Uma crônica do grande Carlos Heitor Cony sobre a capacidade
de chorar
"Homem não chora e, por isso, ele decidiu que seria um
homem e jamais choraria"
Um dos craques da crônica brasileira, Carlos Heitor Cony
conta nesse texto uma história que tem a ver com a capacidade de chorar. O
texto foi publicado na Folha de S. Paulo, em 09 de agosto de 2002.
Pranto para o homem que não sabia chorar
Carlos Heitor Cony
Havia quitandas naquele tempo. Vendiam verduras, legumes,
ovos, algumas chegavam a vender galinhas em pé, quer dizer, vivas, mas eram
poucas, pois todas as casas tinham quintal e todos os quintais tinham galinhas.
Ia esquecendo: as quitandas mais sortidas tinham à porta, bem visíveis aos
passantes, um feixe de varas de marmelo.
Para que serviam? Fica difícil explicar, mas serviam para os
pais comprarem uma delas e a guardarem em casa, num lugar à mão e bem visível
aos filhos. Quem nunca tomou uma surra de vara de marmelo não pode saber o que
é a vida, de que ela é feita, de suas ciladas e enigmas. Há aquela frase: “Quem
nunca passou pela rua tal às cinco da tarde não sabe o que é a vida”. A frase
não é bem essa, mas o sentido é esse.
Uma surra de vara de marmelo era o recurso mais eficaz para
colocar a prole em bom estado de moralidade e bom comportamento. Acima dela, só
havia o recurso capital de ameaçar o filho com um colégio interno da época:
Caraça! Ir para o Caraça, a possibilidade de ir para o Caraça era uma pena de
morte, uma condenação ao inferno, um atestado de que o guri não tinha jeito nem
futuro.
Houve a tarde em que o irmão mais velho fez uma lambança com
umas tintas que o pai comprara para pintar a casa de Segredo, o cachorro, que
era solto à noite para evitar que os amigos do alheio pulassem para o quintal e
roubassem as galinhas — repito, todas as casas tinham galinhas.
E “amigos do alheio” era uma expressão, uma metáfora
civilizada que os jornais usavam para se referirem aos ladrões de qualquer
coisa, inclusive de galinhas.
Pois o irmão foi surrado com vara de marmelo e chorou. O pai
então proferiu a sentença que ele jamais esqueceria:
Homem não chora!
Em surras seguintes e sucessivas, com a mesma vara de
marmelo (ela nunca se quebrava, por mais violenta que tivesse sido a surra
anterior), o irmão tinha o direito de gritar, de urrar, de grunhir como um
leitão na hora em que entra na faca, mas não de chorar.
Por isso, mesmo sem nunca ter tomado uma surra daquelas, ele
sabia que um homem não pode chorar, nem mesmo quando açoitado por vara de
marmelo. O vizinho do Lins, que tinha um filho considerado perdido, percebendo
que a vara de marmelo era ineficaz como um remédio com data de validade
vencida, adotou uma tira de borracha que servira de pneu a um velocípede
desativado. Tal como a vara de marmelo, era maleável mas inquebrável, deixava
lanhos nas pernas do filho — que mais tarde chegaria a ser
capitão-do-mar-e-guerra, medalhado não em guerra nem em mar, mas por tempo de
serviço.
Homem não chora e, por isso, ele decidiu que seria um homem
e jamais choraria. O irmão, sim, era um bezerro desmamado, chorava à toa, nem
precisava de vara de marmelo. Chorou no dia em que Segredo morreu envenenado —
um amigo do alheio, antes de pular no quintal, jogou-lhe um pedaço de carne com
arsênico.
Chorou mais tarde, quase homem feito. Esquecido de que homem
não chora, ele chorou quando o Brasil perdeu para o Uruguai no final da Copa do
Mundo de 1950. Não era homem. Atrás do gol, viu quando Gighia chutou e o
estádio emudeceu e logo depois chorava, seguramente o maior pranto coletivo da
história da humanidade, 200 mil pessoas que não eram homens, chorando sem
vergonha de não serem homens.
Ele não podia ou não sabia chorar? Essa era a questão. Volta
e meia forçava a barra, lembrava as coisas tristes que lhe aconteceram, o dia
em que o pai o colocou de castigo, atribuindo-lhe a quebra de uma moringa. A
perda da medalhinha de Nossa Senhora de Lourdes que a madrinha lhe dera, uma
medalhinha de ouro que, segundo a madrinha, o livraria de todo o mal, amém. Não
chorou nem mesmo quando, naquela primeira noite após a morte de sua mãe, ele se
sentiu sozinho na vida e perdido no mundo.
Daí lhe veio a certeza. Poder chorar até que podia. O diabo
é que ele não sabia mesmo chorar. Chorar é como o samba que não se aprende na
escola: ou se nasce sabendo, ou nunca se sabe. Bem verdade que ele desconfiou
de que os outros chorassem errado, misturando motivos. Por exemplo: o irmão,
que era um Phd na matéria, quando chorava, fazia um embrulho de coisas e
desditas, um mix de quebrações de cara e obtinha um pranto copioso, sincero,
lágrima puxando lágrima, soluço puxando soluço.
Quando perdeu uma bolada num cassino de Montevidéu, foi para
o quarto do hotel, bebeu meia garrafa de uísque e, tarde da noite, telefonou
dizendo que, passados 40 e tantos anos, ainda estava chorando pela morte de
Segredo.
Tivera ele essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de
“dom das lágrimas”! José, vendido por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se
poderoso e um dia recebeu os irmãos que o procuraram para matar a fome. Os
irmãos não o reconheceram. José perguntou-lhes sobre o pai e retirou-se a um
canto para chorar. Depois, sim, deu-se a conhecer e matou a fome dos irmãos que
o venderam.
Jesus chorou quando soube da morte de Lázaro e o
ressuscitou. A lágrima é um dom, e ele não mereceu esse dom nem mesmo quando
Débora foi embora de seus sonhos e, como nos tangos, nunca mais voltou.
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Carlos Heitor Cony (1926–2018) foi um jornalista e escritor
brasileiro de destaque. Escreveu dezessete romances, contos, crônicas, ensaios
biográficos, infanto-juvenis e muito mais. Vencedor de vários prêmios, era
membro da Academia Brasileira de Letras.
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