A outra pandemia: a Covid-19 e a corrupção
Por Roberto Laver
Neste
artigo, Roberto Laver chama a Igreja global a ser uma referência de
integridade e honestidade. Ele expõe o legado prejudicial da corrupção
em diversas sociedades ao redor do mundo, e pontua que a Covid-19 está
amplificando o potencial de corrupção à medida que grandes somas de
dinheiro circulam na luta contra o vírus e seus desdobramentos. Na
sequência, outro artigo em resposta a Laver produzido pela Comissão de
Missões da World Evangelical Alliance (WEA) [Aliança Evangélica Mundial]
traz algumas implicações missiológicas sobre a reflexão de Roberto, e
desafia a comunidade missionária a ajudar as igrejas no combate à
corrupção.
A pandemia de coronavírus cobrou
um drástico preço da humanidade, infectando milhões e tirando a vida de
centenas de milhares de pessoas em todo o mundo. Não se trata apenas de
uma crise de saúde, é também uma crise econômica e social. Por todo o
mundo, o vírus forçou governos a decretarem confinamentos (lockdowns)
severos, ocasionando a mais brutal recessão vivida por esta geração. O
impacto do vírus, contudo, não é sentido da mesma forma por todos.
A
pandemia está expondo os efeitos devastadores e os riscos reais de
outra pandemia: a de corrupção sistêmica. Frequentemente sendo tachada
como “normal” ou simplesmente como uma questão muito “política” ou
abrangente demais para ser enfrentada, a corrupção sistêmica vem sendo
amplamente negligenciada pela Igreja. Contudo, não podemos mais ignorar
essa injustiça. A corrupção sistêmica (como prática institucionalizada
de abuso de poder e confiança pública) prejudicou de forma grave a
capacidade da maioria dos países de lidar com as consequências
econômicas e de saúde pública recorrentes da pandemia. A soma de
recursos destinados à saúde perdidos por conta de corrupção e desvios
impressiona por si só. Várias fontes estimam que mais de 10% dos
investimentos em saúde vão para o pagamento de propinas e peculato,
acumulando perdas de mais de 500 bilhões de dólares anualmente.[1]
Essa estimativa não leva em conta outras formas de corrupção que
prejudicam o acesso à saúde e a qualidade dos serviços prestados como
clientelismo generalizado, troca de favores, nepotismo e favoritismo.
Para
tornar a situação ainda pior, a pandemia tem sido o cenário ideal para o
aumento da corrupção. Suborno induzido pela escassez, desvio de
recursos de respostas a emergências e propinas em processos de aquisição
de emergência são apenas algumas das formas predominantes de corrupção
que se manifestam durante esta pandemia. Isso aumenta o custo social,
humano e econômico da crise, particularmente para os mais vulneráveis na
sociedade. Quando há pacientes que podem pagar subornos ou usar
conexões pessoais para receber acesso imediato ao atendimento, os mais
vulneráveis são deixados no final da lista de espera. Se o suborno e as
conexões forem usados para contornar as medidas de quarentena, então,
existe um risco potencial de infecção maior para a população em geral,
intensificando ainda mais a crise humanitária.
A
corrupção é como jogar gasolina nas chamas de uma pandemia. Sistemas de
saúde já debilitados por práticas ilícitas lutarão para conseguir
atender as necessidades mais básicas durante a crise. Cidadãos que não
têm como pagar por privilégios podem ficar sem acesso a testes ou
tratamento, um problema que pode acelerar a propagação do vírus. Aqueles
que podem “dar um jeitinho” para driblar a quarentena provavelmente o
farão… E as tentativas do governo de passar mensagens de orientação
sobre medidas preventivas provavelmente fracassarão em lugares onde a
confiança em relação ao estado foi minada por décadas de corrupção.[2]
A
pandemia gerou enormes gastos públicos em todo o mundo relacionados à
saúde e aos custos econômicos associados. O montante de ajuda financeira
internacional não tem precedentes: só o FMI já forneceu cerca de 90
bilhões de dólares para ajudar 80 países a lidar com a pandemia, e
prometeu um total de 250 bilhões de dólares.[3] Mas as
evidências mostram que a eficácia dessa ajuda financeira será gravemente
enfraquecida em contextos de corrupção generalizada.[4] Uma
porção de relatos sobre fraudes e corrupção relacionadas a gastos
públicos voltados ao combate da crise da Covid-19 emergiram.[5]
Atores
da sociedade civil em países ao redor do mundo estão demandando medidas
para proteção e exigindo prestação de contas em relação às ações de
assistência emergencial ligadas à Covid-19. Na América Latina, treze
divisões da
Transparência Internacional,
a maior ONG anticorrupção no mundo, apresentaram propostas específicas
para mitigar o risco de corrupção em gastos públicos como parte da
resposta da região à pandemia.
[6] Dentre essas divisões está a
Asociación para una Sociedad Más Justa (ASJ) [Associação para uma Sociedade Mais Justa], uma ONG cristã em Honduras membro da
Faith and Public Integrity Network (FPIN)
[Rede de Fé e Integridade Pública]. A ASJ, junto com muitos outros
grupos da sociedade civil, está ativamente monitorando gastos públicos
com saúde (e com outras áreas) que estão sendo feitos pelo governo de
seu país. A AJS é um modelo inspirador de engajamento de um grupo de
fiéis na luta contra a corrupção governamental em sua própria
comunidade.
A corrupção, como uma expressão de
profunda injustiça, deveria fazer os fiéis se importarem quanto ao nosso
comportamento e testemunho, bem como quanto à ordem social em que que
vivemos. A crise da pandemia é um chamado para a Igreja – seus líderes e
todos os seguires de Jesus – acordar para o fato de que a luta contra a
corrução é central para nossa missão integral. A corrupção é algo com
que Deus se importa imensamente.
A corrupção
destrói uma nação (Pv 29.4). É um sorvedouro de fundos, recursos,
oportunidades, esperanças e da habilidade de desenvolvermos nosso
potencial e capacidades dados por Deus. É um câncer com efeitos
corrosivos no desenvolvimento político, econômico e social das
sociedades. É o pior dos obstáculos ao alívio da pobreza. É uma negação à
justiça e uma obstrução ao shalom [de Deus], ao bem-estar comum da sociedade. Além do mais, como a pandemia mostra, é uma questão de vida ou morte.
Estamos
esperançosos que uma vacina efetiva para a Covid-19 seja desenvolvida o
mais breve possível e distribuída de forma equitativa. No entanto,
nenhuma outra simples vacina pode ser desenvolvida para essa “outra
pandemia”. Não há uma panaceia única contra a corrupção.
Ao
longo das últimas três décadas, as principais organizações
internacionais, governos nacionais e especialistas têm promovido e
implementado medidas anticorrupção. Mudanças nas estruturas
constitucionais, novas leis sobre transparência e prestação de contas e
novas agências anticorrupção são algumas das ferramentas mais comuns.
Essas reformas são primordialmente em prol de alterações legais e
institucionais, e o esperado seria que tais mudanças modificassem, por
consequência, comportamentos e padrões culturais. Mas, de forma geral,
essas mudanças não estão produzindo uma transformação sustentável das
sociedades na direção de uma integridade pública consistente e de menos
corrupção. Inúmeras avaliações, corroboradas por experiências práticas,
indicam que houve pouco avanço. A despeito de décadas de reformas e de
bilhões de dólares investidos, muitos países se mantém tão ou mais
corruptos do que antes das reformas.
Há uma
crescente percepção entre a comunidade anticorrupção de que a luta não é
simplesmente um esforço tecnocrático, mas algo que envolve mudanças
culturais profundas e normas sociais sobre como os cidadão se relacionam
com o estado e uns com os outros. Reformas legais e institucionais são
mediadas e condicionadas pela política cultural prevalecente e por
normais sociais. Em sociedades onde normas de privilégio, particularismo
e favoritismo são a regra, não é de surpreender que a mera mudança
burocrática nas leis e nas instituições não gere efeito algum. Pior,
como muitos casos mostram, essas mudanças podem ser manipuladas e
utilizadas de forma abusiva em detrimento daqueles que exigem serviços
públicos honestos.
Vozes de especialistas
enfatizam que sociedades devem construir uma cultura mais robusta e/ou
restrições normativas contra um comportamento corrupto. Mudanças legais
não são suficientes. Precisamos construir uma cultura de integridade,
que inclua valores como justiça e honestidade, participação cidadã e
engajamento político, além de social capital [uma tradução
literal seria capital social, mas o conceito diz respeito a redes de
relacionamentos entre as pessoas que vivem em determinada sociedade e
que viabilizam um funcionamento efetivo/sustentável].
A
Igreja, seus líderes e fieis de forma geral, estão em boa posição para
serem agentes de transformação positiva. Precisamos, contudo, fazer as
seguintes pergunta a nós mesmos:
- Como as igrejas e seus líderes modelam e incutem valores de integridade pública e cidadania responsável?
- Até
que ponto as igrejas estão encorajando uma ação coletiva para
influenciar as estruturas governamentais e as práticas de governança na
sociedade?
Tragicamente, temos de admitir que o retrato
não é muito encorajador. Integridade pública e corrupção são assuntos
praticamente ausentes dos púlpitos e da reflexão teológica. Profissões
de fé não são acompanhadas por atitudes e comportamentos que demonstram
integridade pública. Testemunhamos muitos casos em que os líderes de
igrejas e os crentes participam de práticas corruptas, ou são passivos e
indiferentes a elas e a seus efeitos devastadores nas comunidades –
particularmente entre os mais pobres e menos privilegiados na sociedade.
Oremos
para que a crise da Covid-19 nos leve a ser uma Igreja transformada,
ativamente engajada e comprometida em contribuir com a cura dessa “outra
pandemia”.
>
Confira a resposta da Comissão de Missões da Aliança Evangélica Mundial ao artigo de Laver.
• Roberto Laver
é advogado e atua na área de direito internacional. Iniciou sua
carreira na Argentina, e acumula três décadas de experiência nos setores
corporativo, acadêmico, multilateral e no terceiro setor. Suas
principais especialidades incluem governança anticorrupção, estado de
direito, organizações internacionais de desenvolvimento (incluindo
entidades confessionais). Ele é reconhecido como um forte estrategista,
construtor de pontes e um honesto e entusiástico líder. Atualmente, está
à frente da
FIDES,
uma ONG que ajuda a engajar e equipar líderes de igrejas e comunidades
na promoção da integridade pública e na luta contra a corrupção.