Leia a
crônica ‘O fim do mundo’, da maravilhosa Cecília Meireles
Autora
foi poeta, jornalista, cronista, escreveu para crianças e trabalhou como
professora
Leia a
crônica ‘O fim do mundo’, da maravilhosa Cecília Meireles
Hoje
publicamos no portal ICL Notícias uma crônica de Cecília Meireles. Esta seção
resgata textos, imagens e sons que façam o leitor dar uma pausa na marcha
imediata e angustiante dos fatos para refletir com autores geniais do Brasil e
de outros países. Dessa vez, destacamos a crônica “O fim do mundo”, publicada
no livro “Quatro vozes”, reeditado em 1998.
O fim
do mundo
A
primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum
sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim.
Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio
desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo
acontecimento que elas tanto temiam.
Nada
disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós,
crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores
do tapete.
Mas,
uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada,
levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que
até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos
pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por
cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao
encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no
céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A
mim não me causava medo nenhum.
Ora, o
cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se
acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste – mas que importância tem a
tristeza das crianças?
Passou-se
muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo.
Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois
em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem
se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.
Dizem
que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena,
porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que
conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos
naquela noite já muito antiga.
O mundo
vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu
a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão
sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em
nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os
cofres públicos — além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras
tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa
crônica.
Se o
fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos
este dom de viver da maneira mais digna.
Em
muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus — dono de
todos os mundos — que trate com benignidade as criaturas que se preparam para
encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos — segundo leio — que,
na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.
Enquanto
isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo,
neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos
arrogamos posições que não temos – insignificantes que somos, na tremenda
grandiosidade total.
Ainda
há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o
fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês.
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Cecília
Meireles
Nasceu
em 1901 no Rio de Janeiro e viveu até os 63 anos. Ela disse em sua última
entrevista — ao jornalista Pedro Bloch, publicada em maio de 1964 na revista
Manchete — que seu vício terrível era gostar de gente.
Teve
sua infância marcada por perdas profundas. Seu pai e sua mãe morreram quando
ela ainda era criança. Morte prematura também tiveram seus irmãos Carlos, Vítor
e Carmen. Cecília Meireles foi criada por sua avó Maria Jacinta Benevides,
açoriana, personagem recorrente em sua obra.
A maior
tragédia de Cecília Meireles ainda estaria por vir: o suicídio de seu marido, o
ilustrador português Fernando Correia Dias, fato que transformaria a visão de
mundo da poeta. Correia Dias suicidou-se em casa, em 1935, enquanto as filhas
se preparavam para os festejos do Dia da Bandeira.
“Há
muitas mortes por detrás dessa morte. E não foi apenas um suicídio: foi também
um assassinato. Posso eu viver muito tempo; pode minha existência tomar os mais
inesperados rumos — mas essa noção da inutilidade humana; esta indiferença pela
esperança, este desapego da lógica farão de mim cada vez mais uma criatura sem
raízes na terra, prescindindo de tudo e à mercê dos casos que a queiram
transportar”, escreveu a poeta a Diogo de Macedo, amigo português. (Carta
publicada pela revista Terceira Margem, Porto, Portugal, 1998).
Cecília
Meireles foi poeta, jornalista, cronista, escreveu para crianças, foi
professora. Também esteve engajada na defesa de uma educação pública, laica e
de alto nível como caminho para diminuir as desigualdades sociais do país.
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