JUDICIÁRIO DECADÊNCIA
J.R. Guzzo
(Estadão, 30/10/2024)
“O Supremo Tribunal Federal do Brasil tornou-se a única
corte de Justiça do mundo que legalizou, juridicamente, a corrupção. Não há
países que legalizaram o consumo de maconha, por exemplo, ou a eutanásia? Pois
então: o STF, sobretudo através da obra doutrinária e da sólida jurisprudência
que foram criadas pelos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, tornou a
corrupção uma atividade lícita em todo o território nacional. É a maior
contribuição que os juristas brasileiros já deram à Ciência do Direito mundial.
O STF e as esquadras de vigilantes que operam em sua defesa
sustentam que essa e outras constatações factuais (ou “fáticas”, como dizem em
seu patuá) a respeito da sua conduta são um “ataque ao Poder Judiciário”. Fazem
parte de uma grande articulação “antidemocrática” da extrema direita para dar
um golpe de Estado no Brasil e abolir o regime democrático “de direito” —
possivelmente em favor de uma ditadura de Jair Bolsonaro e em obediência a
instruções das mesmas CIA e FBI que criaram a Operação Lava Jato para
“prejudicar a Petrobras” e agredir a “soberania nacional”. É uma alucinação.
Mas é isso o que dizem.
Não se trata, já há muito tempo, de expor com provas
físicas, e à luz do sol, a militância aberta e implacável do STF em favor da
ladroagem e dos ladrões. Chegamos, agora, à fase de bater os últimos pregos do
caixão. O ministro Gilmar Mendes, depois de tudo o que fizeram, foi capaz de
anular todas as provas de corrupção contra o ideólogo-chefe do PT, José Dirceu
— preso não menos que três vezes, em ocasiões e por gatunagens diferentes. Na
verdade, Gilmar Mendes “confirmou o apronto”, como se dizia antigamente no
turfe. Apenas repetiu o que eles fazem sistematicamente; o estranho seria agir
de outra maneira.
A anistia particular do ministro para Dirceu é o Everest na
histórica escalada do STF para a sua posição atual de Vara Nacional de
Assistência à Corrupção e aos Corruptos. É muito simples. O Brasil é um dos
países mais corruptos do mundo, segundo os rankings de todas as organizações
mundiais sérias que medem índices de corrupção — digamos, uma espécie de
S&P ou Moody’s da roubalheira. Mas não há um único preso por corrupção em
todo o sistema penitenciário do Brasil. Como é possível um fenômeno desses?
Resposta: por causa do STF. A regra é clara. Você roubou? Então vá ao Supremo
que lá eles resolvem o seu problema.
Não falharam nenhuma vez, até hoje — desde, é claro, que o
ladrão conte com a bênção do “campo progressista”. Não existem casos
impossíveis ali. O ex-governador Sérgio Cabral, por exemplo: foi condenado por
corrupção confessa, e com excesso de provas, a 400 anos de cadeia. O STF mandou
soltar. O presidente Lula, padroeiro de todos eles, foi condenado em três
instâncias sucessivas e por nove juízes diferentes por corrupção passiva e
lavagem de dinheiro. O ministro Edson Fachin mandou soltar.
Os empresários da Odebrecht e da J&F roubaram,
confessaram e aceitaram pagar cerca de R$ 20 bilhões, por aí, para sair do
xadrez. O ministro Dias Toffoli mandou devolver o dinheiro — de forma que eles
nem ficaram presos e nem pagaram um tostão. Gilmar Mendes mandou soltar três
vezes seguidas um acusado de corrupção no Rio de Janeiro; o homem é pai da
afilhada de casamento do ministro. A lista não acaba mais. O STF pede,
simplesmente, que você acredite no seguinte: todos os acusados de corrupção
neste país são inocentes, sem exceção.
Ninguém rouba no Brasil. É tudo mentira.
Na ótica do STF, na verdade, o caso contra Dirceu era uma
injustiça a ser corrigida: se liberou geral para todo mundo, por que não para
ele? É nesse nível, hoje, que está a nossa ciência jurídica. É um caldo ruim,
que deixa uma pergunta ruim: como é possível respeitar um tribunal de Justiça
que se transformou, pelo que demonstram objetivamente as suas sentenças, no
paraíso da corrupção no Brasil? Isso não tem nada a ver com fake news, com
“milícias digitais”, com “o golpe do 8 de Janeiro”, com a extrema direita, com
“atos antidemocráticos” ou com os atestados de vacina do ex-presidente.
É proteção ao crime, sem vergonha nenhuma e na frente de todo
mundo. A anulação de todas as provas contra Dirceu, e sua canonização como
mártir da Lava Jato, é um atestado de óbito do STF como instituição — mais um.
O Supremo não é mais a instância máxima do sistema judiciário. É um aparelho
político, que serve o governo Lula e é servido por ele. É garantido pela força
armada do Exército e da Polícia Federal, hoje reduzidos à condição de empresas
privadas de segurança dos ministros — e não mais pela força da lei. Seus
nutrientes são os serviços de propaganda que mantém na imprensa, os escritórios
de advocacia criminal para corruptos milionários e os escroques que controlam o
Congresso Nacional.
É este o Brasil “recivilizado” do ministro Barroso.
Comenta-se, agora, que Dirceu está de novo em condições de ser o grande
cérebro, articulador e faz-tudo da reeleição de Lula em 2026 e que o STF está
fechado com ambos e com seu projeto de ficar doze anos no governo. Tem de ser
mesmo por aí.
O consórcio STF-TSE colocou Lula na Presidência em 2022; o
próprio Gilmar Mendes disse isso, para efeito prático. Vai ter de repetir a
dose, porque com o eleitor, mesmo, Lula não consegue resolver nada.
Os resultados da eleição municipal estão aí.
Há um esforço gigante, depois da derrota, em dizer que Lula
na verdade não perdeu. “Preferiu” não se expor. Não é mais da extrema esquerda:
agora é um homem “de centro”. Sua grande força atual não é mais o PT. É o PSD
de Gilberto Kassab. É o centrão de Arthur Lira, Rodrigo Pacheco e outros ases
do seu “projeto de país”. No mundo das realidades, seu partido ficou com 5% das
prefeituras, ganhou em uma das 26 capitais e foi extinto em São Paulo.
Mas já faz muito tempo que Lula não está mais interessado em
eleitor. O seu negócio é o STF, o “centrão” e os descondenados da Lava Jato. “Ou
vai com eles, ou não tem jogo.”
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