segunda-feira, 24 de março de 2025

REFLEXÃO ...01

 

“Alguém tem de dizer aos negros a verdade”: Olavo de Carvalho sobre a contribuição negro-africana à cultura ocidental.

 

“Someone has to say the truth to blacks”: Olavo de Carvalho on black-african contribution to western culture”

 

 Fernando Danner fernando.danner@gmail.com

Universidade Federal de Rondônia, Brasil

 

Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 3, pp. 351-374, 2021.

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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Resumo:

 

No artigo, estudaremos o pensamento filosófico de Olavo de Carvalho, especialmente no que concerne à sua posição frente ao movimento negro brasileiro e norte-americano em sua luta por reparação pelo colonialismo-escravismo-racismo. Argumentaremos que sua recusa de qualquer práxis reparatória para com as minorias político-culturais e sua posição de um não-lugar das tradições negro-africanas no contexto da cultura/civilização ocidental, incluindo-se sua defesa da inferioridade da cultura/civilização negro-africana quando comparada com a tradição judaico-cristã, greco-latina e medieval-renascentista, são fundadas por uma metafísica dualista com caráter altamente antimoderno e antimodernizante, em que a dinâmica específica que perpassa o “drama humano frente ao universo e à eternidade” se caracteriza (a) pela luta entre necessidade natural (Behemot) e consciência individual (Leviatã), a qual só pode ser vencida pela correlação de graça divina por Jesus Cristo e interiorização e intuição pessoais, diretas, imediatas e imediadas por parte de cada indivíduo para com Deus; (b) pela recusa da política, da história e da ação intersubjetiva, afirmadas como materialismo e, nesse sentido, como lugar das ideologias políticas totalitárias (do qual a modernidade iluminista é o maior exemplo); e, finalmente, (c) pela centralidade do espiritualismo, da relação íntima e direta entre Deus e homem, mediada pela Revelação, o que aponta para a inexistência, no pensamento de Olavo de Carvalho, de parâmetros objetivos de discussão, de interação e de justificação racionais – daí, inclusive, sua deslegitimação da ciência, da política, da história e da ação institucional macroestrutural, e seu apelo ao individualismo metodológico intuicionista-espiritualista.

 

Palavras-chave:

Escravidão, Povos negros, Reparação, Civilização ocidental, Periferização.

 

Abstract:

:

 

In the paper, we will study Olavo de Carvalho’s thought, focusing on his position regarding Brazilian and American Black movement in its struggle for reparation in terms of colonialism-slavery-racism. We will argue that his refusal of any reparatory praxis to political-cultural minorities and his position of a non-place for Black-African traditions in the context of Western culture/civilization, as with respect to his defense of the inferiority of Black-African culture-civilization when compared to Jewish-Christian, Greek-Latin and Medieval-Renaissance tradition, is pervaded by a dualist metaphysics with a highly anti-modern and anti-modernizing character, in which the dynamic of streamlining of “human drama about universe and eternity” is constituted (a) by the struggle between natural necessity (Behemont) and individual consciousness (Leviathan), that can only be won by the correlation of divine grace given by Jesus Christ and personal direct and immediate interiorization and intuition by each individual with God; (b) by the refusal of politics, history and intersubjective action as basically materialism and, in this sense, as the sphere of totalitarian political ideologies (to which Enlightnment modernity is the biggest example); and, finally, (d) by the centrality of spiritualism, of intimate and direct relation between God and man, mediated by Revelation, which points to the non-existence, in the Olavo de Carvalho’ thought, of objective parameters to rational discussion, interaction and justification – that is the reason of his delegitimation of science, politics, history and macro-structural institutional action, and his appeal to methodological, intuitionist and spiritualist individualism.

 

Keywords:

Slavery, Black Peoples, Reparation, Western Civilization, Pheripheralization.

 

Considerações iniciais

 

No artigo, reconstruiremos a posição de Olavo de Carvalho relativamente à reivindicação, pelo movimento negro brasileiro e americano, de reparação prático-político-institucional pelo colonialismo-escravismo-racismo contra os povos negros, de modo a salientar suas ideias estruturantes, a saber: (a) negros não têm direito a reparação alguma e ela representa uma incongruência e uma seletividade, já que, antes de seres escravizados, os próprios negros – quando foram faraós no Egito – escravizaram judeus e árabes; (b) a culpa pela escravização dos negros é dos próprios negros, por causa de sua cultura decadente, desestruturada e degenerada, cujo maior exemplo são suas tradições religiosas mágico-animistas africanas; (c) negros não deram nenhuma contribuição cultural à civilização ocidental, mas apenas uma contribuição material, sob a forma do trabalho escravo, não tendo por que reivindicar qualquer tratamento especial por parte do Ocidente branco; e, finalmente, (d) a cultura negra é inferior à cultura ocidental, à tradição judaico-cristã, à ontoteologia greco-latina-medieval e ao Renascimento, não podendo sequer ser equiparada com esta, o que mais uma vez mostra que os negros mais ganharam que perderam com a colonização.

 

Essa posição, como argumentaremos ao longo do texto, é caudatária de uma metafísica da existência humana que se constitui e se desenvolve a partir de alguns princípios estruturais, a saber: (a) o drama humano no universo e na eternidade é dinamizado em termos do combate entre a necessidade natural ou materialismo, como pode ser exemplificado através da escatologia judaico-cristã por meio da figura de Behemot, e o indivíduo de carne e osso (ou a consciência angustiada, influenciada pelos instintos, desejosa da verdade), tal como podemos perceber mais uma vez pela escatologia judaico-cristã em termos da figura de Leviatã; (b) não existe a sociedade, não existem condições intersubjetivas com caráter macroestrutural (ou, se existem, não dão a palavra final em termos de determinação dos processos de socialização e de subjetivação), mas apenas o indivíduo jogado no âmbito da materialidade e dependente da graça divina para efetivamente sobreviver e se salvar dessa perspectiva totalizante própria ao materialismo como necessidade natural; (c) a política e a história são o espaço da materialidade, nela (materialidade) não existe Deus e não pode haver salvação, de modo que a consequência da centralidade da história e da política – que a modernidade iluminista, materialista, relativista e ateia radicalizou – é a consolidação de ideologias políticas totalitárias demarcadas por violência estrutural; (d) o acesso à verdade somente pode ser feito em termos de uma relação verticalizada do homem para Deus e de Deus para o homem, por meio da interiorização pessoal, imediata, direta, imediada e espiritualista, em que cada indivíduo, adentrando em sua alma, alcança a iluminação divina – aqui, a política, a história e a ação intersubjetiva humana não permitem o acesso à verdade, uma vez que, por serem basicamente materialistas, são e geram apenas ideologias políticas totalitárias; e, assim, como consequência, (e) é necessária uma perspectiva antimoderna e antimodernizante que nega a história, a política e a ação humana intersubjetiva em favor da revelação judaico-cristã, da graça divina e do espiritualismo intuicionista. Assim, para Olavo de Carvalho, posições histórico-políticas, discussão e justificação racionais, estruturas sociais e ação intersubjetiva são apenas ideologia, não conseguem nos dar uma base objetiva de legitimação e um fundamento normativo intersubjetivamente vinculante, da mesma forma como representam a mais nefasta consequência da degeneração moderna como perspectiva pós-metafísica ou pós-tradicional. E isso significará, para ele, a necessidade da retomada da ontoteologia clássica, só que interpretada de modo renovado como espiritualismo privatista-personalista e intuicionismo anticientífico, antipolítico e antiparadigmático, ou seja, como postura antimoderna e antimodernizante, altamente individualista e antissistêmica.

 

“Alguém tem de dizer aos negros a verdade”: Olavo de Carvalho, o movimento negro e o (não)lugar da cultura negro-africana na civilização ocidental

 

Um dos eixos estruturantes da crítica realizada por Olavo de Carvalho ao movimento negro brasileiro e norte-americano consiste exatamente na recusa de que os povos negros tenham produzido e, por consequência, legado uma contribuição cultural substantiva à civilização ocidental. Com efeito, para o referido autor, negros, por meio do trabalho escravo e, aqui, como objetos/animais racializados, efetivamente produziram – e lhes foi usurpada – enorme riqueza material que possibilitou o enriquecimento de elites coloniais e das metrópoles às quais estavam direcionadas, mas é somente isso: produziram apenas riqueza material, não foram artífices de uma civilização. Nenhuma contribuição cultural e nenhum progresso civilizacional dignos de nota vieram dos povos negros, foram gerados por eles à humanidade e, portanto, não apenas não há lugar central para a cultura africana no que se refere à formação e ao desenvolvimento da cultura/civilização ocidental, como também, por causa disso, não se gera qualquer práxis reparatória frente à instrumentalização, à menorização e ao etnocídio-genocídio dos povos negros (e indígenas) em termos exatamente da escravidão colonial. Ele nos diz:

 

A contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada através do trabalho escravo, que construiu a riqueza da colônia e do império: foi uma contribuição material, não cultural. E os elementos de cultura africana que se introduziram na nossa mentalidade, se são um fato histórico e antropológico inegável, têm um valor, para dizer o mínimo, duvidoso. Pois, se os negros africanos são de fato, como proclamam, descendentes da classe dominante egípcia, então, ao ter seus primeiros contatos com o dominador muçulmano ou europeu, já eram um povo decadente, enfraquecido, reduzido das antigas glórias imperiais à dispersão tribal e à impotência de uma vida diminuída: que grande contribuição cultural podiam dar aos dominadores muçulmanos ou cristãos que então iam alcançando o máximo esplendor de suas respectivas civilizações? (CARVALHO, 2018, p. 85; os destaques são nossos).

 

A questão de fundo, específica à passagem acima, diz respeito à legitimidade ou à ilegitimidade da reparação aos negros pela escravidão colonial (e, inclusive, pela atualidade do racismo estrutural), mas, como se pode perceber, ela carrega elementos mais amplos que configuram uma perspectiva normativa, uma determinada visão antropológica do negro genérico, da cultura negra em sentido amplo, que merece ser salientada porque, na verdade, é a partir dela que efetivamente Olavo de Carvalho pode concluir seja pela completa incongruência e ilegitimidade da práxis reparatória acerca do colonialismo-racismo, seja, de modo mais amplo, pelo próprio caráter periférico, em muitos casos nulo, da cultura negra (sempre em termos do negro genérico, por óbvio, sem quaisquer especificações internas e diferenciações étnicas incisivas) e, nesse último caso, pela sua inferioridade pura e simples quando comparada à cultura/civilização ocidental. Com efeito, pudemos perceber na passagem acima, primeiramente, a afirmação, por Olavo de Carvalho, de que os povos negros apenas contribuíram de modo material para a constituição de nossa sociedade, via trabalho escravo, mas não deram nenhuma contribuição cultural/civilizacional aguda que pudesse enriquecer (simbolicamente) de modo pleno à sociedade/cultura brasileira: povos negros ofereceram braços para a lavoura, mas não cérebros para a cultura; manejaram a enxada, não a caneta.

 

Daqui emerge o segundo ponto importante apresentado pela passagem acima, e ele diz respeito ao argumento de que os aspectos socioculturais legados pelos povos negros à sociedade/cultura brasileira, se por um lado são um fato histórico e antropológico inegável, por outro representam um conteúdo altamente ambivalente ou mesmo duvidoso. Esse tópico é central para entendermos a postura de Olavo de Carvalho em relação à questão negra (enquanto uma fantasia fomentada aos povos negros pela intelectualidade brasileira, na sua opinião): o fato da escravidão revela, antes de tudo e de modo fundamental, a decadência das culturas negras, a degeneração dos povos negros, os quais, se supostamente possuíram, no passado longínquo, uma história importante ao ponto de terem governado o Egito, teriam ao longo do tempo perdido a corrida da história frente a outras civilizações e, assim, entrado em decadência cultural/civilizacional, sendo dominados por elas. Nesse sentido, a cultura e os valores negros seriam altamente ambivalentes ou duvidosos porque não foram capazes de permitir a hegemonia negra contra os colonizadores, primeiro árabes, depois europeus. E, na verdade, se trataria de uma cultura fraca e decadente que não só não conseguiu garantir hegemonia negra contra árabes e europeus, senão que também não deixou marcas profundas – no máximo arranhões superficiais, contribuições materiais – nas civilizações que efetivamente colonizaram e escravizaram aos povos negros. Como dissemos, essa compreensão antropológico-histórica da saga negra no mundo como decadência cultural/civilizacional é fundamental a Olavo de Carvalho em sua recusa da práxis reparatória aos povos negros pelo colonialismo e pela escravidão, apontando, na verdade, para a inferioridade da cultura negra quando comparada com a civilização ocidental de um modo mais geral, estando ali, na cultura negra deficitária, e não no colonialismo europeu, a causa explicativa da decadência, do atraso e da degeneração negra. Ele nos diz:

 

O fato de nos repugnar a espoliação escravagista que foi a origem da riqueza nacional não deve nos levar a tentar oferecer por ela uma compensação enganadora sob a forma de lisonjas demagógicas – isso resulta apenas em substituir, ao abuso econômico, o ludíbrio psicológico. Alguém tem de dizer aos negros a verdade: a verdade é que todos os ritos iorubás não valem uma página de Jalal ad-Din Rumi e a história inteira do samba não vale três compassos de Bach. A verdade é que a contribuição cultural das religiões africanas ao mundo é perfeitamente dispensável, tão dispensável que mais de metade dos negros que há no mundo vive perfeitamente bem sem ela e jamais trocaria a língua árabe por um dialeto iorubá ou a ciência europeia pelas receitas de macumba do sr. Verger (CARVALHO, 2018, p. 85-86).

 

Note-se, assim, que a questão não é mais a colonização e a escravidão – e, assim, a práxis reparatória por um processo histórico-político que demarca o (não)lugar do negro no mundo, a universalização da condição negra do mundo, conforme argumenta Achille Mbembe; a questão importante, acima de tudo, para Olavo de Carvalho, diz respeito à própria cultura/civilização negra: é por causa da decadência, da degradação e da deturpação desta que os povos negros efetivamente perderam protagonismo histórico e, assim, foram periferizados pelos colonizadores árabes e europeus. A escravidão negra pela Europa e em termos do colonialismo, se por um lado certamente é condenável, por outro representa, antes de tudo, uma consequência seja de uma dinâmica humana mais ampla enquanto instrumentalização, usurpação e dominação recíprocas (como veremos mais adiante, todo mundo escraviza todo mundo, o que retira qualquer perspectiva crítico-reparatória mais ampla de um povo relativamente a outro), seja de algo mais fundacional, que é a própria decadência cultural/civilizacional negra, a qual se reflete tanto na incapacidade de os povos negros resistirem aos colonizadores quanto na sua parca contribuição efetiva às culturas/civilizações que os colonizaram – ao contrário destas que, como veremos logo adiante, foram assimiladas pelos povos negros colonizados ao ponto de eles terem abandonados seus costumes caducos ou atrasados e assumido os valores de seus dominadores. Mais uma vez Olavo de Carvalho nos diz:

 

A verdade, amigos negros, é que vocês perderam a corrida da história – pagando talvez pelas maldades cometidas na época do esplendor faraônico –, se dispersaram e se enfraqueceram, e acabaram sendo escravizados e vendidos aos portugueses pelos mesmos semitas – pois árabes são semitas – em cujo lombo desceram o chicote sem dó no tempo da construção das pirâmides. Não existe povo bom: e vocês, se foram escravos por três séculos após terem sido senhores de escravos por mais de um milênio, devem agradecer a Deus pela clemência do seu destino. Perto dos judeus, escravizados por egípcios e babilônios, explorados por muçulmanos, expulsos daqui para lá pelos cristãos e finalmente dizimados pelos nazistas, vocês são uns sortudos. E olhem bem: em cada nação por onde passaram, os judeus deixaram, em troca dos sofrimentos obtidos, um legado cultural infinitamente mais precioso do que o carnaval, o samba e outras bossas... (CARVALHO, 2018, p. 86).

 

Perceba-se que os “amigos negros”, essa é a “verdade” que tem de lhes ser dita, de vítimas do eurocentrismo-colonialismo-racismo e/como fascismo (cf.: CÉSAIRE, 1978, p. 17-24; MEMMI, 1967, p. 63-64; FANON, 1968, p. 25-39; FANON, 2008, p. 26-70; MBEMBE, 2014a, p. 13-66; MBEMBE, 2014b, p. 21-99), se tornam em culpados de sua própria instrumentalização, usurpação, menorização e escravização – ou simplesmente são submetidos ao colonialismo-racismo por causa de sua decadência cultural/civilizacional, situação que, por isso mesmo, não gera e não legitima nenhuma reparação moral, política, institucional. A causa explicativa da derrocada negra e, por consequência, da inexistência de um lugar normativo-simbólico efetivo na cultura ocidental por parte dos povos negros, por parte das culturas negras – ao contrário do lugar material, dos braços negros, que, sim, possuem esse lugar – se deve, no entendimento de Olavo de Carvalho, ao fracasso, à degradação e à deturpação culturais negras. E, ressalte-se muito esse ponto, não é o colonialismo e não é a escravidão os responsáveis por essa degradação, porque o povo judeu, não obstante ter sido durante toda a sua trajetória um povo violentado, escravizado e explorado, ainda assim deixou verdadeiras e indeléveis conquistas culturais, ao ponto de se constituir em parte fundamental da civilização ocidental – é a cultura negra o grande problema, ou melhor, a sua falta de cultura. Por isso mesmo, os povos negros devem agradecer aos europeus colonizadores pela sua “bondade” para com os negros: não lhes destruíram completamente e, ainda por cima, lhes deram, obviamente além do chicote, da enxada e do estupro, a Bíblia – ou, de modo mais geral, a cultura/civilização ocidental. Por conseguinte, é preciso dizer a verdade aos negros: vocês possuem uma cultura inferior à cultura ocidental; sua civilização é decadente, deturpada e periférica quando comparada com a pujança e universalidade dessa mesma civilização ocidental. Olavo de Carvalho complementa:

 

Mas é no tópico religião que as reivindicações do movimento black chegam ao cúmulo do absurdo. Por que um branco deve tomar os cultos africanos como elevadas expressões da cultura negra se a maioria dos negros que há no mundo se converteu ao Islã e hoje abomina esses cultos como idolatria politeísta? Um xeque negro, pregando em uma mesquita de Adis Abeba ou Nova York, lhes dirá que o culto afro é a desgraça da raça negra, um resíduo de tribalismo que deve ser sepultado no esquecimento, como os árabes sepultaram os seus cultos pré-islâmicos. Aliás, não é preciso ir tão longe. A toda hora vejo na TV pastores evangélicos negros e mulatos dizendo que umbanda e candomblé são religiões do capeta e apontando esses cultos como causas do milenário azar da raça negra. Alguns apelam a um temível argumento weberiano: É imaginável um país rico, próspero e culto governado por praticantes de vodu? A economia da Suíça com a religião do Haiti? (CARVALHO, 2018, p. 84; os destaques são de Olavo de Carvalho).

 

Os cultos africanos – perceba-se que Olavo de Carvalho não os chama de religião, na medida em que esta exigiria institucionalização e doutrina objetiva codificada, de modo, portanto, que as manifestações religiosas africanas (e indígenas) sequer poderiam ser classificadas nesse patamar – são a causa do atraso cultural-civilizacional dos povos africanos: por isso, a consequência cultural-civilizacional deles é o Haiti, e não a Suíça. Onde se pratica vodu, não se pratica ciência, não se tem tecnologia, não se constrói progresso, mas regressão mágico-animista, brutalidade prático-política e imobilização no passado antropológico. Onde se tem tribalismo e vodu, a consequência é África, e não Europa. Ademais, a pobreza cultural e material caudatária das tradições africanas pode ser vista no próprio fato de que sujeitos negros – o xeque negro, o pastor neopentecostal negro e até o presidente da Fundação Palmares! – abominam e abandonam esse tribalismo selvagem, adotando, ao contrário, matrizes cultural-religiosas próprias às sociedades colonizadoras dos povos negros, sejam árabes, sejam de origem europeia. Se os próprios sujeitos negros renegam a sua origem e as suas tradições ancestrais, buscando assumir a herança da civilização ocidental como sua, por que diabos um membro desta pura, nobre e avançada civilização ocidental teria seja de se render a uma suposta superioridade cultural/civilizacional negra, seja, finalmente, à legitimidade da práxis reparatória relativamente ao colonialismo-escravidão-racismo reivindicada pelo movimento negro? São questões que não fazem sentido. E não o fazem, no fim das contas, porque a cultura/civilização negra é inferior à cultura/civilização ocidental, já estando em decadência, degenerada e desagregada muito antes da própria colonização, da própria escravidão. Ademais, a reparação reivindicada pelos negros em relação à colonização, à escravidão e ao racismo é não só ilegítima, mas também obtusa e contraditória porque... os negros também escravizaram outros povos quando foram faraós e, nas suas lutas e divisões tribais, escravizavam-se mutuamente. Diz-nos Olavo de Carvalho:

 

A exigência de reparações é o exemplo mais visível. Movidos pela oratória de intelectuais esquizofrênicos, os negros agora exigem uma indenização dos bisnetos de seus antigos senhores, mas ao mesmo tempo gabam-se de ser descendentes dos faraós, que escravizaram dezenas de povos durante quinze séculos. Não vejo como poderão escapar da pergunta: por que vocês não pagam primeiro o que devem aos judeus?

 

Em segundo lugar, a escravidão não foi introduzida na África pelos brancos europeus, mas, muito antes da chegada deles, pelos muçulmanos, entre os quais, por ironia, era grande o número de negros e mulatos; e, antes ainda do domínio muçulmano, escravizar as tribos vencidas já era costume generalizado entre vários povos africanos, que mais tarde vieram a vender os prisioneiros a árabes e portugueses. É curioso, portanto, que a exigência de reparações seja jogada seletivamente em cima dos brancos europeus. Mais curioso ainda é que essa exigência venha predominantemente de negros islamizados, esquecidos não só de que os muçulmanos já praticavam a escravidão negra antes dos europeus, mas de que muitos países islâmicos continuaram a praticá-la até o século XX (CARVALHO, 2018, p. 82).

 

Note-se, pela passagem, que, mais do que ilegítima, a reivindicação, por parte do movimento negro, relativamente a reparações acerca do colonialismo, da escravidão e do racismo é incongruente, ilegítima e, finalmente, seletivamente direcionada apenas aos brancos europeus, inclusive sendo demarcada pela falta de consciência crítica sobre o próprio fato de que negros escravizaram negros, escravizaram árabes e escravizaram judeus. É importante salientar-se, relativamente a isso, dois tópicos fundamentais que emergem dessa passagem: primeiramente, uma questão de fundo, a qual consiste na naturalização de uma geopolítica da raça, por assim dizer, que correlaciona Europa-branco-branquitude, África-negro-negritude e, se se quiser, América-índio-indianidade, bem como Oriente-oriental-orientalismo, geopolítica da raça que é caudatária da expansão europeia em termos de colonialismo e escravidão e que se constitui, em termos de justificação normativo-simbólica, pela conjunção de filosofia da história etnocêntrica (pensemos, aqui, em G. W. F. Hegel) e de racismo biológico (pensemos, aqui, em Charles Darwin); segundo, e de modo muito explícito na passagem acima, de que negros já escravizaram outros povos – árabes e judeus – e, inclusive, degeneração das degenerações, escravizaram seus próprios congêneres, situação que, por um lado, inviabiliza qualquer reivindicação política de reparações pelo colonialismo-escravismo-racismo e, por outro, mostra a falta de autocrítica e, inclusive, a própria ousadia do movimento negro. Como conclusão, portanto, à pergunta específica pela legitimidade da práxis reparatória reivindicada pelo movimento negro como correção dos erros históricos cometidos em termos do colonialismo-escravismo-racismo e, de modo mais geral, à delimitação do lugar da cultura/civilização negra no contexto mais amplo da cultura/civilização ocidental (e a cultura/civilização ocidental é mais abrangente – e perene – porque é universal), bem como no que se refere à comparação entre uma e outra em termos de pujança e de importância, Olavo de Carvalho pode argumentar: fujamos da cultura negro-africana!

 

[...] é nada mais que justo que enfim se reconheça o Brasil como um país racialmente mulato ou mesmo negro (eu mesmo contribuí para essa finalidade). Mas, se isso implicar a aceitação do primado da cultura afro sobre a europeia, judaica e cristã na educação nacional – ou mesmo o seu nivelamento com elas –, então só restará aos brancos, negros e mulatos inteligentes caírem fora antes que o novo Estado os obrigue a seguir, em vez do papa, um Papa Doc. Os intelectuais de elite – brancos, negros e mestiços – são culpados de cultivar no povo negro, por oportunismo ou perversidade, ilusões quase demenciais quanto ao valor da cultura afro (CARVALHO, 2018, p. 85).

 

É ilusão demencial querer afirmar seja a superioridade da cultura/civilização negro-africana em relação à cultura/civilização ocidental (isto é, judaico-cristã e greco-latina), seja mesmo sua equiparação, sua simetria, sua paridade e seu nivelamento – assim como é incongruência, contradição e falta de autoconsciência crítica o movimento negro defender a necessidade e a legitimidade de uma práxis reparatória relativamente ao colonialismo-escravismo-racismo, isto é, uma práxis reparatória seletiva contra os brancos europeus, já que negros escravizaram negros, árabes e judeus! Ora, dizíamos acima que a questão da reparação exigida pelo movimento negro em relação ao colonialismo-escravismo-racismo era interpretada – e negada –, por Olavo de Carvalho, a partir de uma visão antropológica de fundo sobre a história humana de um modo geral e sobre o sentido da civilização ocidental e do povo negro-africano em particular. Vimos, nesse capítulo, esse lugar antropológico da cultura/civilização negra na história humana – como degradação, decadência e degeneração – e frente à cultura/civilização ocidental – como inferioridade, atraso, periferia. Restam-nos ainda duas perguntas a serem respondidas por Olavo de Carvalho: qual é, então, sua noção de história humana? Qual é sua compreensão da civilização ocidental? Responderemos essas duas perguntas no próximo capítulo.

 

A dinâmica da história humana, a civilização ocidental e o fim da política

 

Há uma metafísica da história humana em Olavo de Carvalho que se correlaciona, se evidencia e se sintetiza de modo pungente nisso que ele chamará de interpretação global da história do ocidente, a saber: “[...] o combate entre Leviatã e Behemot no horizonte inteiro da história ocidental” (CARVALHO, 2018, p. 32). Estas figuras bíblicas são utilizadas por Olavo de Carvalho desde a afirmação pungente de que representam não apenas noções escatológicas próprias às religiões judaico-cristãs, mas uma condição universal da natureza humana. Assim é que Behemot significa a necessidade natural, ao passo que Leviatã significa a consciência humana. Note-se, acerca disso, que a base fundacional e dinamizadora de constituição humana tem dois eixos estruturantes: primeiramente, o peso maciço – e humanamente incontrolável – dessas condições naturais sobre a consciência do homem; segundo, o fato de que este homem massacrado pela necessidade natural é pura e simplesmente um indivíduo, cada indivíduo. Portanto, no primeiro caso, temos a correlação/contraposição/tensão entre mundo natural e indivíduo, tendo a política – como relacionalidade, como intersubjetividade, como perspectiva normativo-simbólica – sido negada como princípio, arena e dinâmica da condição humana e reduzida completamente à ideologia; no segundo caso, temos a recusa de qualquer perspectiva macroestrutural, de qualquer instituição comum, de qualquer determinação objetiva dos processos de socialização e de subjetivação humanos fora do eixo da subjetividade, a qual é reduzida a protagonista central do drama humano frente à necessidade natural – dali, inclusive, o sentido do livro que estamos estudando aqui, ou seja, o idiota coletivo diz respeito às ideologias políticas que afirmam a primazia da socialização, da intersubjetividade, das instituições ou das estruturas sociais no que tange à determinação e à configuração seja dos indivíduos, seja da vida em comum. Ora, toda a dinâmica humana se centra na e se dinamiza pela tensão entre necessidade natural e indivíduo, mediada pela graça divina. Nesse sentido, como o indivíduo resolve a tensão entre o mundo natural totalizante, Behemot, e a consciência individual atormentada, Leviatã? Por meio de interiorização e da graça de Jesus Cristo. Esta é, para Olavo de Carvalho, a dinâmica central da história humana e de seu desenvolvimento ao longo do tempo, os quais culminam na civilização ocidental. Ele diz:

 

O sentido que Blake registra nessas figuras não é uma “interpretação”, na acepção negativa que Susan Sontag dá a essa palavra: é, como deve ser toda boa leitura de texto sacro, a tradução direta de um simbolismo universal. Para Blake, embora Behemot represente o conjunto das forças obedientes a Deus, e Leviatã o espírito de negação e rebelião, ambos são igualmente monstros, forças cósmicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma à outra no cenário do mundo, mas também dentro da alma humana. Entretanto, não é ao homem, nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. A iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviatã para fora das águas, prendendo sua língua com um anzol. Quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as forças rebeldes antinaturais ou infranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário externo da História (CARVALHO, 2018, p. 29; os destaques são nossos).

 

Note-se, na passagem, antes de tudo, a ideia de que o conflito entre Behemot e Leviatã representa um simbolismo universal e, nesse sentido, que ele significa e denota a própria condição humana em termos de contradição entre as necessidades naturais, isto é, aqui, uma perspectiva de materialismo totalizante, e os desejos, os dramas e as psicoses próprias à consciência individual, mergulhada nesse mundo material necessitarista em termos de seus instintos, seus desejos, sua reflexividade e suas identidades, uma consciência que, embora situada na materialidade, anseia pela eternidade. Ora, nem a natureza é boazinha, nem a consciência é pura e simplesmente paz e amor: são realidades interpenetradas e mutuamente determinantes, que detonam luz como detonam sombra, o que implica em que a necessidade natural ou o materialismo não pode controlar a consciência e esta, de sua parte, não pode encontrar escora e ancoragem na necessidade natural ou no materialismo: o Leviatã, ou seja, a consciência, não pode ser materialista e encontrar na materialidade – porque ela é só necessidade natural cega – sentido, mas também não pode ser controlado de seus instintos destrutivos desde a própria natureza humana, já que ela é exatamente Leviatã, condicionada por materialismo, por necessidade natural. O que fazer, se a materialidade como necessidade natural não ajuda, mas prende e reduz? A quem recorrer – e como e onde recorrer – se a consciência, esta base do Esclarecimento, já não nos traz luz, mas trevas? É nestas horas que, como em um fiat, aparece o pescador de homens Jesus Cristo, portando sua vara de pesca, disposto a salvar ao homem individual atormentado pela necessidade natural e perdido na sua consciência impotente e psicótica.

 

Obviamente essa história humana enquanto disputa entre Behemot (necessidade natural, materialismo) e Leviatã (consciência humana, psiquê), que é mediada e salva pela intervenção escatológica de Jesus Cristo, não acontece por acaso em um duplo sentido: é uma dinâmica universal, ela mesma necessária, isto é, se trata da dinâmica fundante do mundo humano e que exige ser retomada sempre e sempre para que este mesmo mundo humano possa equilibrar-se e salvar-se; e exige-se de cada indivíduo que busque dentro de si a Jesus Cristo e aceite ser fisgado por seu anzol. Por isso mesmo, como vimos na passagem acima, é interiorizando-se, isto é, por meio de uma intuição direta e pessoal, que o homem, que cada homem enquanto indivíduo acessa à objetividade, à verdade. Não é pela política, mas pela interiorização privatista que se alcança a verdade, a objetividade; não é relacional e intersubjetivamente que se resolve a tensão entre Behemot e Leviatã, mas adentrando fundo na alma e em termos, mais uma vez, de intuição direta; não é na história e como historicidade que o homem se completa e se salva, mas pela espiritualidade interior e pelo mergulho na transcendência. Daqui devém a negação da política, de que falamos acima, e sua redução basicamente a materialismo barato e ideologização estéril; e daqui devém a deslegitimação da ciência como, no fim das contas, aquilo que os próprios cientistas dizem que é ciência. Ora, qual é, então, a grande tragédia vivida por todos os homens e por cada homem individual? No mesmo diapasão, qual é o grande crime cometido por todas as ideologias político-científicas caudatárias da modernidade iluminista? A recusa da graça divina e a redução de toda a dinâmica de constituição, de sentido e do desenvolvimento do humano ao materialismo, conferindo-se peso exclusivo à política, à história, às instituições, às estruturas sociais, ao coletivo, à ação humana todo-poderosa, em detrimento do indivíduo, da graça divina e, finalmente, da intuição pessoal, direta e imediata como chave de acesso à verdade de si e do mundo. Olavo de Carvalho nos diz:

 

É assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bíblica, nos sugere com a força sintética de seu simbolismo uma interpretação metafísica quanto à origem das guerras, revoluções e catástrofes: elas refletem a demissão do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se da esfera da providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino, onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, porque ali já não se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forças cegas da necessidade implacável e da rebelião impotente (CARVALHO, 2018, p. 29).

 

Os males do mundo e do homem acontecem porque: (a) o homem não aceita Jesus Cristo e sua graça; (b) o homem abandona sua interioridade e sua vida espiritual, deixando de lado, inclusive, medroso que é, o combate espiritual – combate espiritual que é o único lugar, instrumento e caminho para a vitória – e a ajuda inultrapassável de Jesus Cristo para vencer Behemot e Leviatã; (c) reduz-se e confere primazia absoluta ao materialismo e, nesse caso, à política e à história como ordens e dinâmicas autorreferenciais e autossubsistentes, as quais, por um lado, são independentes e contrapostas à graça divina e, por outro, apagam a importância da interioridade de cada homem, da intuição pessoal e direta relativamente ao acesso à verdade, à objetividade; e (d) confere primazia absoluta a Behemot, tornando-se escravo da necessidade natural, e a Leviatã, colocando a consciência insaciável como o eixo norteador de sua conduta pessoal e de sua relacionalidade intersubjetiva, via política e história. Na política e na história, Deus não está, a graça divina não tem poder algum; na política e na história, a espiritualidade e a interioridade do sujeito individual são completamente subsumidas pelas estruturas sociais, pela intersubjetividade indiferenciada, pela materialidade totalizante e pelo ego absoluto. Por isso, a política e a história, isto é, Behemot como materialidade e como necessidade natural, representam forças de morte, de impotência e de implacabilidade. Todos os problemas do mundo e do homem, portanto, se devem ao abandono de Jesus Cristo, da interioridade e da graça; todos os problemas do mundo e do homem se devem à redução da ação humana à materialidade, em termos de centralidade e de primazia da história e da política; todos os problemas do mundo e do homem se devem, finalmente, ao apagamento do indivíduo pelas estruturas sociais, pelas instituições políticas e, assim, pela intersubjetividade forte, manifestadas na política e na história, como política e como história. Ora, não é mero acaso que esse materialismo totalizante, para Olavo de Carvalho, seja radicalizado pela modernidade iluminista e gere regimes totalitários de esquerda e de direita como sua consequência direta:

 

No plano da História mais recente, isto é, no ciclo que começa mais ou menos na época do Iluminismo, essas duas forças assumem claramente o sentido do rígido conservadorismo e da hübris revolucionária. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda (CARVALHO, 2018, p. 30).

 

Quando se abandona Jesus Cristo, a interioridade e a graça divina e se reduz tudo ao materialismo, à política e à história, o resultado é o holismo neocapitalista ou neoliberal, de primazia do mercado e de sua mundialização a qualquer custo, cuja maior expressão intelectual é, para Olavo de Carvalho, Fritjof Capra, ou a devastação cultural esquerdista, cuja maior manifestação é Antônio Gramsci e seu marxismo cultural; quando se abandona Jesus Cristo, a interioridade e a graça divina, o resultado é a guerra entre direita e esquerda e, assim, a consecução de regimes totalitários vários. Ou seja, ao abandonar Jesus Cristo, a interioridade e a graça divina, o homem reduz-se à materialidade e a toma como parâmetro em termos de centralidade da política e da história, perdendo, na verdade, qualquer parâmetro, adentrando no horizonte ilimitado e imoderado das ideologias políticas totalitárias. O resultado é a tragédia: a primazia dessas ideologias totalitárias. E Olavo de Carvalho complementa:

 

[...] as ideologias, quaisquer que fossem, estavam sempre limitadas à dimensão horizontal do tempo e do espaço, opunham o coletivo ao coletivo, o número ao número; perdida a vertical que unia a alma individual à universalidade do espírito divino, o singular ao Singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso das proporções e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a ocupar totalitariamente o cenário inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo tempo a totalidade metafísica e a unidade do indivíduo humano, reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovisão unidimensional (CARVALHO, 2018, p. 30).

 

Behemot e Leviatã estão relacionados a Deus de modo vertical, não estando situados em relação a ele horizontalmente, simetricamente: a salvação como aceitação de Jesus Cristo, busca da graça divina e interiorização espiritual é uma relação do indivíduo para com Deus e de Deus para com o indivíduo, ou seja, um movimento vertical, de cima para baixo, de baixo para cima. Em contrapartida, o materialismo e, portanto, a redução do mundo e do homem à política e à história é, como vimos na passagem acima, uma relação horizontalizada entre poderes materiais incontroláveis, a natureza e o indivíduo, a sociedade e o indivíduo, o grupo e o indivíduo, o ego frente a outros egos, sem mediação divina alguma. Ora, se a universalidade e a individualidade – que são a única relação possível e legítima, para Olavo de Carvalho, em termos de salvação do homem no que tange ao conflito Behemot e Leviatã – se dão no movimento e na linha verticais (de cima para baixo, em que Deus vem ao homem; de baixo para cima, em que o homem interioriza-se e alcança Deus), no âmbito da política e da história tem-se apenas a particularidade e o desejo cego, egocêntrico e violento pelo próprio umbigo, pelo próprio ego. Por isso mesmo, na política e na história, não está o indivíduo – e nem está Deus, assim como a salvação – mas o coletivo, o poder, o todo, a massa, as instituições, as estruturas sociais, isto é, o totalitarismo. Assim, quando se destrói a linha vertical entre Deus e o homem, entre o homem (individual) e Deus, destrói-se também seja o parâmetro normativo-moral objetivo desde o qual o homem pode se guiar (perde-se a escala, a proporção e a prioridade), o qual passa a ser ocupado por ideologias materialistas imoderadas; e destrói-se o indivíduo, o qual é substituído, pelas ideologias totalitárias, pela massa, pelo partido, pelo movimento, pela coletividade, pelas instituições, pela totalidade, pelo Grande-Irmão etc.

 

É aqui que o sentido da “militância” de Olavo de Carvalho contra o materialismo comunista-esquerdista sob a forma de marxismo cultural explicita-se em todo o seu sentido. Primeiramente, Olavo de Carvalho insiste em que a política e a história, lugares do materialismo, geram pura e simplesmente ideologias totalitárias e levam à violência totalitária contra os indivíduos, implicando-se, assim, em três pontos perversos e destruidores da estabilidade humana: (a) o apagamento do indivíduo pelos regimes totalitários de massa, instrumentalizando-o e, muito frequentemente, assassinando-o; (b) fomentando a centralidade da política, da história e da ação humana intersubjetiva direta, desconsiderando-se e deslegitimando-se a interiorização e a intuição direta, pessoal e privatista da verdade, a relação homem-Deus; e (c) abandonando-se a graça divina e o pescador Jesus Cristo, substituindo-se, nesse caso, o contato direto entre Deus e o homem individual, que é sempre uma relação vertical, imediata, imediada, pessoal e interiorizada-interiorizante, por ideologias materialistas calcadas seja no aqui e agora, seja no ego absoluto do líder-partido-seita, seja, finalmente, no sentido autorreferencial, autossubsistente e autossuficiente da história, da política e da ação humana sobre si mesmas. Desse modo, para Olavo de Carvalho, a resolução de todos os problemas humanos exige o combate sem tréguas ao materialismo e, com isso, a deslegitimação da política, da história e da ação humana em nível intersubjetivo como os móbeis de construção da objetividade, do sentido. Por isso mesmo, o primeiro eixo de sua militância pública diz respeito exatamente à ênfase da centralidade do indivíduo em relação à política, à história e à ação humana em nível macroestrutural ou intersubjetivo; dito de outro modo, a defesa do indivíduo contra o materialismo e as ideologias totalitárias nele fundadas – o que significa que concepções materialistas geram exatamente o totalitarismo. Olavo de Carvalho nos diz:

 

[...] regra que me impus alguns anos atrás, de nunca falar impessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meu próprio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais respeitável que a simples honorabilidade de um animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas sempre e unicamente a indivíduos de carne e osso, despidos das identidades provisórias que o cargo, a posição social e a filiação ideológica superpõem àquela com que nasceram e com a qual hão de comparecer, um dia, ante o trono do Altíssimo. Estou profundamente persuadido de que somente nesse nível de discurso se pode filosofar autenticamente (CARVALHO, 2018, p. 33).

 

Note-se, na passagem acima, que, para Olavo de Carvalho, só existe o indivíduo “de carne e osso” e de que, portanto, todas as vestes que ele apresenta em termos de seu contexto e de suas condições de emergência são pura e simplesmente ideologias que subsumem e em geral obliteram sua essência mais íntima, prejudicando, inclusive, seu contato direto com Deus por meio da interiorização privatista e de sua intuição pessoal direta e imediata para com esse mesmo Deus. Logo, a política, a história e a ação humana sobre si mesmas – a política como ação humana sobre si mesma, a história como o lugar dessa mesma ação humana – deturpam não só a condição humana (combate individual entre Behemot e Leviatã, interiorização pessoal e graça divina por Jesus Cristo), como também impelem exatamente à autodestruição humana sob a forma de primazia de ideologias políticas que levam diretamente ao totalitarismo. Ademais, como vimos acima, estruturas sociais, instituições comuns e dinâmicas macroestruturais ou são ideologia, ou são pura e simplesmente falácia: não existem em sentido estrito, não determinam processos de socialização e de subjetivação amplos – e, se existem e o fazem, conduzem ao materialismo, à perda do homem em relação a si mesmo e à sua destinação última com Deus por meio de sua interiorização. Ora, só indivíduos comparecem ao trono do Altíssimo, não partidos, massas, movimentos, instituições – e é só comparecendo ao trono do Altíssimo que de fato se alcança a compreensão primeira e última, se consegue a salvação desse combate pungente entre Behemot e Leviatã. Por isso, o combate contra o materialismo precisa, como vimos acima, primeiramente e de modo fundamental afirmar a primazia do indivíduo frente às ideologias políticas (menos a posição de Olavo de Carvalho, que aparentemente não é ideologia!), precisa afirmar a centralidade da intuição pessoal interior e direta em relação à política, à história e à ação humana intersubjetiva. Essa, aliás, é a pior característica da intelectualidade brasileira, ao ponto de ela gerar o imbecil coletivo, isto é, sua tendência a afirmar a centralidade e a primazia das estruturas sociais, das instituições, da classe social e das condições macroestruturais (o materialismo, a ideologia) em relação ao indivíduo de carne e osso e, nesse caso, sua insistência da práxis política em detrimento da interiorização, sua primazia da ação humana no âmbito histórico-político em detrimento da espiritualidade e da graça divina. Ele diz:

 

O desejo de segurança é um impulso normal do ser humano. Foi ele que impeliu os primeiros filósofos a buscarem uma verdade para além das flutuações de opinião. Mas esse desejo toma, entre os intelectuais brasileiros, um sentido caricatural e perverso. Em vez de buscar segurança em uma intuição direta e pessoal, imaginam poder encontrá-la na adesão coletiva e epidêmica às tendências de prestígio mais recente no que chamam ‘os grandes centros produtores de cultura’ – expressão que já revela toda uma concepção coisista e mercadológica do que seja cultura. Temerosos demais para tentar atinar por si com o certo e o errado, encontram alívio e proteção no sentimento de estar em dia com a opinião mundial, ou com o que tal lhes parece (CARVALHO, 2018, p. 40).

 

A origem de todos os males da condição humana e, em especial, da modernidade iluminista diz respeito exatamente à substituição do indivíduo pelo grupo, pela massa, pela instituição, pelo partido, pela classe social, pelas estruturas sociais; diz respeito à negação de Deus, da graça divina e da espiritualidade em favor da ação política, da condição histórica e, finalmente, da todo-poderosa ação humana; e diz respeito à busca objetiva da verdade por meio da ciência e de sua implantação por meio da política, em detrimento mais uma vez da intuição pessoal direta via interiorização e em termos de relação vertical do indivíduo para com Deus e de Deus para com o indivíduo. O imbecil coletivo, fenômeno muito próprio à intelectualidade brasileira, é, para Olavo de Carvalho, resultado dessa degeneração materialista e a sua solução passa pelo combate sem tréguas contra a intelectualidade em nome dessa intersecção de Jesus Cristo, graça divina, indivíduo e intuição pessoal interiorizada e espiritualista. Ademais, a militância antimoderna e antimodernizante, por parte de Olavo de Carvalho, implica, em segundo lugar, a contraposição à modernidade iluminista, que é a verdadeira instância radicalizadora do materialismo em sua negação seja da religião (cristã), seja da espiritualidade e da interioridade, instaurando exatamente, no lugar de Deus, da Verdade, da graça e do espírito, a ciência, a política, a história, o partido e a massa, em suma, a ideologia. A tendência ao materialismo é radicalizada, para Olavo de Carvalho, em termos de modernidade iluminista, a qual reduz a justificação epistemológico-moral objetiva seja ao âmbito das ciências naturais (no tocante à verdade, ao aspecto cognitivo), seja à ação humana intersubjetiva e relacional localizada no espaço e no tempo histórico-político-culturais (no tocante à normatividade comum, ao aspecto ético-político-jurídico), seja, finalmente, ao gosto individual (no tocante ao belo e ao gosto, ao aspecto estético), recusando-se, então, a Verdade absoluta. Como vimos em passagem acima, a redução do homem e do escopo humano à materialidade (ou seja, o âmbito da ciência, da política, da história e da ação intersubjetiva) leva à perda de uma referência objetiva que somente pode ser dada por uma condição a-histórica, pré-política e pré-cultural – a qual somente pode ser acessada pelo indivíduo desde seu íntimo. É assim que Olavo de Carvalho, ao mesmo tempo em que se propõe a sustentar a centralidade do indivíduo “de carne e osso” frente às ideologias políticas (trata-se de uma visão dualista-maniqueísta de mundo: de um lado as ideologias, como o mal absoluto; de outro o indivíduo, como o protagonista; de um lado Deus/espiritualidade, de outro a política e a história), aponta para uma crítica da modernidade iluminista, materialista e ateia que implica, de um lado, em se recusar a ideia de que os processos de socialização (“a sociedade”) determinem os processos de subjetivação, bem como, de outro, em se retomar uma noção de cultura/civilização ocidental restrita à tradição judaico-cristã (teologia) e greco-latina (metafísica, ontologia) como contraponto exatamente à modernidade iluminista e materialista. Quando ao primeiro ponto, Olavo de Carvalho nos diz:

 

Não haverá algo de errado nas nossas convicções habituais sobre o que suscita, mantém e fomenta a vida intelectual? Mais precisamente: quando, seguindo uma crença generalizada, sustentamos que a vida intelectual depende das condições históricas e sociais, não estamos tirando dessa premissa, indiscutivelmente certa, a conclusão errônea de que é à sociedade, e não ao indivíduo, que cabe a iniciativa de buscar as respostas, de fazer avançar o conhecimento? E essa crença implícita e semiconsciente não estará levando os intelectuais a esperarem tudo da cultura institucionalizada – especialmente das universidades – e nada dos indivíduos? Não estaremos esperando que uma abstração – “a” sociedade – faça por nós aquilo que somente nós mesmos, indivíduos reais e concretos, podemos fazer? A habitual visão brasileira da cultura como produto social não estará gerando esse indesejável efeito colateral de fazer-nos esperar que o rabo venha abanar o cachorro? (CARVALHO, 2018, p. 182-183).

 

O primeiro ponto da crítica à modernidade iluminista por Olavo de Carvalho, como dizíamos acima, aponta para o resgate da centralidade do indivíduo relativamente à sociedade e, portanto, como também podemos perceber nessa passagem, pela afirmação de que o indivíduo “real e concreto” deve buscar por si mesmo a resolução de seus problemas, deixando de culpar e de responsabilizar à sociedade por seus problemas e pela transformação de suas condições pessoais. Mais protagonismo, autonomia e responsabilidade pessoais e menos política, instituições e socialização. Os problemas do indivíduo são somente seus, sendo que sua solução passa pelo próprio protagonismo desse mesmo indivíduo. O segundo ponto de crítica por Olavo de Carvalho em relação à modernidade iluminista passa pela afirmação e pela retomada dos “valores universais” – isto é, a metafísica, a ontologia, a teologia, no sentido de determinação pré-cultural da cultura, de determinação a-histórica da história, de determinação pré-política da política, em suma, de primazia de uma perspectiva essencialista e naturalizada em relação à política e à história, de uma base biológico-religiosa da antropologia/cultura/normatividade – gerados em termos de civilização ocidental, mas, entenda-se bem, de uma civilização ocidental que, enquanto valor universal, tem sua gênese, seu sentido e sua objetivação em termos da tradição judaico-cristã e greco-latina sintetizada sob a forma do Renascimento filosófico-cultural. Ele diz, como crítica à modernidade iluminista, materialista, ateia e relativista:

 

Não estaremos cedendo à tendência de prestar ao consenso contemporâneo, sempre mutável e fugidio, satisfações que deveríamos antes prestar ao legado milenar da civilização mundial? Não estaremos caindo no erro trágico de tomar como instância suprema e derradeira o juízo de uma época que nós mesmos, por outro lado, proclamamos relativizar? De que adianta fazer discursos contra o eurocentrismo da nossa cultura quando, por outro lado, não nos autorizamos a dar um pio sem o nihil obstat do “pensamento de vanguarda” europeu e norte-americano? Não seria mais útil e libertador tomarmos como parâmetro, ao menos por uns instantes, a cultura antiga, medieval e clássica, já mais consolidada como valor universal e independente de contextos locais e preferências momentâneas? Não temos nos arriscado a sufocar no nascedouro nossas melhores inspirações, quando a submetemos ao tribunal do consenso contemporâneo? Quando, quatro décadas atrás, Jean-Paul Sartre proclamou o marxismo como a “filosofia inevitável do nosso tempo”, não passamos a sentir como arcaísmo vergonhoso tudo quanto em nós fosse pré-marxista? E de que nos valeu esse sacrifício no altar da “atualidade” quando hoje todos temem declarar-se marxistas para não passar por antiquados? O pensamento sempre avançou movido pelo intuito de alcançar a verdade; só o Brasil parece acreditar que o objetivo do pensamento é alcançar a atualidade. Essa mania já não basta para nos colocar em uma posição subalterna e periférica, da qual nenhum “avanço” poderá jamais nos fazer sair? (CARVALHO, 2018, p. 183; os destaques são de Olavo de Carvalho).

 

Essa passagem mereceria muitos comentários, dada suas implicações. Restringiremo-nos, para o que nos interessa nesse capítulo, à observação de que, conforme Olavo de Carvalho, a modernidade iluminista, exatamente por ser materialista, ateia e relativista, não consegue oferecer – e nem gerar – um padrão normativo com caráter objetivo que possa servir de paradigma orientador da justificação comum e, antes de tudo, da própria ação individual. O relativismo moderno não gera universalismo, não o sustenta, não o fomenta e, a rigor, não está sequer comprometido com ele – por isso mesmo, a modernidade é e gera ideologias político-filosóficas várias que têm por consequência o totalitarismo, a violência e a morte. Contra essa modernidade materialista, ateia, relativista e totalitária, nesse sentido, é necessário buscar a verdade objetiva e universal, isto é, é necessário retornar às tradições judaico-cristãs, greco-latinas e renascentistas, posto que é de lá da tradição judaico-cristã e greco-latina até aqui, isto é, o Renascimento, como fusão delas, que temos todo o arcabouço normativo próprio à cultura/civilização ocidental enquanto universalidade (por outro lado, para além do Renascimento, temos a modernidade iluminista, isto é, o fim da verdade, do universalismo, da tradição ocidental). É por isso, aliás, que Olavo de Carvalho fala que o importante é buscar a verdade, e não focar na atualidade. A verdade, aqui, diz respeito a uma remissão ao passado, a uma retomada e a uma cópia do passado, na sua correlação de ontologia e interioridade, de mundo das ideias e fé, de determinação ontológico-religioso-biológica da antropologia/cultura/normatividade. Ademais, essa retomada do passado como civilização ocidental universalista calcada na tradição judaico-cristã, greco-latina e renascentista, enquanto contraponto mais uma vez à modernidade iluminista, materialista, ateia, relativista, ideológica e totalitária, implica, como seu fecho de abóboda, em uma reorientação da ação humana: ela deve deixar de focar na horizontalidade própria ao materialismo, ou seja, na centralidade da história, da política e da ação humana intersubjetiva, e retomar a perspectiva da verticalidade, isto é, da relação direta, pessoal e interior do homem para com Deus e de Deus para com o homem: é necessário sair do âmbito da história, da política e da ação humana e entrar no âmbito da espiritualidade, da graça e da interioridade. Sobre isso, Olavo de Carvalho nos diz:

 

É necessário mudar o eixo das nossas preocupações, e mudá-lo para cima, na direção do universal. Uma cultura inteiramente presa ao “reino deste mundo” nada tem a oferecer ao povo senão lamentações miseráveis e protestos histriônicos (CARVALHO, 2018, p. 139; os destaques são de Olavo de Carvalho).

 

Uma cultura presa ao reino deste mundo – isto é, a modernidade iluminista, materialista, ateia, relativista, ideológica e totalitária – oferece apenas desorientação, desagregação e degeneração, sendo necessário assumir-se de novo os valores universais e imutáveis da perspectiva ontoteológica caudatária da tradição judaico-cristã e da metafísica greco-latina. Olhar e buscar pessoalmente, interiormente, intuitivamente ao absoluto é a solução para esse materialismo histórico-político moderno, que leva ao ateísmo, ao relativismo e, assim, ao totalitarismo, por meio da consolidação das ideologias normativas em detrimento da religião cristã; buscar a Deus, via Jesus Cristo, e não ao homem, via história e política, eis a grande proposta de Olavo de Carvalho contra a modernidade iluminista e “ateia” e contra a democracia multicultural “relativista”. Com isso, resume-se seja a posição de Olavo de Carvalho em relação à crítica a essa modernidade iluminista, seja no que se refere à sua invectiva de que ela, dada sua condição materialista, ateia, relativista e ideológica, gerou totalitarismos vários, os quais foram responsáveis por múltiplos genocídios humanos, seja no tocante à sua defesa de uma recusa da modernidade que aponte para a retomada de uma perspectiva espiritual como solução ao drama humano ante o universo e a eternidade (conflito entre Behemot e Leviatã, necessidade natural e indivíduo, entre exterioridade e interioridade, mediado por Jesus Cristo e em termos de graça divina alcançada por meio da intuição pessoal e direta, do homem para com Deus, de Deus para com o homem), a qual encontra seu fecho de abóboda na busca pelo espírito divino. Quanto ao primeiro ponto, Olavo de Carvalho argumenta:

 

[...] a logomaquia universal que, se não produziu desde a Revolução Francesa nenhum resultado intelectualmente valioso, ao menos elevou de certo modo a um plano superior de existência uns 200 milhões de seres humanos, alçando-os deste baixo mundo para o assento etéreo, já que esse é mais ou menos o número de vítimas das guerras ideológicas dos dois últimos séculos (CARVALHO, 2018, p. 42).

 

Note-se que a modernidade iluminista, na passagem acima exemplificada pela Revolução Francesa, não produziu nenhum resultado intelectualmente valioso, mas, por outro lado, gerou inúmeras guerras ideológicas que custaram a vida de pelo menos duzentas milhões de pessoas, uma vez que abandonou a Verdade absoluta e universal. Perceba-se, ademais, a própria correlação de modernidade e/como logomaquia, o que significa que o abandono da verdade objetiva e universal por parte da modernidade, tal como a interpreta Olavo de Carvalho, implica como consequência na disputa sociopolítica – e epistemológico-normativa, por óbvio – em torno a jogos de palavras vazias, a sistemas filosóficos descomprometidos com essa mesma objetividade, correção e verdade, os quais, por isso mesmo, se transformam apenas em ideologia, manipulação, massificação e violência sectária. Interessantemente, portanto, Olavo de Carvalho acusa a modernidade iluminista de abandono, recusa e deslegitimação da verdade objetiva, entendendo, é claro, por verdade objetiva exatamente uma correlação estranha, contraditória e pouco clara de revelação cristã e interioridade pessoal, de modo que só haveria verdade, universalidade e objetividade no/como Cristianismo e só se poderia acessá-la efetivamente por meio de um adentramento, por parte de cada indivíduo, para o interior de seu espírito e sob a forma de intuição pessoal e direta com o próprio Deus – se trata, como pensamos, em uma incongruência, porque, por um lado, temos a revelação objetiva de Deus via texto bíblico e doutrina canônica sistematizada e institucionalizada (no caso das diferentes tradições religiosas judaico-cristãs), embora, por outro, essa revelação objetiva seja acessada basicamente por interiorização, por intuição direta e, como fecho de abóboda, pela graça divina. Note-se que é essa concepção, no mínimo problemática, que permite a Olavo de Carvalho sustentar tanto que todas as outras posições normativo-filosóficas, menos a sua, são basicamente ideologia quanto que ele (e essa seria a especificidade de sua teoria) consegue descrever a objetividade do mundo e do homem por via da interiorização e apresentá-la a todos por meio de um discurso objetivo vinculante! No que diz respeito a isso, sua intenção como filósofo público consiste exatamente em uma luta encarniçada contra a modernidade iluminista, acusando-a de materialista, ateia, relativista e totalitária, e sua defesa de uma retomada dessa verdade escatológica que representa o drama vivido pelos seres humanos em termos de universo e de eternidade, um drama desde sempre inscrito na história de todos os homens, vale dizer, de cada homem individual. Especialmente ao Brasil, uma nação jovem e ainda imatura em termos culturais e civilizacionais, e profundamente influenciada por esse tipo de modernidade iluminista que descamba no marxismo cultural, Olavo de Carvalho orienta essa sua tarefa de crítica e de esclarecimento contra o Esclarecimento. Sobre essa sua tarefa como intelectual público, ele diz com todas as letras:

 

Tarefa que é, em essência, a de romper o círculo de limitações e constrangimentos que o discurso ideológico tem imposto às inteligências deste país, a de vincular a nossa cultura às correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo, a de fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito da modernidade, imaginando que quatro séculos são a história inteira do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade. Tarefa que é, no seu mais elevado e ambicioso intuito, a de remover os obstáculos mentais que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma inspiração mais forte do espírito divino e possa florescer como um dom magnífico a toda a humanidade (CARVALHO, 2018, p. 33).

 

É necessário pôr fim a essa modernidade materialista, ateia, relativista, totalitária e, portanto, completamente ideológica. É preciso retomar a religião judaico-cristã, o Cristianismo como valor universal, o único capaz de efetivamente assumir, dinamizar e resolver o drama humano frente ao universo e à eternidade, isto é, o conflito entre a necessidade natural-material e o indivíduo angustiado. No mesmo diapasão e por consequência, é preciso decretar o fim da política e da história, que são basicamente ideologia totalitária negadora de Deus, do indivíduo, da espiritualidade, da graça divina: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, não por acaso, resume essa proposta de uma condenação sumária da modernidade ocidental, tanto na ciência quanto na política e na cultura, como um todo enquanto mera ideologia que, hodiernamente travestida de marxismo cultural, quer corromper, manipular e degenerar os valores universais de um passado escatológico e, nesse caso, do indivíduo jogado ao mundo e dependente apenas e tão somente de Deus.

 

Considerações finais

 

Muita coisa pode ser dita destas posições de Olavo de Carvalho, incluindo-se duas muito básicas que certamente exigiriam de seus trabalhos muito mais do que o apelo à crença no Deus judaico-cristão e à aceitação de sua própria voz como a única perspectiva não-ideológica no amplo mar das ideologias geradas pela modernidade iluminista. Saliente-se, nesse sentido, em primeiro lugar, essa sua perspectiva de que a objetividade do mundo e do homem – que ele correlaciona com a escatologia e a teodiceia judaico-cristãs, não por acaso utilizando-se de três figuras bíblicas fundacionais, Behemot, Leviatã e Jesus Cristo – somente pode ser acessada por via da interiorização individual em termos de uma intuição direta e pessoal de Deus. Se isso é verdade, como é possível qualquer discussão intersubjetiva não só dos próprios textos religiosos – posto que é somente por meio deles que temos uma noção objetiva, sistemática e canônica do credo, passível de discussão, justificação, comparação e crítica (afinal, somente sabemos que Deus existe e veio a nós porque existem textos canônicos, sistemas teológicos, instituições religiosas e, assim, doutrina objetiva codificada e interpretada por comunidades clericais autossubsistentes) –, como também das próprias normas, valores, práticas e símbolos que perpassam seja os valores universais da tradição judaico-cristã, greco-latina e renascentista, seja mesmo o materialismo e o relativismo modernos? Como é possível a crítica das ideologias totalitárias modernas apenas por intuição direta e pessoal? Ademais, a discussão da objetividade do próprio credo religioso – nesse caso, do conflito entre Behemot e Leviatã resolvido apenas por Jesus Cristo e em termos de graça divina –, como pode ela ser efetivamente sustentada enquanto objetiva apenas por intuição pessoal direta e imediata, como interiorização espiritual? Esse é o primeiro conjunto de questões que revelam a inconsistência teórica da posição filosófica de Olavo de Carvalho em relação à justificação intersubjetiva; e a consequência de sua posição é exatamente a de que não é possível e de que não há instrumentos para tal discussão objetiva, intersubjetiva: resta-nos esperar que Jesus Cristo venha iluminar cada indivíduo particular de que ele é o caminho, a verdade e a vida, ou seja, resta-nos que ele se mostre e faça milagres para que acreditemos nele, porque outra coisa – isto é, um padrão-paradigma objetivo-intersubjetivo de discussão – já não temos mais (e certamente Olavo de Carvalho não nos pode fornecê-lo com essa sua posição anti-objetiva, anti-estrutural calcada na intuição pessoal, interior, direta, imediada e imediata do indivíduo dilacerado por Behemot e Leviatã).

 

Em segundo lugar, sua compreensão da modernidade iluminista como materialista, relativista, totalitária e ideológica é, no mínimo, extremamente problemática, quando não completamente falsa. A grande crítica de Olavo de Carvalho relativamente à modernidade diz respeito ao fato de que, ao abandonar Deus, ao recusar a metafísica e ao deslegitimar a objetividade da natureza, perdendo, portanto, qualquer base essencialista e naturalizada sobre o mundo, a modernidade também perdeu qualquer base objetiva ou universal para tratar sobre o homem. Não só perdeu essa base estrutural, senão que também passou a substituí-la pelo charlatanismo científico barato, pela manipulação da informação, pela massificação social e pela ideologização da política. Dito de outro modo, a modernidade, na medida em que recusa a objetividade do mundo e do homem em sentido pré-político, pré-cultural e a-histórico, em termos ontoteológicos, na medida em que mata Deus, assume-se como degeneração político-moral e utiliza-se largamente dessa mesma degeneração político-moral para a destruição da vida, da qual o relativismo filosófico (vale-tudo moral), o positivismo científico (fato empírico determinado seja pelas ciências sociais, seja pelas ciências naturais) e os regimes políticos totalitários (revolução macroestrutural, massa, partido, classe social, sistema etc.) são a máxima expressão histórico-prática. Por ter abandonado Deus, por ter recusado a objetividade pré-cultural, pré-política e a-histórica do mundo e do homem, a modernidade perde qualquer base para uma discussão racional sobre si, sobre a universalidade. Por isso, aliás, a acusação, por Olavo de Carvalho, de que o resultado da filosofia e da ciência modernas é a corrupção político-moral ampla, que vai desde a destruição da família, passa pelo pansexualismo e pela utilização de drogas e chega, então, como estamos dizendo, às ideologias políticas totalitárias – situação hoje representada em termos de marxismo cultural. No mesmo diapasão, daqui devém sua proposta de uma retomada dessa perspectiva pré-moderna, antimoderna e antimodernizante caudatária das tradições teológicas judaico-cristãs e da metafísica dualista (Platão) ou monista (Aristóteles) grega, ainda que, em Olavo de Carvalho, essa retomada da perspectiva ontoteológica clássica seja dinamizada pela centralidade da intuição direta e pessoal por parte de cada indivíduo, sem qualquer padrão objetivo de verificação, de prova e de discussão que não a graça divina – uma leitura que nem precisa ser muito atenta da ontoteologia permite uma verificação clara de que sem o método científico e a centralidade institucional não é possível justificação objetiva e discussão e interação racionais, em suma, produção e legitimação da normatividade; o papel da intuição pessoal interiorizada é mínimo. No caso, ainda, somos levados a concluir que, para Olavo de Carvalho, somente uma base essencialista e naturalizada com caráter pré-político, pré-cultural e a-histórico (a qual, entretanto, não sabemos quem nos consegue provar, posto que o acesso à verdade somente é possível pela intuição pessoal e em termos de interiorização espiritual), consiga oferecer uma referência objetiva para a produção conceitual e para a justificação da normatividade, o que também implica em que apenas um fundamento imutável, necessário e absoluto garanta objetividade teórica, coerência discursiva, rigor moral e responsabilização e vinculação subjetivas-intersubjetivas. Ora, essa posição relativamente à modernidade ignora que, exatamente por causa do abandono de fundamentos pré-políticos, pré-culturais e a-históricos, isto é, de uma base essencialista e naturalizada da antropologia-cultura-normatividade, a necessidade de discussão e de justificação racionais se tornam absolutamente inultrapassáveis para a modernidade filosófica, sem qualquer outro substitutivo que não exatamente mais e mais discussão e justificação racionais – aqui, qualquer apelo ao charlatanismo, à massificação e à mistificação das massas está de antemão excluído como princípio de justificação e sequer se coaduna com intuição e interiorização imediadas e imediatas, mas com argumentação, contra-argumentação, prova e contraprova, com objetividade epistemológico-moral, diferenciação de esferas de valor e com falibilismo científico-político. Com efeito, poder-se-ia até inverter o argumento de Olavo de Carvalho: não é o relativismo que leva ao ocaso da justificação racional e do comprometimento com a fundamentação objetiva-intersubjetiva da normatividade, mas exatamente seja o dogmatismo religioso e a ossificação ontológica, que deslegitima a pluralização e a descentração epistêmico-política, que subsume a política, a cultura e a história em uma grade de férreo da imutabilidade, da identidade plena e da reprodução direta entre teologia-biologia-espírito e política-cultura-antropologia-matéria, seja, ainda mais, a perspectiva de um individualismo metodológico estrito como intuição pessoal direta, interior, imediata e imediada à verdade, o qual impede a constituição intersubjetiva-objetiva de parâmetros de justificação que possam ser discutidos, criticados e revistos tanto pelas comunidades científicas quanto pelos cidadãos. É por isso, aliás, que Olavo de Carvalho, na definição da sua lógica universal da condição humana como conflito entre Behemot e Leviatã mediada pela intervenção de Jesus Cristo, tem de afirmar que a salvação última não depende do homem, mas da graça divina, ou seja, de que no fim das contas não há qualquer possibilidade de justificação racional última sobre nosso drama humano no universo e na eternidade, de que não há nenhuma possibilidade de controle epistêmico-político objetivo-intersubjetivo da dinâmica de constituição e de orientação humanas ao longo do tempo – temos de recorrer a Deus e à graça divina como orientação primeira e última, e somente podemos confiar em nossa intuição interna, em nossa interioridade, em nossa espiritualidade. Note-se, assim, que é muito mais provável que o desânimo, o desespero e a violência totalitárias provenham seja dessa condição pré-política, pré-cultural e a-histórica da normatividade, ossificada em uma posição antipolítica absoluta que somente pode ser acessada pelos iluminados, por eles interpretada e aplicada exclusivamente, à qual tudo e todos estão subordinados e subsumidos ferreamente, seja dessa centralidade da intuição pessoal, interior, imediata e imediada para o acesso à verdade, situação que não permite comprovação objetiva, discussão racional e justificação razoável, favorecendo, assim, exatamente o charlatanismo, a massificação e a manipulação das massas. Por isso mesmo, faria muito bem a Olavo de Carvalho ler – não dizemos ler bem, mas pelo menos ler com fidelidade e honestidade intelectual – exatamente filosofia moderna e contemporânea, a fim de perceber que o multiculturalismo, a racionalização sociocultural e a queda das fundamentações metafísico-teológicas de mundo, ou seja, a recusa de uma justificação biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade, a recusa de fundamentos pré-políticos, pré-culturais e a-históricos da sociedade, da cultura e da política, agudizam a sensibilidade moral, a moderação política e a necessidade de fundamentos normativos sólidos que somente podem ser construídos com ampliação da comunidade moral, moderação, enfraquecimento e abandono de bases dogmático-fundamentalistas e, assim, alargamento dos processos de reconhecimento, inclusão, integração e participação, inclusive com cada vez mais deliberações racionais, baseadas em prova e contraprova e sempre demarcadas por falibilismo. Dito de outro modo, não é a modernidade que, como quer Olavo de Carvalho, ganha no grito sobre o que é e o que não é objetivo, mas essa perspectiva antimoderna da intuição pessoal interior e direta de Deus que já não possui nenhum parâmetro objetivo capaz de escorar-se e, na verdade, que não consegue fundar nenhum parâmetro objetivo de avaliação e nenhum quadro normativo sistemático que não o grito e a visão do espírito, que não consegue oferecer nenhuma solução teórico-prática que não a graça divina derramada somente sobre aqueles que buscam o Senhor no alto de seu trono.

 

Importante lembrar, após estas considerações, que nos interessa entender, nesse texto, por que Olavo de Carvalho recusa a luta do movimento negro por reparação normativo-política pelo colonialismo-escravidão-racismo e por que, finalmente, ele assume seja a inferioridade das tradições culturais negro-africanas quando comparadas aos valores universais da cultura/civilização ocidental enquanto conjugação da tradição judaico-cristã, da metafísica greco-latina e da filosofia renascentista, seja a inexistência de contribuição cultural efetiva dos povos negros para a civilização ocidental. Como vimos no primeiro e no segundo capítulos, Olavo de Carvalho recusa a práxis reparatória defendida pelo movimento negro em relação ao colonialismo-escravidão-racismo por dois motivos. Primeiramente, porque todos os povos são criminosos em alguma medida e, portanto, não têm nada a cobrar uns dos outros – como todos cometem crimes, todos são criminosos e não podem de modo idôneo e escorreito exigir reparação por crimes cometidos pelos outros, uma vez que eles mesmos (os que exigem reparação) cometeram crimes similares, às vezes por mais tempo, primeiro que os outros e em uma maior intensidade. Assim é que os negros africanos uma vez governaram o Egito e escravizaram por mais de mil anos aos povos semitas, entre eles árabes e judeus. Logo, não podem exigir reparação pela escravidão que sofreram depois de toda a colonização, escravização e instrumentalização que cometeram àqueles que, posteriormente, fariam o mesmo que eles, só que agora com eles. Ademais, como também vimos especialmente na primeira parte, essa tendência de opressão e violência mútuas faz parte da constituição de todos os povos ao longo do tempo e, na verdade, além de revelar uma tendência humana básica do conflito entre Behemot e Leviatã, aponta para o fato de que uma civilização somente pode ser conquistada quando é fraca culturalmente e quando está em desestruturação e degeneração em termos político-morais. Assim, aliado ao fato de que negros escravizaram árabes e judeus quando foram faraós do Egito, o que já revelaria uma contradição teórica e uma má-fé moral seletivas contra os brancos, tem-se a própria questão de que eles foram colonizados, dominados e escravizados porque estavam em decadência cultural, enfraquecidos como civilização, desestruturados social e politicamente. E por que estavam nessa condição de crise civilizacional? Por causa de suas tradições religiosas mágico-animistas tribalizadas, que os condenavam ao bizarro, à regressão e à ossificação. A colonização europeia-branca foi somente um adendo, um ponto superficial em uma realidade de desestruturação, degeneração e apagamento cultural-civilizacional vivido pelo povo negro por causa de seus próprios déficits antropológicos, em particular de suas tradições religiosas. Se por um lado negros também foram senhores de escravos – entre si, dos árabes e dos judeus –, por outro é importante considerar-se que a culpa pela escravidão é dos próprios negros e de sua cultura decadente, e não dos brancos europeus, os quais conseguiram sua supremacia por causa de sua cultura superior. Desse modo, não há qualquer reparação a ser paga e a crítica aos brancos é pura e simplesmente seletiva, incongruente e acrítica.

 

Em segundo lugar, pudemos perceber que Olavo de Carvalho, ao negar a responsabilização social-institucional na exata medida em que recusa a determinação social, institucional, macroestrutrual da subjetividade, do lugar sociopolítico do indivíduo, reduz toda a dinâmica humana à ação e ao protagonismo individuais. Não existe a sociedade enquanto macroestrutura ou macrodinâmica se sobrepondo, subsumindo e determinando de modo férreo ao indivíduo. A culpa pelo que somos é nossa, como indivíduos, não da sociedade enquanto macroestrutura: não existe a sociedade como macroestrutura totalizante, não existe as instituições enquanto sistemas objetivos que determinam socialização e subjetivação de modo último e, finalmente, não existe a classe social, o partido político, a massa amorfa que subsumam e anulem os indivíduos. Estes indivíduos, cada um dos indivíduos, não podem explicar seu fracasso ou seus méritos por causa de supostas condições objetivas, mas por seu protagonismo ou pela falta dele. Assim é que Olavo de Carvalho nega a política, a história e a ação humana intersubjetiva e afirma, como vimos, a centralidade do indivíduo, de Deus e da graça divina, reduzindo a busca pela verdade a uma cruzada pessoal em termos de interiorização como intuição direta, imediata e imediada do indivíduo para com Deus. Portanto, nesse caso, o movimento negro não pode exigir reparação pela sua condição de miséria, de exclusão e de desigualdade contemporânea porque cada indivíduo negro faz parte de uma sociedade que aboliu a escravidão e que equalizou a todos há mais de cem anos, tendo tempo e condições suficientes para se desenvolver e modificar sua situação pessoal. Se não conseguiram, isso mais uma vez não se deve à herança colonial, escravocrata e racista, mas à sua incapacidade pessoal. O indivíduo é o único responsável por seus atos e responde por eles diretamente a Deus e frente aos demais; a política, a história e a ação humana intersubjetiva são o lugar do materialismo, do relativismo, do ateísmo e, assim, das ideologias totalitárias.

 

Em terceiro lugar, temos a posição de Olavo de Carvalho em relação ao (não) lugar das tradições negro-africanas na cultura/civilização ocidental e, nesse caso, seja a ideia de que não houve contribuição cultural negro-africana à cultura/civilização ocidental, seja de que essa mesma civilização ocidental é universal, o que nos leva a concluir que as tradições negro-africanas são particulares, meramente contextuais. No que diz respeito a isso, é importante, antes de tudo, esclarecer que aquilo que Olavo de Carvalho entende por cultura/civilização ocidental diz respeito à conjunção da tradição ontoteológica judaico-cristã (incluindo-se, aqui, a filosofia-teologia medieval), da metafísica greco-latina e, como síntese desses momentos, do Renascimento. Note-se, portanto, que o que interessa a Olavo de Carvalho, na sua definição da cultura/civilização ocidental é a universalidade da ontoteologia e, nesse caso, universalidade significa seja a perspectiva da escatologia cristã, representada de modo último pela revelação na correlação do Antigo e do Novo Testamentos, seja a ideia filosófica de determinação da antropologia/cultura/normatividade pela religião/biologia, pela centralidade de fundamentos essencialistas e naturalizados com caráter pré-político, pré-cultural e a-histórico sobre a história, a cultura, a política, a sociedade. Nessa concepção, por isso mesmo, não só não entram as tradições negro-africanas, inferiores à ontoteologia, como também sequer tem lugar a modernidade iluminista materialista, relativista, ateia, ideológica e totalitária. Note-se, assim, que a ontoteologia é associada por Olavo de Carvalho diretamente ao espiritualismo, correlacionada, ademais, tanto com essa perspectiva de um intuicionismo epistêmico altamente individualista que, pela sua impotência, necessita permanentemente da graça divina representada e doada por Jesus Cristo quanto com essa ideia de determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade. Daqui devém, aliás, a sua perspectiva dualista-maniqueísta de que só não é ideologia a ontoteologia e, nesse caso, a escatologia e a teodiceia judaico-cristãs, de que só não é ideologia o indivíduo e sua intuição direta, imediata, imediada, interiorizada e altamente pessoal da verdade, isto é, de Deus; e de que, então, todo o materialismo, toda a história, toda a política e toda ação intersubjetiva são apenas ideologias que negam a centralidade do indivíduo, que recusam o protagonismo do espírito e da graça, que deslegitimam a Deus e que buscam a manipulação e a massificação acima de tudo e contra a Verdade absoluta. Só a religião cristã e o indivíduo são bons; toda e qualquer forma política e histórica, sempre materialistas, são más, levam ao totalitarismo. Por isso mesmo, os verdadeiros valores universais são os valores do espírito, isto é, a condição religioso-biológica do homem e, então, a intuição individual, pessoal e direta do homem para com Deus. Todas as tradições culturais, filosóficas e políticas que destoam do arcabouço ontoteológico e que negam a centralidade seja do indivíduo de carne e osso, seja do espiritualismo, estão fora da universalidade, fora da cultura/civilização ocidental, sendo esse o caso dos povos negros e da própria modernidade iluminista.

 

Não é mero acaso que esta posição filosófica extremamente mal construída – e apresentamos os motivos ao longo do texto: contradição epistêmica, ausência de critérios paradigmáticos, subjetivismo estrito, intuicionismo privatista, dualismo-maniqueísmo antropológico, fundamentalismo-dogmatismo religioso, postura anti-objetiva e anti-estrutural em termos de justificação, imprecisão histórico-teórica – gere, no âmbito ético-político, uma atuação antimoderna e antimodernizante que vai desde a recusa das minorias político-culturais, do Estado democrático de direito, dos direitos humanos e da discussão racional objetiva, cientificamente regulada, passa pela defesa do fundamentalismo e do dogmatismo religiosos como critério público-institucional e chega exatamente ao autoritarismo e ao fascismo institucionais, sintetizado pelas máximas modelares do bolsonarismo hegemônico institucional e culturalmente: “E ‘conhecereis’ (intuitivamente, interiormente, através da Revelação) a Verdade e a Verdade vos libertará”; e “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A consequência da postura de Olavo de Carvalho é exatamente a cegueira para a diversidade, a recusa da pluralização epistêmica, a negação da discussão racional-científica e, assim, a imoderação, a insensibilidade e o fechamento institucionais para a necessária reflexividade, criticidade e transformação das estruturas sociais, especialmente no que se refere às consequências de uma modernização conservadora altamente racista e autoritária; a consequência da posição anti-objetiva e anticientífica de Olavo de Carvalho é a deslegitimação completa da discussão racional intersubjetiva, mediada cientificamente, como a base de produção da objetividade epistemológico-moral. Assim, ao reduzir todos os outros de si à mera ideologia totalitária, ao relativismo degenerado, à imoralidade absoluta e à massificação inescrupulosa, fazendo-o exatamente através da falta de honestidade intelectual e da deturpação teórica dos adversários, inclusive em termos de utilização acrítica dessa correlação de escatologia judaico-cristã e de intuicionismo espiritualista, Olavo de Carvalho nos mostra que a regressão antimoderna é, de fato, o grande vórtice e a verdadeira fábrica das ideologias totalitárias e do vale-tudo moral a fim de se garantir a hegemonia da extrema-direita. Termos ignorado durante tanto tempo esse tipo de postura teórico-política – deslegitimando-a por meio de um mero movimento de ombros e um sorriso de canto da boca: “É Olavo de Carvalho, não é sério!” – revela um erro crasso da academia brasileira que é pago com a consolidação do obscurantismo seja no âmbito cultural, seja no âmbito institucional. Daí que, conforme pensamos, desconstruir essas posições deva ser um dos objetivos mais básicos da ciência, nos seus diversos ramos, até porque o negacionismo científico, a postura anti-objetiva e irracional (no sentido de subjetivismo privatista e de interioridade espiritualista, destituídos de parâmetros objetivos-intersubjetivos de discussão e de justificação), o fascismo político e o conservadorismo moral-religioso-cultural, imbricados, ameaçam em cheio com a estabilidade de nossa democracia pluralista e universalista constituída como um sistema público de direito e, nesse caso, atacam a ciência, a política e as diferenças em bloco, como mera ideologia, como mera degeneração e como suprema deturpação dos valores universalistas da tradição ontoteológica que, paradoxalmente, somente podem ser alcançados por intuição espiritualista do indivíduo em sua interioridade e em diálogo direto com Deus, obviamente auxiliado pela graça de Jesus Cristo. Em outras palavras, tal posição equivale à negação em bloco e geral de todos os que não compartilham de sua posição, taxados como ideologia política totalitária, levando à recusa em bloco e geral da discussão racional, cientificamente fundada e politicamente equalizada. Ora, as consequências de tal postura “teórico-política”, uma vez hegemônica institucional e culturalmente, são as mais graves possíveis e podem ser sintetizadas na regressão antimoderna e antimodernizante sob a forma de negacionismo científico, deslegitimação da práxis política, imobilização das instituições públicas em seu papel organizador e gerenciador da sociedade e, finalmente, recusa da desnaturalização, da historicização e da politização da sociedade-cultura-consciência, colocando a antropologia/cultura/normatividade como ramificação da religião/biologia.

 

Referências

 

CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018.

 

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

 

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

 

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008.

 

MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Luanda: Edições Mulemba, 2014a.

 

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014b.

 

MEMMI, Aimé. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

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