos
destrutivos desde a própria natureza humana, já que ela é exatamente Leviatã,
condicionada por materialismo, por necessidade natural. O que fazer, se a
materialidade como necessidade natural não ajuda, mas prende e reduz? A quem
recorrer – e como e onde recorrer – se a consciência, esta base do
Esclarecimento, já não nos traz luz, mas trevas? É nestas horas que, como em um
fiat, aparece o pescador de homens Jesus Cristo, portando sua vara de pesca,
disposto a salvar ao homem individual atormentado pela necessidade natural e
perdido na sua consciência impotente e psicótica.
Obviamente
essa história humana enquanto disputa entre Behemot (necessidade natural,
materialismo) e Leviatã (consciência humana, psiquê), que é mediada e salva
pela intervenção escatológica de Jesus Cristo, não acontece por acaso em um
duplo sentido: é uma dinâmica universal, ela mesma necessária, isto é, se trata
da dinâmica fundante do mundo humano e que exige ser retomada sempre e sempre
para que este mesmo mundo humano possa equilibrar-se e salvar-se; e exige-se de
cada indivíduo que busque dentro de si a Jesus Cristo e aceite ser fisgado por
seu anzol. Por isso mesmo, como vimos na passagem acima, é interiorizando-se,
isto é, por meio de uma intuição direta e pessoal, que o homem, que cada homem
enquanto indivíduo acessa à objetividade, à verdade. Não é pela política, mas
pela interiorização privatista que se alcança a verdade, a objetividade; não é
relacional e intersubjetivamente que se resolve a tensão entre Behemot e
Leviatã, mas adentrando fundo na alma e em termos, mais uma vez, de intuição
direta; não é na história e como historicidade que o homem se completa e se
salva, mas pela espiritualidade interior e pelo mergulho na transcendência.
Daqui devém a negação da política, de que falamos acima, e sua redução
basicamente a materialismo barato e ideologização estéril; e daqui devém a
deslegitimação da ciência como, no fim das contas, aquilo que os próprios
cientistas dizem que é ciência. Ora, qual é, então, a grande tragédia vivida
por todos os homens e por cada homem individual? No mesmo diapasão, qual é o
grande crime cometido por todas as ideologias político-científicas caudatárias
da modernidade iluminista? A recusa da graça divina e a redução de toda a
dinâmica de constituição, de sentido e do desenvolvimento do humano ao
materialismo, conferindo-se peso exclusivo à política, à história, às
instituições, às estruturas sociais, ao coletivo, à ação humana todo-poderosa,
em detrimento do indivíduo, da graça divina e, finalmente, da intuição pessoal,
direta e imediata como chave de acesso à verdade de si e do mundo. Olavo de
Carvalho nos diz:
É assim
que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bíblica, nos sugere com a força
sintética de seu simbolismo uma interpretação metafísica quanto à origem das
guerras, revoluções e catástrofes: elas refletem a demissão do homem ante o
chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta,
mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a
perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se
da esfera da providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino,
onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, porque ali já não se
enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forças cegas da
necessidade implacável e da rebelião impotente (CARVALHO, 2018, p. 29).
Os
males do mundo e do homem acontecem porque: (a) o homem não aceita Jesus Cristo
e sua graça; (b) o homem abandona sua interioridade e sua vida espiritual,
deixando de lado, inclusive, medroso que é, o combate espiritual – combate
espiritual que é o único lugar, instrumento e caminho para a vitória – e a
ajuda inultrapassável de Jesus Cristo para vencer Behemot e Leviatã; (c)
reduz-se e confere primazia absoluta ao materialismo e, nesse caso, à política
e à história como ordens e dinâmicas autorreferenciais e autossubsistentes, as
quais, por um lado, são independentes e contrapostas à graça divina e, por
outro, apagam a importância da interioridade de cada homem, da intuição pessoal
e direta relativamente ao acesso à verdade, à objetividade; e (d) confere
primazia absoluta a Behemot, tornando-se escravo da necessidade natural, e a
Leviatã, colocando a consciência insaciável como o eixo norteador de sua
conduta pessoal e de sua relacionalidade intersubjetiva, via política e
história. Na política e na história, Deus não está, a graça divina não tem
poder algum; na política e na história, a espiritualidade e a interioridade do
sujeito individual são completamente subsumidas pelas estruturas sociais, pela
intersubjetividade indiferenciada, pela materialidade totalizante e pelo ego
absoluto. Por isso, a política e a história, isto é, Behemot como materialidade
e como necessidade natural, representam forças de morte, de impotência e de
implacabilidade. Todos os problemas do mundo e do homem, portanto, se devem ao
abandono de Jesus Cristo, da interioridade e da graça; todos os problemas do
mundo e do homem se devem à redução da ação humana à materialidade, em termos
de centralidade e de primazia da história e da política; todos os problemas do
mundo e do homem se devem, finalmente, ao apagamento do indivíduo pelas
estruturas sociais, pelas instituições políticas e, assim, pela
intersubjetividade forte, manifestadas na política e na história, como política
e como história. Ora, não é mero acaso que esse materialismo totalizante, para
Olavo de Carvalho, seja radicalizado pela modernidade iluminista e gere regimes
totalitários de esquerda e de direita como sua consequência direta:
No
plano da História mais recente, isto é, no ciclo que começa mais ou menos na
época do Iluminismo, essas duas forças assumem claramente o sentido do rígido
conservadorismo e da hübris revolucionária. Ou, mais simples ainda, direita e
esquerda (CARVALHO, 2018, p. 30).
Quando
se abandona Jesus Cristo, a interioridade e a graça divina e se reduz tudo ao
materialismo, à política e à história, o resultado é o holismo neocapitalista
ou neoliberal, de primazia do mercado e de sua mundialização a qualquer custo,
cuja maior expressão intelectual é, para Olavo de Carvalho, Fritjof Capra, ou a
devastação cultural esquerdista, cuja maior manifestação é Antônio Gramsci e
seu marxismo cultural; quando se abandona Jesus Cristo, a interioridade e a
graça divina, o resultado é a guerra entre direita e esquerda e, assim, a
consecução de regimes totalitários vários. Ou seja, ao abandonar Jesus Cristo,
a interioridade e a graça divina, o homem reduz-se à materialidade e a toma
como parâmetro em termos de centralidade da política e da história, perdendo,
na verdade, qualquer parâmetro, adentrando no horizonte ilimitado e imoderado
das ideologias políticas totalitárias. O resultado é a tragédia: a primazia
dessas ideologias totalitárias. E Olavo de Carvalho complementa:
[...] as
ideologias, quaisquer que fossem, estavam sempre limitadas à dimensão
horizontal do tempo e do espaço, opunham o coletivo ao coletivo, o número ao
número; perdida a vertical que unia a alma individual à universalidade do
espírito divino, o singular ao Singular, perdia-se junto com ela o sentido de
escala, o senso das proporções e das prioridades, de modo que as ideologias
tendiam a ocupar totalitariamente o cenário inteiro da vida espiritual e a
negar ao mesmo tempo a totalidade metafísica e a unidade do indivíduo humano,
reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovisão unidimensional
(CARVALHO, 2018, p. 30).
Behemot
e Leviatã estão relacionados a Deus de modo vertical, não estando situados em
relação a ele horizontalmente, simetricamente: a salvação como aceitação de
Jesus Cristo, busca da graça divina e interiorização espiritual é uma relação
do indivíduo para com Deus e de Deus para com o indivíduo, ou seja, um
movimento vertical, de cima para baixo, de baixo para cima. Em contrapartida, o
materialismo e, portanto, a redução do mundo e do homem à política e à história
é, como vimos na passagem acima, uma relação horizontalizada entre poderes
materiais incontroláveis, a natureza e o indivíduo, a sociedade e o indivíduo,
o grupo e o indivíduo, o ego frente a outros egos, sem mediação divina alguma.
Ora, se a universalidade e a individualidade – que são a única relação possível
e legítima, para Olavo de Carvalho, em termos de salvação do homem no que tange
ao conflito Behemot e Leviatã – se dão no movimento e na linha verticais (de
cima para baixo, em que Deus vem ao homem; de baixo para cima, em que o homem
interioriza-se e alcança Deus), no âmbito da política e da história tem-se
apenas a particularidade e o desejo cego, egocêntrico e violento pelo próprio
umbigo, pelo próprio ego. Por isso mesmo, na política e na história, não está o
indivíduo – e nem está Deus, assim como a salvação – mas o coletivo, o poder, o
todo, a massa, as instituições, as estruturas sociais, isto é, o totalitarismo.
Assim, quando se destrói a linha vertical entre Deus e o homem, entre o homem
(individual) e Deus, destrói-se também seja o parâmetro normativo-moral
objetivo desde o qual o homem pode se guiar (perde-se a escala, a proporção e a
prioridade), o qual passa a ser ocupado por ideologias materialistas
imoderadas; e destrói-se o indivíduo, o qual é substituído, pelas ideologias
totalitárias, pela massa, pelo partido, pelo movimento, pela coletividade,
pelas instituições, pela totalidade, pelo Grande-Irmão etc.
É aqui
que o sentido da “militância” de Olavo de Carvalho contra o materialismo
comunista-esquerdista sob a forma de marxismo cultural explicita-se em todo o
seu sentido. Primeiramente, Olavo de Carvalho insiste em que a política e a
história, lugares do materialismo, geram pura e simplesmente ideologias
totalitárias e levam à violência totalitária contra os indivíduos,
implicando-se, assim, em três pontos perversos e destruidores da estabilidade
humana: (a) o apagamento do indivíduo pelos regimes totalitários de massa,
instrumentalizando-o e, muito frequentemente, assassinando-o; (b) fomentando a
centralidade da política, da história e da ação humana intersubjetiva direta,
desconsiderando-se e deslegitimando-se a interiorização e a intuição direta,
pessoal e privatista da verdade, a relação homem-Deus; e (c) abandonando-se a
graça divina e o pescador Jesus Cristo, substituindo-se, nesse caso, o contato
direto entre Deus e o homem individual, que é sempre uma relação vertical,
imediata, imediada, pessoal e interiorizada-interiorizante, por ideologias
materialistas calcadas seja no aqui e agora, seja no ego absoluto do
líder-partido-seita, seja, finalmente, no sentido autorreferencial,
autossubsistente e autossuficiente da história, da política e da ação humana sobre
si mesmas. Desse modo, para Olavo de Carvalho, a resolução de todos os
problemas humanos exige o combate sem tréguas ao materialismo e, com isso, a
deslegitimação da política, da história e da ação humana em nível
intersubjetivo como os móbeis de construção da objetividade, do sentido. Por
isso mesmo, o primeiro eixo de sua militância pública diz respeito exatamente à
ênfase da centralidade do indivíduo em relação à política, à história e à ação
humana em nível macroestrutural ou intersubjetivo; dito de outro modo, a defesa
do indivíduo contra o materialismo e as ideologias totalitárias nele fundadas –
o que significa que concepções materialistas geram exatamente o totalitarismo.
Olavo de Carvalho nos diz:
[...]
regra que me impus alguns anos atrás, de nunca falar impessoalmente nem em nome
de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meu próprio nome apenas,
sem qualquer retaguarda mais respeitável que a simples honorabilidade de um
animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas
sempre e unicamente a indivíduos de carne e osso, despidos das identidades
provisórias que o cargo, a posição social e a filiação ideológica superpõem
àquela com que nasceram e com a qual hão de comparecer, um dia, ante o trono do
Altíssimo. Estou profundamente persuadido de que somente nesse nível de
discurso se pode filosofar autenticamente (CARVALHO, 2018, p. 33).
Note-se,
na passagem acima, que, para Olavo de Carvalho, só existe o indivíduo “de carne
e osso” e de que, portanto, todas as vestes que ele apresenta em termos de seu
contexto e de suas condições de emergência são pura e simplesmente ideologias
que subsumem e em geral obliteram sua essência mais íntima, prejudicando,
inclusive, seu contato direto com Deus por meio da interiorização privatista e
de sua intuição pessoal direta e imediata para com esse mesmo Deus. Logo, a
política, a história e a ação humana sobre si mesmas – a política como ação
humana sobre si mesma, a história como o lugar dessa mesma ação humana –
deturpam não só a condição humana (combate individual entre Behemot e Leviatã,
interiorização pessoal e graça divina por Jesus Cristo), como também impelem
exatamente à autodestruição humana sob a forma de primazia de ideologias
políticas que levam diretamente ao totalitarismo. Ademais, como vimos acima,
estruturas sociais, instituições comuns e dinâmicas macroestruturais ou são
ideologia, ou são pura e simplesmente falácia: não existem em sentido estrito,
não determinam processos de socialização e de subjetivação amplos – e, se
existem e o fazem, conduzem ao materialismo, à perda do homem em relação a si
mesmo e à sua destinação última com Deus por meio de sua interiorização. Ora,
só indivíduos comparecem ao trono do Altíssimo, não partidos, massas,
movimentos, instituições – e é só comparecendo ao trono do Altíssimo que de
fato se alcança a compreensão primeira e última, se consegue a salvação desse
combate pungente entre Behemot e Leviatã. Por isso, o combate contra o
materialismo precisa, como vimos acima, primeiramente e de modo fundamental
afirmar a primazia do indivíduo frente às ideologias políticas (menos a posição
de Olavo de Carvalho, que aparentemente não é ideologia!), precisa afirmar a
centralidade da intuição pessoal interior e direta em relação à política, à história
e à ação humana intersubjetiva. Essa, aliás, é a pior característica da
intelectualidade brasileira, ao ponto de ela gerar o imbecil coletivo, isto é,
sua tendência a afirmar a centralidade e a primazia das estruturas sociais, das
instituições, da classe social e das condições macroestruturais (o
materialismo, a ideologia) em relação ao indivíduo de carne e osso e, nesse
caso, sua insistência da práxis política em detrimento da interiorização, sua
primazia da ação humana no âmbito histórico-político em detrimento da
espiritualidade e da graça divina. Ele diz:
O
desejo de segurança é um impulso normal do ser humano. Foi ele que impeliu os
primeiros filósofos a buscarem uma verdade para além das flutuações de opinião.
Mas esse desejo toma, entre os intelectuais brasileiros, um sentido caricatural
e perverso. Em vez de buscar segurança em uma intuição direta e pessoal,
imaginam poder encontrá-la na adesão coletiva e epidêmica às tendências de
prestígio mais recente no que chamam ‘os grandes centros produtores de cultura’
– expressão que já revela toda uma concepção coisista e mercadológica do que
seja cultura. Temerosos demais para tentar atinar por si com o certo e o
errado, encontram alívio e proteção no sentimento de estar em dia com a opinião
mundial, ou com o que tal lhes parece (CARVALHO, 2018, p. 40).
A
origem de todos os males da condição humana e, em especial, da modernidade
iluminista diz respeito exatamente à substituição do indivíduo pelo grupo, pela
massa, pela instituição, pelo partido, pela classe social, pelas estruturas
sociais; diz respeito à negação de Deus, da graça divina e da espiritualidade
em favor da ação política, da condição histórica e, finalmente, da
todo-poderosa ação humana; e diz respeito à busca objetiva da verdade por meio
da ciência e de sua implantação por meio da política, em detrimento mais uma
vez da intuição pessoal direta via interiorização e em termos de relação
vertical do indivíduo para com Deus e de Deus para com o indivíduo. O imbecil
coletivo, fenômeno muito próprio à intelectualidade brasileira, é, para Olavo
de Carvalho, resultado dessa degeneração materialista e a sua solução passa
pelo combate sem tréguas contra a intelectualidade em nome dessa intersecção de
Jesus Cristo, graça divina, indivíduo e intuição pessoal interiorizada e
espiritualista. Ademais, a militância antimoderna e antimodernizante, por parte
de Olavo de Carvalho, implica, em segundo lugar, a contraposição à modernidade
iluminista, que é a verdadeira instância radicalizadora do materialismo em sua
negação seja da religião (cristã), seja da espiritualidade e da interioridade,
instaurando exatamente, no lugar de Deus, da Verdade, da graça e do espírito, a
ciência, a política, a história, o partido e a massa, em suma, a ideologia. A
tendência ao materialismo é radicalizada, para Olavo de Carvalho, em termos de
modernidade iluminista, a qual reduz a justificação epistemológico-moral
objetiva seja ao âmbito das ciências naturais (no tocante à verdade, ao aspecto
cognitivo), seja à ação humana intersubjetiva e relacional localizada no espaço
e no tempo histórico-político-culturais (no tocante à normatividade comum, ao
aspecto ético-político-jurídico), seja, finalmente, ao gosto individual (no
tocante ao belo e ao gosto, ao aspecto estético), recusando-se, então, a
Verdade absoluta. Como vimos em passagem acima, a redução do homem e do escopo
humano à materialidade (ou seja, o âmbito da ciência, da política, da história
e da ação intersubjetiva) leva à perda de uma referência objetiva que somente
pode ser dada por uma condição a-histórica, pré-política e pré-cultural – a
qual somente pode ser acessada pelo indivíduo desde seu íntimo. É assim que
Olavo de Carvalho, ao mesmo tempo em que se propõe a sustentar a centralidade
do indivíduo “de carne e osso” frente às ideologias políticas (trata-se de uma
visão dualista-maniqueísta de mundo: de um lado as ideologias, como o mal
absoluto; de outro o indivíduo, como o protagonista; de um lado
Deus/espiritualidade, de outro a política e a história), aponta para uma
crítica da modernidade iluminista, materialista e ateia que implica, de um
lado, em se recusar a ideia de que os processos de socialização (“a sociedade”)
determinem os processos de subjetivação, bem como, de outro, em se retomar uma
noção de cultura/civilização ocidental restrita à tradição judaico-cristã
(teologia) e greco-latina (metafísica, ontologia) como contraponto exatamente à
modernidade iluminista e materialista. Quando ao primeiro ponto, Olavo de
Carvalho nos diz:
Não
haverá algo de errado nas nossas convicções habituais sobre o que suscita,
mantém e fomenta a vida intelectual? Mais precisamente: quando, seguindo uma
crença generalizada, sustentamos que a vida intelectual depende das condições
históricas e sociais, não estamos tirando dessa premissa, indiscutivelmente
certa, a conclusão errônea de que é à sociedade, e não ao indivíduo, que cabe a
iniciativa de buscar as respostas, de fazer avançar o conhecimento? E essa
crença implícita e semiconsciente não estará levando os intelectuais a esperarem
tudo da cultura institucionalizada – especialmente das universidades – e nada
dos indivíduos? Não estaremos esperando que uma abstração – “a” sociedade –
faça por nós aquilo que somente nós mesmos, indivíduos reais e concretos,
podemos fazer? A habitual visão brasileira da cultura como produto social não
estará gerando esse indesejável efeito colateral de fazer-nos esperar que o
rabo venha abanar o cachorro? (CARVALHO, 2018, p. 182-183).
O
primeiro ponto da crítica à modernidade iluminista por Olavo de Carvalho, como
dizíamos acima, aponta para o resgate da centralidade do indivíduo
relativamente à sociedade e, portanto, como também podemos perceber nessa
passagem, pela afirmação de que o indivíduo “real e concreto” deve buscar por
si mesmo a resolução de seus problemas, deixando de culpar e de responsabilizar
à sociedade por seus problemas e pela transformação de suas condições pessoais.
Mais protagonismo, autonomia e responsabilidade pessoais e menos política,
instituições e socialização. Os problemas do indivíduo são somente seus, sendo
que sua solução passa pelo próprio protagonismo desse mesmo indivíduo. O
segundo ponto de crítica por Olavo de Carvalho em relação à modernidade
iluminista passa pela afirmação e pela retomada dos “valores universais” – isto
é, a metafísica, a ontologia, a teologia, no sentido de determinação
pré-cultural da cultura, de determinação a-histórica da história, de
determinação pré-política da política, em suma, de primazia de uma perspectiva
essencialista e naturalizada em relação à política e à história, de uma base
biológico-religiosa da antropologia/cultura/normatividade – gerados em termos
de civilização ocidental, mas, entenda-se bem, de uma civilização ocidental
que, enquanto valor universal, tem sua gênese, seu sentido e sua objetivação em
termos da tradição judaico-cristã e greco-latina sintetizada sob a forma do
Renascimento filosófico-cultural. Ele diz, como crítica à modernidade
iluminista, materialista, ateia e relativista:
Não
estaremos cedendo à tendência de prestar ao consenso contemporâneo, sempre
mutável e fugidio, satisfações que deveríamos antes prestar ao legado milenar
da civilização mundial? Não estaremos caindo no erro trágico de tomar como
instância suprema e derradeira o juízo de uma época que nós mesmos, por outro
lado, proclamamos relativizar? De que adianta fazer discursos contra o
eurocentrismo da nossa cultura quando, por outro lado, não nos autorizamos a
dar um pio sem o nihil obstat do “pensamento de vanguarda” europeu e
norte-americano? Não seria mais útil e libertador tomarmos como parâmetro, ao
menos por uns instantes, a cultura antiga, medieval e clássica, já mais
consolidada como valor universal e independente de contextos locais e
preferências momentâneas? Não temos nos arriscado a sufocar no nascedouro
nossas melhores inspirações, quando a submetemos ao tribunal do consenso
contemporâneo? Quando, quatro décadas atrás, Jean-Paul Sartre proclamou o
marxismo como a “filosofia inevitável do nosso tempo”, não passamos a sentir
como arcaísmo vergonhoso tudo quanto em nós fosse pré-marxista? E de que nos
valeu esse sacrifício no altar da “atualidade” quando hoje todos temem
declarar-se marxistas para não passar por antiquados? O pensamento sempre
avançou movido pelo intuito de alcançar a verdade; só o Brasil parece acreditar
que o objetivo do pensamento é alcançar a atualidade. Essa mania já não basta
para nos colocar em uma posição subalterna e periférica, da qual nenhum
“avanço” poderá jamais nos fazer sair? (CARVALHO, 2018, p. 183; os destaques
são de Olavo de Carvalho).
Essa
passagem mereceria muitos comentários, dada suas implicações.
Restringiremo-nos, para o que nos interessa nesse capítulo, à observação de
que, conforme Olavo de Carvalho, a modernidade iluminista, exatamente por ser
materialista, ateia e relativista, não consegue oferecer – e nem gerar – um
padrão normativo com caráter objetivo que possa servir de paradigma orientador
da justificação comum e, antes de tudo, da própria ação individual. O
relativismo moderno não gera universalismo, não o sustenta, não o fomenta e, a
rigor, não está sequer comprometido com ele – por isso mesmo, a modernidade é e
gera ideologias político-filosóficas várias que têm por consequência o
totalitarismo, a violência e a morte. Contra essa modernidade materialista,
ateia, relativista e totalitária, nesse sentido, é necessário buscar a verdade
objetiva e universal, isto é, é necessário retornar às tradições
judaico-cristãs, greco-latinas e renascentistas, posto que é de lá da tradição
judaico-cristã e greco-latina até aqui, isto é, o Renascimento, como fusão
delas, que temos todo o arcabouço normativo próprio à cultura/civilização
ocidental enquanto universalidade (por outro lado, para além do Renascimento,
temos a modernidade iluminista, isto é, o fim da verdade, do universalismo, da
tradição ocidental). É por isso, aliás, que Olavo de Carvalho fala que o
importante é buscar a verdade, e não focar na atualidade. A verdade, aqui, diz
respeito a uma remissão ao passado, a uma retomada e a uma cópia do passado, na
sua correlação de ontologia e interioridade, de mundo das ideias e fé, de
determinação ontológico-religioso-biológica da
antropologia/cultura/normatividade. Ademais, essa retomada do passado como
civilização ocidental universalista calcada na tradição judaico-cristã,
greco-latina e renascentista, enquanto contraponto mais uma vez à modernidade
iluminista, materialista, ateia, relativista, ideológica e totalitária,
implica, como seu fecho de abóboda, em uma reorientação da ação humana: ela
deve deixar de focar na horizontalidade própria ao materialismo, ou seja, na
centralidade da história, da política e da ação humana intersubjetiva, e
retomar a perspectiva da verticalidade, isto é, da relação direta, pessoal e
interior do homem para com Deus e de Deus para com o homem: é necessário sair
do âmbito da história, da política e da ação humana e entrar no âmbito da
espiritualidade, da graça e da interioridade. Sobre isso, Olavo de Carvalho nos
diz:
É
necessário mudar o eixo das nossas preocupações, e mudá-lo para cima, na
direção do universal. Uma cultura inteiramente presa ao “reino deste mundo”
nada tem a oferecer ao povo senão lamentações miseráveis e protestos
histriônicos (CARVALHO, 2018, p. 139; os destaques são de Olavo de Carvalho).
Uma
cultura presa ao reino deste mundo – isto é, a modernidade iluminista,
materialista, ateia, relativista, ideológica e totalitária – oferece apenas
desorientação, desagregação e degeneração, sendo necessário assumir-se de novo
os valores universais e imutáveis da perspectiva ontoteológica caudatária da
tradição judaico-cristã e da metafísica greco-latina. Olhar e buscar
pessoalmente, interiormente, intuitivamente ao absoluto é a solução para esse
materialismo histórico-político moderno, que leva ao ateísmo, ao relativismo e,
assim, ao totalitarismo, por meio da consolidação das ideologias normativas em
detrimento da religião cristã; buscar a Deus, via Jesus Cristo, e não ao homem,
via história e política, eis a grande proposta de Olavo de Carvalho contra a
modernidade iluminista e “ateia” e contra a democracia multicultural
“relativista”. Com isso, resume-se seja a posição de Olavo de Carvalho em
relação à crítica a essa modernidade iluminista, seja no que se refere à sua
invectiva de que ela, dada sua condição materialista, ateia, relativista e
ideológica, gerou totalitarismos vários, os quais foram responsáveis por
múltiplos genocídios humanos, seja no tocante à sua defesa de uma recusa da
modernidade que aponte para a retomada de uma perspectiva espiritual como
solução ao drama humano ante o universo e a eternidade (conflito entre Behemot
e Leviatã, necessidade natural e indivíduo, entre exterioridade e
interioridade, mediado por Jesus Cristo e em termos de graça divina alcançada
por meio da intuição pessoal e direta, do homem para com Deus, de Deus para com
o homem), a qual encontra seu fecho de abóboda na busca pelo espírito divino.
Quanto ao primeiro ponto, Olavo de Carvalho argumenta:
[...] a
logomaquia universal que, se não produziu desde a Revolução Francesa nenhum
resultado intelectualmente valioso, ao menos elevou de certo modo a um plano
superior de existência uns 200 milhões de seres humanos, alçando-os deste baixo
mundo para o assento etéreo, já que esse é mais ou menos o número de vítimas
das guerras ideológicas dos dois últimos séculos (CARVALHO, 2018, p. 42).
Note-se
que a modernidade iluminista, na passagem acima exemplificada pela Revolução
Francesa, não produziu nenhum resultado intelectualmente valioso, mas, por
outro lado, gerou inúmeras guerras ideológicas que custaram a vida de pelo
menos duzentas milhões de pessoas, uma vez que abandonou a Verdade absoluta e
universal. Perceba-se, ademais, a própria correlação de modernidade e/como
logomaquia, o que significa que o abandono da verdade objetiva e universal por
parte da modernidade, tal como a interpreta Olavo de Carvalho, implica como
consequência na disputa sociopolítica – e epistemológico-normativa, por óbvio –
em torno a jogos de palavras vazias, a sistemas filosóficos descomprometidos
com essa mesma objetividade, correção e verdade, os quais, por isso mesmo, se
transformam apenas em ideologia, manipulação, massificação e violência
sectária. Interessantemente, portanto, Olavo de Carvalho acusa a modernidade
iluminista de abandono, recusa e deslegitimação da verdade objetiva,
entendendo, é claro, por verdade objetiva exatamente uma correlação estranha,
contraditória e pouco clara de revelação cristã e interioridade pessoal, de
modo que só haveria verdade, universalidade e objetividade no/como Cristianismo
e só se poderia acessá-la efetivamente por meio de um adentramento, por parte
de cada indivíduo, para o interior de seu espírito e sob a forma de intuição
pessoal e direta com o próprio Deus – se trata, como pensamos, em uma
incongruência, porque, por um lado, temos a revelação objetiva de Deus via
texto bíblico e doutrina canônica sistematizada e institucionalizada (no caso
das diferentes tradições religiosas judaico-cristãs), embora, por outro, essa
revelação objetiva seja acessada basicamente por interiorização, por intuição
direta e, como fecho de abóboda, pela graça divina. Note-se que é essa
concepção, no mínimo problemática, que permite a Olavo de Carvalho sustentar
tanto que todas as outras posições normativo-filosóficas, menos a sua, são
basicamente ideologia quanto que ele (e essa seria a especificidade de sua
teoria) consegue descrever a objetividade do mundo e do homem por via da
interiorização e apresentá-la a todos por meio de um discurso objetivo
vinculante! No que diz respeito a isso, sua intenção como filósofo público
consiste exatamente em uma luta encarniçada contra a modernidade iluminista,
acusando-a de materialista, ateia, relativista e totalitária, e sua defesa de
uma retomada dessa verdade escatológica que representa o drama vivido pelos
seres humanos em termos de universo e de eternidade, um drama desde sempre
inscrito na história de todos os homens, vale dizer, de cada homem individual.
Especialmente ao Brasil, uma nação jovem e ainda imatura em termos culturais e civilizacionais,
e profundamente influenciada por esse tipo de modernidade iluminista que
descamba no marxismo cultural, Olavo de Carvalho orienta essa sua tarefa de
crítica e de esclarecimento contra o Esclarecimento. Sobre essa sua tarefa como
intelectual público, ele diz com todas as letras:
Tarefa
que é, em essência, a de romper o círculo de limitações e constrangimentos que
o discurso ideológico tem imposto às inteligências deste país, a de vincular a
nossa cultura às correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo,
a de fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho
estreito da modernidade, imaginando que quatro séculos são a história inteira
do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade.
Tarefa que é, no seu mais elevado e ambicioso intuito, a de remover os
obstáculos mentais que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma
inspiração mais forte do espírito divino e possa florescer como um dom
magnífico a toda a humanidade (CARVALHO, 2018, p. 33).
É
necessário pôr fim a essa modernidade materialista, ateia, relativista,
totalitária e, portanto, completamente ideológica. É preciso retomar a religião
judaico-cristã, o Cristianismo como valor universal, o único capaz de efetivamente
assumir, dinamizar e resolver o drama humano frente ao universo e à eternidade,
isto é, o conflito entre a necessidade natural-material e o indivíduo
angustiado. No mesmo diapasão e por consequência, é preciso decretar o fim da
política e da história, que são basicamente ideologia totalitária negadora de
Deus, do indivíduo, da espiritualidade, da graça divina: “Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos”, não por acaso, resume essa proposta de uma condenação
sumária da modernidade ocidental, tanto na ciência quanto na política e na
cultura, como um todo enquanto mera ideologia que, hodiernamente travestida de
marxismo cultural, quer corromper, manipular e degenerar os valores universais
de um passado escatológico e, nesse caso, do indivíduo jogado ao mundo e
dependente apenas e tão somente de Deus.
Considerações
finais
Muita
coisa pode ser dita destas posições de Olavo de Carvalho, incluindo-se duas
muito básicas que certamente exigiriam de seus trabalhos muito mais do que o
apelo à crença no Deus judaico-cristão e à aceitação de sua própria voz como a
única perspectiva não-ideológica no amplo mar das ideologias geradas pela
modernidade iluminista. Saliente-se, nesse sentido, em primeiro lugar, essa sua
perspectiva de que a objetividade do mundo e do homem – que ele correlaciona
com a escatologia e a teodiceia judaico-cristãs, não por acaso utilizando-se de
três figuras bíblicas fundacionais, Behemot, Leviatã e Jesus Cristo – somente
pode ser acessada por via da interiorização individual em termos de uma
intuição direta e pessoal de Deus. Se isso é verdade, como é possível qualquer
discussão intersubjetiva não só dos próprios textos religiosos – posto que é
somente por meio deles que temos uma noção objetiva, sistemática e canônica do
credo, passível de discussão, justificação, comparação e crítica (afinal,
somente sabemos que Deus existe e veio a nós porque existem textos canônicos,
sistemas teológicos, instituições religiosas e, assim, doutrina objetiva
codificada e interpretada por comunidades clericais autossubsistentes) –, como
também das próprias normas, valores, práticas e símbolos que perpassam seja os
valores universais da tradição judaico-cristã, greco-latina e renascentista,
seja mesmo o materialismo e o relativismo modernos? Como é possível a crítica
das ideologias totalitárias modernas apenas por intuição direta e pessoal?
Ademais, a discussão da objetividade do próprio credo religioso – nesse caso,
do conflito entre Behemot e Leviatã resolvido apenas por Jesus Cristo e em
termos de graça divina –, como pode ela ser efetivamente sustentada enquanto
objetiva apenas por intuição pessoal direta e imediata, como interiorização
espiritual? Esse é o primeiro conjunto de questões que revelam a inconsistência
teórica da posição filosófica de Olavo de Carvalho em relação à justificação
intersubjetiva; e a consequência de sua posição é exatamente a de que não é
possível e de que não há instrumentos para tal discussão objetiva,
intersubjetiva: resta-nos esperar que Jesus Cristo venha iluminar cada indivíduo
particular de que ele é o caminho, a verdade e a vida, ou seja, resta-nos que
ele se mostre e faça milagres para que acreditemos nele, porque outra coisa –
isto é, um padrão-paradigma objetivo-intersubjetivo de discussão – já não temos
mais (e certamente Olavo de Carvalho não nos pode fornecê-lo com essa sua
posição anti-objetiva, anti-estrutural calcada na intuição pessoal, interior,
direta, imediada e imediata do indivíduo dilacerado por Behemot e Leviatã).
Em
segundo lugar, sua compreensão da modernidade iluminista como materialista,
relativista, totalitária e ideológica é, no mínimo, extremamente problemática,
quando não completamente falsa. A grande crítica de Olavo de Carvalho
relativamente à modernidade diz respeito ao fato de que, ao abandonar Deus, ao
recusar a metafísica e ao deslegitimar a objetividade da natureza, perdendo,
portanto, qualquer base essencialista e naturalizada sobre o mundo, a
modernidade também perdeu qualquer base objetiva ou universal para tratar sobre
o homem. Não só perdeu essa base estrutural, senão que também passou a
substituí-la pelo charlatanismo científico barato, pela manipulação da
informação, pela massificação social e pela ideologização da política. Dito de
outro modo, a modernidade, na medida em que recusa a objetividade do mundo e do
homem em sentido pré-político, pré-cultural e a-histórico, em termos
ontoteológicos, na medida em que mata Deus, assume-se como degeneração
político-moral e utiliza-se largamente dessa mesma degeneração político-moral
para a destruição da vida, da qual o relativismo filosófico (vale-tudo moral),
o positivismo científico (fato empírico determinado seja pelas ciências
sociais, seja pelas ciências naturais) e os regimes políticos totalitários
(revolução macroestrutural, massa, partido, classe social, sistema etc.) são a
máxima expressão histórico-prática. Por ter abandonado Deus, por ter recusado a
objetividade pré-cultural, pré-política e a-histórica do mundo e do homem, a
modernidade perde qualquer base para uma discussão racional sobre si, sobre a
universalidade. Por isso, aliás, a acusação, por Olavo de Carvalho, de que o
resultado da filosofia e da ciência modernas é a corrupção político-moral
ampla, que vai desde a destruição da família, passa pelo pansexualismo e pela
utilização de drogas e chega, então, como estamos dizendo, às ideologias
políticas totalitárias – situação hoje representada em termos de marxismo
cultural. No mesmo diapasão, daqui devém sua proposta de uma retomada dessa
perspectiva pré-moderna, antimoderna e antimodernizante caudatária das
tradições teológicas judaico-cristãs e da metafísica dualista (Platão) ou
monista (Aristóteles) grega, ainda que, em Olavo de Carvalho, essa retomada da
perspectiva ontoteológica clássica seja dinamizada pela centralidade da intuição
direta e pessoal por parte de cada indivíduo, sem qualquer padrão objetivo de
verificação, de prova e de discussão que não a graça divina – uma leitura que
nem precisa ser muito atenta da ontoteologia permite uma verificação clara de
que sem o método científico e a centralidade institucional não é possível
justificação objetiva e discussão e interação racionais, em suma, produção e
legitimação da normatividade; o papel da intuição pessoal interiorizada é
mínimo. No caso, ainda, somos levados a concluir que, para Olavo de Carvalho,
somente uma base essencialista e naturalizada com caráter pré-político,
pré-cultural e a-histórico (a qual, entretanto, não sabemos quem nos consegue
provar, posto que o acesso à verdade somente é possível pela intuição pessoal e
em termos de interiorização espiritual), consiga oferecer uma referência
objetiva para a produção conceitual e para a justificação da normatividade, o
que também implica em que apenas um fundamento imutável, necessário e absoluto
garanta objetividade teórica, coerência discursiva, rigor moral e
responsabilização e vinculação subjetivas-intersubjetivas. Ora, essa posição
relativamente à modernidade ignora que, exatamente por causa do abandono de
fundamentos pré-políticos, pré-culturais e a-históricos, isto é, de uma base
essencialista e naturalizada da antropologia-cultura-normatividade, a
necessidade de discussão e de justificação racionais se tornam absolutamente
inultrapassáveis para a modernidade filosófica, sem qualquer outro substitutivo
que não exatamente mais e mais discussão e justificação racionais – aqui,
qualquer apelo ao charlatanismo, à massificação e à mistificação das massas
está de antemão excluído como princípio de justificação e sequer se coaduna com
intuição e interiorização imediadas e imediatas, mas com argumentação,
contra-argumentação, prova e contraprova, com objetividade
epistemológico-moral, diferenciação de esferas de valor e com falibilismo
científico-político. Com efeito, poder-se-ia até inverter o argumento de Olavo
de Carvalho: não é o relativismo que leva ao ocaso da justificação racional e
do comprometimento com a fundamentação objetiva-intersubjetiva da
normatividade, mas exatamente seja o dogmatismo religioso e a ossificação
ontológica, que deslegitima a pluralização e a descentração
epistêmico-política, que subsume a política, a cultura e a história em uma
grade de férreo da imutabilidade, da identidade plena e da reprodução direta
entre teologia-biologia-espírito e política-cultura-antropologia-matéria, seja,
ainda mais, a perspectiva de um individualismo metodológico estrito como
intuição pessoal direta, interior, imediata e imediada à verdade, o qual impede
a constituição intersubjetiva-objetiva de parâmetros de justificação que possam
ser discutidos, criticados e revistos tanto pelas comunidades científicas
quanto pelos cidadãos. É por isso, aliás, que Olavo de Carvalho, na definição
da sua lógica universal da condição humana como conflito entre Behemot e
Leviatã mediada pela intervenção de Jesus Cristo, tem de afirmar que a salvação
última não depende do homem, mas da graça divina, ou seja, de que no fim das
contas não há qualquer possibilidade de justificação racional última sobre
nosso drama humano no universo e na eternidade, de que não há nenhuma
possibilidade de controle epistêmico-político objetivo-intersubjetivo da
dinâmica de constituição e de orientação humanas ao longo do tempo – temos de
recorrer a Deus e à graça divina como orientação primeira e última, e somente
podemos confiar em nossa intuição interna, em nossa interioridade, em nossa
espiritualidade. Note-se, assim, que é muito mais provável que o desânimo, o
desespero e a violência totalitárias provenham seja dessa condição
pré-política, pré-cultural e a-histórica da normatividade, ossificada em uma
posição antipolítica absoluta que somente pode ser acessada pelos iluminados,
por eles interpretada e aplicada exclusivamente, à qual tudo e todos estão
subordinados e subsumidos ferreamente, seja dessa centralidade da intuição
pessoal, interior, imediata e imediada para o acesso à verdade, situação que
não permite comprovação objetiva, discussão racional e justificação razoável,
favorecendo, assim, exatamente o charlatanismo, a massificação e a manipulação
das massas. Por isso mesmo, faria muito bem a Olavo de Carvalho ler – não
dizemos ler bem, mas pelo menos ler com fidelidade e honestidade intelectual –
exatamente filosofia moderna e contemporânea, a fim de perceber que o
multiculturalismo, a racionalização sociocultural e a queda das fundamentações
metafísico-teológicas de mundo, ou seja, a recusa de uma justificação
biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade, a recusa de
fundamentos pré-políticos, pré-culturais e a-históricos da sociedade, da
cultura e da política, agudizam a sensibilidade moral, a moderação política e a
necessidade de fundamentos normativos sólidos que somente podem ser construídos
com ampliação da comunidade moral, moderação, enfraquecimento e abandono de
bases dogmático-fundamentalistas e, assim, alargamento dos processos de reconhecimento,
inclusão, integração e participação, inclusive com cada vez mais deliberações
racionais, baseadas em prova e contraprova e sempre demarcadas por falibilismo.
Dito de outro modo, não é a modernidade que, como quer Olavo de Carvalho, ganha
no grito sobre o que é e o que não é objetivo, mas essa perspectiva antimoderna
da intuição pessoal interior e direta de Deus que já não possui nenhum
parâmetro objetivo capaz de escorar-se e, na verdade, que não consegue fundar
nenhum parâmetro objetivo de avaliação e nenhum quadro normativo sistemático
que não o grito e a visão do espírito, que não consegue oferecer nenhuma
solução teórico-prática que não a graça divina derramada somente sobre aqueles
que buscam o Senhor no alto de seu trono.
Importante
lembrar, após estas considerações, que nos interessa entender, nesse texto, por
que Olavo de Carvalho recusa a luta do movimento negro por reparação
normativo-política pelo colonialismo-escravidão-racismo e por que, finalmente,
ele assume seja a inferioridade das tradições culturais negro-africanas quando
comparadas aos valores universais da cultura/civilização ocidental enquanto
conjugação da tradição judaico-cristã, da metafísica greco-latina e da
filosofia renascentista, seja a inexistência de contribuição cultural efetiva
dos povos negros para a civilização ocidental. Como vimos no primeiro e no
segundo capítulos, Olavo de Carvalho recusa a práxis reparatória defendida pelo
movimento negro em relação ao colonialismo-escravidão-racismo por dois motivos.
Primeiramente, porque todos os povos são criminosos em alguma medida e,
portanto, não têm nada a cobrar uns dos outros – como todos cometem crimes,
todos são criminosos e não podem de modo idôneo e escorreito exigir reparação
por crimes cometidos pelos outros, uma vez que eles mesmos (os que exigem
reparação) cometeram crimes similares, às vezes por mais tempo, primeiro que os
outros e em uma maior intensidade. Assim é que os negros africanos uma vez
governaram o Egito e escravizaram por mais de mil anos aos povos semitas, entre
eles árabes e judeus. Logo, não podem exigir reparação pela escravidão que
sofreram depois de toda a colonização, escravização e instrumentalização que
cometeram àqueles que, posteriormente, fariam o mesmo que eles, só que agora
com eles. Ademais, como também vimos especialmente na primeira parte, essa
tendência de opressão e violência mútuas faz parte da constituição de todos os
povos ao longo do tempo e, na verdade, além de revelar uma tendência humana
básica do conflito entre Behemot e Leviatã, aponta para o fato de que uma
civilização somente pode ser conquistada quando é fraca culturalmente e quando
está em desestruturação e degeneração em termos político-morais. Assim, aliado
ao fato de que negros escravizaram árabes e judeus quando foram faraós do
Egito, o que já revelaria uma contradição teórica e uma má-fé moral seletivas
contra os brancos, tem-se a própria questão de que eles foram colonizados,
dominados e escravizados porque estavam em decadência cultural, enfraquecidos
como civilização, desestruturados social e politicamente. E por que estavam
nessa condição de crise civilizacional? Por causa de suas tradições religiosas
mágico-animistas tribalizadas, que os condenavam ao bizarro, à regressão e à
ossificação. A colonização europeia-branca foi somente um adendo, um ponto
superficial em uma realidade de desestruturação, degeneração e apagamento
cultural-civilizacional vivido pelo povo negro por causa de seus próprios
déficits antropológicos, em particular de suas tradições religiosas. Se por um
lado negros também foram senhores de escravos – entre si, dos árabes e dos
judeus –, por outro é importante considerar-se que a culpa pela escravidão é
dos próprios negros e de sua cultura decadente, e não dos brancos europeus, os
quais conseguiram sua supremacia por causa de sua cultura superior. Desse modo,
não há qualquer reparação a ser paga e a crítica aos brancos é pura e
simplesmente seletiva, incongruente e acrítica.
Em
segundo lugar, pudemos perceber que Olavo de Carvalho, ao negar a responsabilização
social-institucional na exata medida em que recusa a determinação social,
institucional, macroestrutrual da subjetividade, do lugar sociopolítico do
indivíduo, reduz toda a dinâmica humana à ação e ao protagonismo individuais.
Não existe a sociedade enquanto macroestrutura ou macrodinâmica se sobrepondo,
subsumindo e determinando de modo férreo ao indivíduo. A culpa pelo que somos é
nossa, como indivíduos, não da sociedade enquanto macroestrutura: não existe a
sociedade como macroestrutura totalizante, não existe as instituições enquanto
sistemas objetivos que determinam socialização e subjetivação de modo último e,
finalmente, não existe a classe social, o partido político, a massa amorfa que
subsumam e anulem os indivíduos. Estes indivíduos, cada um dos indivíduos, não
podem explicar seu fracasso ou seus méritos por causa de supostas condições
objetivas, mas por seu protagonismo ou pela falta dele. Assim é que Olavo de
Carvalho nega a política, a história e a ação humana intersubjetiva e afirma,
como vimos, a centralidade do indivíduo, de Deus e da graça divina, reduzindo a
busca pela verdade a uma cruzada pessoal em termos de interiorização como
intuição direta, imediata e imediada do indivíduo para com Deus. Portanto,
nesse caso, o movimento negro não pode exigir reparação pela sua condição de
miséria, de exclusão e de desigualdade contemporânea porque cada indivíduo
negro faz parte de uma sociedade que aboliu a escravidão e que equalizou a
todos há mais de cem anos, tendo tempo e condições suficientes para se
desenvolver e modificar sua situação pessoal. Se não conseguiram, isso mais uma
vez não se deve à herança colonial, escravocrata e racista, mas à sua
incapacidade pessoal. O indivíduo é o único responsável por seus atos e
responde por eles diretamente a Deus e frente aos demais; a política, a
história e a ação humana intersubjetiva são o lugar do materialismo, do
relativismo, do ateísmo e, assim, das ideologias totalitárias.
Em
terceiro lugar, temos a posição de Olavo de Carvalho em relação ao (não) lugar
das tradições negro-africanas na cultura/civilização ocidental e, nesse caso,
seja a ideia de que não houve contribuição cultural negro-africana à
cultura/civilização ocidental, seja de que essa mesma civilização ocidental é
universal, o que nos leva a concluir que as tradições negro-africanas são
particulares, meramente contextuais. No que diz respeito a isso, é importante,
antes de tudo, esclarecer que aquilo que Olavo de Carvalho entende por
cultura/civilização ocidental diz respeito à conjunção da tradição
ontoteológica judaico-cristã (incluindo-se, aqui, a filosofia-teologia
medieval), da metafísica greco-latina e, como síntese desses momentos, do
Renascimento. Note-se, portanto, que o que interessa a Olavo de Carvalho, na
sua definição da cultura/civilização ocidental é a universalidade da
ontoteologia e, nesse caso, universalidade significa seja a perspectiva da
escatologia cristã, representada de modo último pela revelação na correlação do
Antigo e do Novo Testamentos, seja a ideia filosófica de determinação da
antropologia/cultura/normatividade pela religião/biologia, pela centralidade de
fundamentos essencialistas e naturalizados com caráter pré-político,
pré-cultural e a-histórico sobre a história, a cultura, a política, a sociedade.
Nessa concepção, por isso mesmo, não só não entram as tradições
negro-africanas, inferiores à ontoteologia, como também sequer tem lugar a
modernidade iluminista materialista, relativista, ateia, ideológica e
totalitária. Note-se, assim, que a ontoteologia é associada por Olavo de
Carvalho diretamente ao espiritualismo, correlacionada, ademais, tanto com essa
perspectiva de um intuicionismo epistêmico altamente individualista que, pela
sua impotência, necessita permanentemente da graça divina representada e doada
por Jesus Cristo quanto com essa ideia de determinação religioso-biológica da
antropologia-cultura-normatividade. Daqui devém, aliás, a sua perspectiva
dualista-maniqueísta de que só não é ideologia a ontoteologia e, nesse caso, a
escatologia e a teodiceia judaico-cristãs, de que só não é ideologia o
indivíduo e sua intuição direta, imediata, imediada, interiorizada e altamente
pessoal da verdade, isto é, de Deus; e de que, então, todo o materialismo, toda
a história, toda a política e toda ação intersubjetiva são apenas ideologias
que negam a centralidade do indivíduo, que recusam o protagonismo do espírito e
da graça, que deslegitimam a Deus e que buscam a manipulação e a massificação
acima de tudo e contra a Verdade absoluta. Só a religião cristã e o indivíduo
são bons; toda e qualquer forma política e histórica, sempre materialistas, são
más, levam ao totalitarismo. Por isso mesmo, os verdadeiros valores universais
são os valores do espírito, isto é, a condição religioso-biológica do homem e, então,
a intuição individual, pessoal e direta do homem para com Deus. Todas as
tradições culturais, filosóficas e políticas que destoam do arcabouço
ontoteológico e que negam a centralidade seja do indivíduo de carne e osso,
seja do espiritualismo, estão fora da universalidade, fora da
cultura/civilização ocidental, sendo esse o caso dos povos negros e da própria
modernidade iluminista.
Não é
mero acaso que esta posição filosófica extremamente mal construída – e
apresentamos os motivos ao longo do texto: contradição epistêmica, ausência de
critérios paradigmáticos, subjetivismo estrito, intuicionismo privatista,
dualismo-maniqueísmo antropológico, fundamentalismo-dogmatismo religioso,
postura anti-objetiva e anti-estrutural em termos de justificação, imprecisão
histórico-teórica – gere, no âmbito ético-político, uma atuação antimoderna e
antimodernizante que vai desde a recusa das minorias político-culturais, do
Estado democrático de direito, dos direitos humanos e da discussão racional
objetiva, cientificamente regulada, passa pela defesa do fundamentalismo e do
dogmatismo religiosos como critério público-institucional e chega exatamente ao
autoritarismo e ao fascismo institucionais, sintetizado pelas máximas modelares
do bolsonarismo hegemônico institucional e culturalmente: “E ‘conhecereis’
(intuitivamente, interiormente, através da Revelação) a Verdade e a Verdade vos
libertará”; e “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A consequência da
postura de Olavo de Carvalho é exatamente a cegueira para a diversidade, a
recusa da pluralização epistêmica, a negação da discussão racional-científica
e, assim, a imoderação, a insensibilidade e o fechamento institucionais para a
necessária reflexividade, criticidade e transformação das estruturas sociais,
especialmente no que se refere às consequências de uma modernização
conservadora altamente racista e autoritária; a consequência da posição
anti-objetiva e anticientífica de Olavo de Carvalho é a deslegitimação completa
da discussão racional intersubjetiva, mediada cientificamente, como a base de
produção da objetividade epistemológico-moral. Assim, ao reduzir todos os
outros de si à mera ideologia totalitária, ao relativismo degenerado, à
imoralidade absoluta e à massificação inescrupulosa, fazendo-o exatamente através
da falta de honestidade intelectual e da deturpação teórica dos adversários,
inclusive em termos de utilização acrítica dessa correlação de escatologia
judaico-cristã e de intuicionismo espiritualista, Olavo de Carvalho nos mostra
que a regressão antimoderna é, de fato, o grande vórtice e a verdadeira fábrica
das ideologias totalitárias e do vale-tudo moral a fim de se garantir a
hegemonia da extrema-direita. Termos ignorado durante tanto tempo esse tipo de
postura teórico-política – deslegitimando-a por meio de um mero movimento de
ombros e um sorriso de canto da boca: “É Olavo de Carvalho, não é sério!” –
revela um erro crasso da academia brasileira que é pago com a consolidação do
obscurantismo seja no âmbito cultural, seja no âmbito institucional. Daí que,
conforme pensamos, desconstruir essas posições deva ser um dos objetivos mais
básicos da ciência, nos seus diversos ramos, até porque o negacionismo
científico, a postura anti-objetiva e irracional (no sentido de subjetivismo
privatista e de interioridade espiritualista, destituídos de parâmetros
objetivos-intersubjetivos de discussão e de justificação), o fascismo político
e o conservadorismo moral-religioso-cultural, imbricados, ameaçam em cheio com
a estabilidade de nossa democracia pluralista e universalista constituída como
um sistema público de direito e, nesse caso, atacam a ciência, a política e as
diferenças em bloco, como mera ideologia, como mera degeneração e como suprema
deturpação dos valores universalistas da tradição ontoteológica que,
paradoxalmente, somente podem ser alcançados por intuição espiritualista do
indivíduo em sua interioridade e em diálogo direto com Deus, obviamente
auxiliado pela graça de Jesus Cristo. Em outras palavras, tal posição equivale
à negação em bloco e geral de todos os que não compartilham de sua posição,
taxados como ideologia política totalitária, levando à recusa em bloco e geral
da discussão racional, cientificamente fundada e politicamente equalizada. Ora,
as consequências de tal postura “teórico-política”, uma vez hegemônica
institucional e culturalmente, são as mais graves possíveis e podem ser
sintetizadas na regressão antimoderna e antimodernizante sob a forma de
negacionismo científico, deslegitimação da práxis política, imobilização das
instituições públicas em seu papel organizador e gerenciador da sociedade e,
finalmente, recusa da desnaturalização, da historicização e da politização da
sociedade-cultura-consciência, colocando a antropologia/cultura/normatividade
como ramificação da religião/biologia.
Referências
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1978.
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Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008.
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Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Luanda:
Edições Mulemba, 2014a.
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Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014b.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
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