A
seleção feminina suprema da literatura brasileira de todos os tempos
EM BULA
CONTEÚDO
19/09/2025
-
Chamar
de seleção não resolve o enigma, apenas o distribui no gramado. O 4-3-3 serve à
leitura porque coloca frente a frente linhas de força e camadas de época. Na
meta, a guardiã do idioma protege o intervalo entre voz e silêncio; a zaga mede
o passo e recusa escuro gratuito; as laterais dão largura às tradições, criam
corredores para o presente; o meio sustenta ético e invenção, oferece o passe
que pensa; o ataque convoca risco e conclui com imagens que duram. O desenho
tático não é adereço, é forma de ordenar memória.
A
escalação nasceu de critérios que não cabem em cartaz: representatividade real,
relevância histórica, qualidade estética comprovada na resistência do tempo e
na atenção de quem lê. A equipe atravessa fases inteiras da literatura
brasileira, e nenhuma data fica perdida na poeira. Há o século dezenove
discutindo cativeiro, liberdade e instrução. Há modernismos afinando sintaxes,
líricas que encontram cadência sem dissolver sentido. Há contos urbanos que
aprenderam a respirar sob vigilância e prosas que atravessaram fronteiras
atlânticas, carregando migrações, família, mitos visitados outra vez. Em cada posição,
um período reivindica seu lugar sem pedir favor.
O
cânone, dito assim, parece pedra; aqui se movimenta. O campo registra disputas
de leitura, silenciamentos, reedições tardias, prêmios que confirmaram o que
leitores já sabiam, recepções que trocaram de direção ao longo de décadas. A
seleção não empresta uniforme a unanimidades. Prefere a negociação exigente
entre história, linguagem e alcance. A cada toque, o passado entrega a bola ao
presente sem medo de vê-la avançar.
Para
arbitrar escolhas, três nomes se aproximaram do gramado com paciência de quem
lê antes de listar. Os escritores Solemar Oliveira e Ademir Luiz, e o editor da
Revista Bula, o jornalista Carlos Willian Leite, cruzaram calendários, ouviram
bibliotecas, testaram alinhamentos possíveis. Não buscaram efeito de manchete;
procuraram respeito ao percurso e pulso de frase. A lista final não pretende
encerrar debates, propõe um modo de vê-los com nitidez.
Encerrada
a rodada, os nomes repousam na prateleira com o sal do suor seco. As linhas do
4-3-3 ficam sob a capa fechada, prontas para o próximo deslocamento. A mão que
apaga o abajur ainda sente a textura do papel; do lado de dentro, a língua
treina finalizações em silêncio.
Seleção
Feminina
Cecília
Meireles (1901–1964) — goleira
Cecília
Meireles ocupa a meta com uma serenidade que não pede prova, apenas
consistência. Poeta, cronista e educadora, trabalhou o idioma em direção a uma
nitidez que suporta complexidade. Em “Viagem” e “Mar Absoluto e Outros Poemas”,
a linha é clara, o verso mede o fôlego, a imagem se assenta sem espalhafato; a
cadência organiza a percepção e dá lugar ao pensamento atento. No grande arco
de “Romanceiro da Inconfidência”, documentos e vozes compõem uma memória
cantada do país, história que volta a respirar dentro do canto. A atuação em
programas de leitura e o estudo de folclore afinam um timbre que dialoga com a
escola sem didatismo e com o público independente sem concessão. Em campo, essa
guardiã recolhe apenas o que importa, distribui curto e preciso, evita o salto
ornamentado que compromete o placar; o jogo recomeça desde a área com uma calma
que não esfria, estrutura. Sua obra oferece um convívio entre ética e forma,
entre escuta e invenção, lembrando que a precisão sonora não expulsa a emoção,
antes a hospeda. A cada retorno, a língua parece recém-lavada, o país novamente
inteligível. No vestiário do idioma, deixa as luvas secando; a manhã seguinte
já tem outra defesa a fazer.
Rachel
de Queiroz (1910–2003) — zagueira central, direita.
Rachel
de Queiroz ergue a defesa com frase enxuta e atenção obstinada ao que pesa no
chão. Cearense, estreou jovem com “O Quinze”, romance que registra a seca de
1915 sem atalho sentimental; um balde vazio no terreiro diz mais que discursos,
e a cena não pede lamento para continuar verdadeira. Em “As Três Marias” e
“Memorial de Maria Moura”, personagens enfrentam tradição e poder; a emoção
conserva temperatura controlada. A passagem pelo jornal e a intervenção pública
dão lastro às ficções, que não se desligam do debate, apenas o transformam em
narrativa de alta tensão. Sua eleição para a Academia Brasileira de Letras
marcou mudança de escala institucional e confirmou a autoridade de uma voz que
não recua do real. Em campo, antecipa, posiciona, desarma sem estardalhaço; na
página, fecha espaço para retórica e abre corredor para a compreensão do país.
O Nordeste deixa de ser cenário decorativo para tornar-se trama de relações e
consequências. O tempo passa e os livros seguem operacionais porque mantêm um
pacto de lucidez. Cada capítulo parece decidido por alguém que viu a jogada
antes do adversário. A linha se mantém, a bola sai limpa, e quem lê confia na
solidez de quem não perde o eixo.
Lygia
Fagundes Telles (1923–2022) — zagueira central, esquerda
Lygia
Fagundes Telles guarda a área pela inteligência de ângulo, pelo domínio do não
dito. Em contos e romances, transforma hesitação e desejo em campo dramático,
onde a cidade lateja sob superfícies calmas. “Antes do Baile Verde”, “Ciranda
de Pedra” e “As Meninas” articulam intimidade e pressão histórica; amizades,
famílias, amores e rupturas compõem um mosaico em que a escolha privada encosta
em estruturas de poder. Em “Seminário dos Ratos”, a alegoria trabalha com
precisão fria o absurdo burocrático. Jurista de formação e presença ativa em
instituições culturais, reuniu prêmios e formou quem lê conto com atenção. Na
imagem do jogo: posiciona. Atrai o erro. Intercepta no momento em que a bola
perde o equilíbrio. A frase opera com economia; a pausa sustenta o peso do
gesto. O leitor avança entre sinais e sombras, recompensado por uma atenção que
a autora exige e oferece. A tradição do conto brasileiro encontra nela rigor e
temperatura. Cada texto impõe uma ética da observação, com emoção e raciocínio
lado a lado. Atrás, o time sabe que há alguém que lê a partida por inteiro; à
frente, a construção se beneficia dessa serenidade tática. Lygia fixa a defesa
sem rigidez, firme o suficiente para que o ataque exista.
Marina
Colasanti (1937–2025) — lateral-direita
Marina
Colasanti dá largura ao campo e clareza ao cruzamento. Escritora de ampla
circulação entre gêneros, desenhou um território em que o fabuloso toca o
cotidiano sem moral pronta. Em “Uma Ideia Toda Azul” (1979) e “A Moça Tecelã”
(1994), a fábula reencontra o leitor contemporâneo por frases que escondem uma
engenharia de ritmo e imagem; nada se impõe, tudo se oferece. Em “Eu Sei, mas
Não Devia”, a crônica observa o ângulo doméstico e a esquina urbana, devolvendo
pequenas iluminações que reorganizam o dia. A vida entre países afina a escuta
para deslocamentos e pertencimentos, e o trabalho como ilustradora e editora
pensa o livro como ponte pedagógica e objeto estético. No corredor direito, a
jogadora sobe no tempo certo, triangula tradição oral e invenção medida, põe a
bola na área com precisão. O feminino aparece sem proclama; a ética do cuidado
reside na escolha imagética e na montagem. Quem lê, de idades distintas,
encontra passagem segura entre escola e biblioteca, jornal e sala de casa. O
texto parece simples até a releitura; então se revela o projeto que sustenta a
leveza. Marina mantém o time respirando por amplitude e qualidade de passe,
lembrando que clareza também pode ser risco bem-sucedido.
Ana
Maria Machado (1941) — lateral-esquerda
Ana
Maria Machado abre a esquerda com inteligência pedagógica e invenção
disciplinada. Escritora, jornalista, professora, ex-presidente da Academia
Brasileira de Letras, construiu uma obra que atravessa literatura para crianças
e jovens, ensaio e crônica, sempre atenta à circulação social do livro. Em
“Bisa Bia, Bisa Bel” e “Menina Bonita do Laço de Fita”, família, identidade e
diversidade ganham tratamento que conjuga humor e precisão, criando espaço de
conversa entre gerações. Em livros reflexivos, examina escola, mediação e
acesso, aproximando políticas de leitura e prazer estético sem paternalismo. Na
lateral, progride em linhas claras, aproxima o lúdico da análise, chega à linha
de fundo e cruza para quem chega em condição de decidir. Projeto gráfico e texto
atuam juntos, ampliando alcance em bibliotecas comunitárias e salas de aula; a
prática de leitura se torna partilha. A prosa não perde a ambição enquanto
amplia a porta de entrada. O time ganha campo quando ela acelera, porque a
jogada alonga a defesa adversária e cria superioridade em zona perigosa. A
permanência está nessa capacidade de conciliar imaginação e responsabilidade
cultural. Ana trabalha para que o público exista, e depois para que se
reconheça no que lê, com alegria e rigor.
Cora
Coralina (1889–1985) — volante, direita
Cora
Coralina protege a entrada da área com discrição firme. Goiana, doceira de
ofício, publicou tarde e trouxe para a poesia a autoridade de quem anotou vida
miúda sem pressa. Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais” e “Vintém de
Cobre, Meias Confissões de Aninha”, aparecem o trabalho manual, as mulheres que
seguram casas e ruas, a vizinhança que compõe memória. O vocabulário é limpo, o
ritmo, de conversa à porta; a imagem, certeira. Na posição de volante, Cora recupera
e entrega; a bola corre pelo passe curto e correto, que acelera o time. A
poesia conversa com a escola sem ceder à moral pronta, preserva a dignidade da
experiência e de quem lê. A cidade antiga não vira moldura de saudade, vira
trama de relações; o país pequeno revela grandeza operante: a colher de cobre
no tacho, a janela torta, o cheiro de rapadura preso ao avental, o bilhete na
geladeira. Ao virar a página, reconhecimento e descoberta caminham juntos.
Quando a partida confunde, Cora reorganiza o centro, fecha espaços, lança a
construção seguinte. A permanência nasce desse compromisso com o essencial, que
sustenta a jogada coletiva e devolve à palavra seu ofício de nomear.
Maria
Firmina dos Reis (1822–1917) — volante, esquerda
Maria
Firmina dos Reis dá rumo ao meio-campo com direção ética e invenção histórica.
Mulher negra, maranhense, pioneira do abolicionismo literário, escreveu
“Úrsula” em 1859 e deslocou o romance brasileiro ao conceder interioridade a
personagens escravizados; o gesto muda o foco e reclama outra leitura do país.
Em “Gupeva” e no conto “A Escrava”, o eixo permanece, com atenção à educação, à
instrução feminina e a uma escola de acesso amplo. A dicção romântica abriga
tensões que apontam para o século seguinte, prova de que a forma tradicional
pode carregar força renovadora. Em campo, a volante intercepta discursos,
desmonta eufemismos, carrega a jogada para a metade adversária com passe limpo.
A redescoberta de sua obra, do século vinte em diante, reordena o cânone e
reposiciona autorias negras, abrindo horizontes de leitura e pesquisa. Ao
contemporâneo, Maria Firmina oferece responsabilidade e imaginação aliadas,
lembrando que liberdade narrativa e liberdade civil caminham em conjunto. Cada
capítulo reconfigura o mapa de poder, restitui nome e voz, altera a circulação
do sentido. O time ganha estabilidade e plano; a literatura, musculatura moral
sem retórica. O jogo inteiro muda quando a bola passa por seus pés.
Clarice
Lispector (1920–1977) — meia ofensiva.
Clarice
Lispector arma por dentro e altera a geometria do campo. Escritora de romances,
contos, crônica e livros para crianças, construiu um laboratório de consciência
em que pensamento, sensação e frase trabalham em tensão concentrada. “Perto do
Coração Selvagem”, “Laços de Família” e “A Hora da Estrela” redesenham modos de
narrar; a personagem percebe por cortes, o mundo devolve janelas inesperadas.
Em “Água Viva” e em passagens de “O Lustre”, a linguagem busca o instante com
rigor, desloca o eixo e abre corredor, lança a bola onde ninguém esperava. O
político aparece na reinvenção do olhar, quando o cotidiano deixa de operar no
automático. As colunas e entrevistas ampliam o pacto com públicos diversos,
mantendo enigma sem fechar o acesso. Na meia, Clarice oferece o passe vertical
que liga defesa e ataque, arrisca sem perder controle, acelera sem perder
precisão. O time respira outra densidade quando a jogada passa por ela. A cada
livro, instala-se uma ética da atenção, que desacelera, reposiciona e acende
novas perguntas. Não há efeito fácil; há pressão de pensamento e uma música
interna que não se dissolve. A permanência está em devolver ao idioma a
voltagem do espanto, e a quem lê, a responsabilidade de estar vivo.
Adélia
Prado (1935) — ponta esquerda.
Adélia
Prado acelera pela esquerda com alegria grave e frase que guarda calor. Poeta e
prosadora, professora de filosofia, estrearam com “Bagagem” e consolidou uma
obra em que casa, corpo e fé convivem sem hierarquias. Em “O Coração
Disparado”, a rua e a cozinha compartilham a mesma luz; a metáfora nasce do
armário, o desejo encontra o tempo da panela, a oração não afasta a cidade. Em
prosa, os temas se deslocam com leveza e precisão, mantendo atenção à fala de
gente comum. Em salas de aula, seus textos abrem conversas sobre gênero,
espiritualidade e ética sem catecismos. Na ponta, Adélia recebe em velocidade,
corta para dentro, finaliza com imagens que ficam; a simplicidade aparente
carrega desenho rigoroso. A leitura oferece reconhecimento e surpresa: quem lê
vê a própria vida e, ao mesmo tempo, outra possibilidade de olhá-la. No fecho,
uma cena mínima costuma iluminar tudo: a chaleira apita, alguém apaga a luz da
sala, a cidade continua. O time ganha ar quando ela estica a defesa adversária
e encontra o canto. A permanência não precisa de slogan; basta a confiança em
dizer perto, sem elevar a voz, lembrando que o sagrado também frequenta a
calçada.
Hilda
Hilst (1930–2004) — ponta direita.
Hilda
Hilst ataca pela direita com coragem verbal e invenção de formas que desafiam
acomodações. Dramaturga, poeta, prosadora, ergueu na Casa do Sol um espaço de
trabalho contínuo onde erotismo, reflexão e ironia convivem em alta
temperatura. Em “A Obscena Senhora D” e “Cartas de um Sedutor”, a voz se
retorce para testar limites; em “Do Desejo” e “Cantares de Perda e Predileção”,
a poesia leva o idioma ao extremo do fôlego. A recepção, antes circunscrita,
expandiu-se, e universidades e escolas reconheceram a potência crítica desse
percurso. Na beira do campo, Hilda acelera, para, muda o compasso, provoca
desequilíbrios que confundem a marcação. O leitor aprende outra recepção, menos
confortável e mais verdadeira. O objetivo não é escandalizar; é conhecer por
dentro e por extremo, até que reste apenas o necessário. A rotina na Casa do
Sol, com páginas, cães, visitas, trabalho, entrou na obra sem virar moldura.
Quando acerta o cruzamento, a área se abre; quando finaliza, a noite muda de
peso. A memória literária brasileira cresce com ela, porque a linguagem
descobre nervos que não conhecia e o time ganha um flanco imprevisível,
rigoroso, fiel à própria intensidade.
Nélida
Piñon (1937–2022) — centroavante.
Nélida
Piñon conduz a narrativa de costas para o gol, protege, gira, conclui com
potência simbólica. Carioca de origem galega, presidiu a Academia Brasileira de
Letras e construiu romances que pensam pertencimentos, migrações, genealogias e
transmissão de histórias. Em “A República dos Sonhos”, vozes familiares e
deslocamentos atravessam décadas; em “A Casa da Paixão” e “A Doce Canção de
Caetana”, desejo e poder se tocam em alta temperatura; em “Vozes do Deserto”, a
tradição de “As Mil e Uma Noites” torna-se território para discutir autoria e
circulação. A prosa pensa o simbólico sem perder calor de voz, e ensaios e
entrevistas defendem o livro como casa hospitaleira. No ataque, Nélida faz pivô
e cria jogo para as extremas, retém o tempo necessário, gira no instante justo
e finaliza. Quem lê encontra comunidade nessa roda de relatos que não se desfaz
com o apito; a literatura recupera sua vocação de reunião. A travessia entre
Brasil e Galícia dá à escrita uma espessura atlântica, feita de mar e mesa, de
nomes chamados de volta. Quando a bola entra, alguém na cozinha chama um nome
antigo, e a história volta para a mesa.
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