Suicídio: como lidar com o desejo de não estar vivo
Por Esther Carrenho
Desde que o Jogo Baleia Azul e a série Thirteen Reasons Why
foram lançados, muitas pessoas estão dialogando sobre um assunto que se tornou
tabu nos últimos tempos – a morte. Ainda me lembro da minha infância em que
morrer e nascer faziam partem das vivências infantis. Tanto eu como as outras
crianças participávamos dos rituais de um velório e, desta forma, a consciência
de que a vida do corpo é finita já fazia parte do meu dia a dia. Atualmente, as
crianças são poupadas de participarem da tristeza e dos momentos de despedida
do corpo, sem vida, de uma pessoa da família. Desta forma, se contribui
negativamente para o desenvolvimento de recursos emocionais necessários na
vida, para vivenciar o luto diante da morte de alguém próximo.
Se falar da morte do corpo já tem sido algo evitado, muito
mais é falar da morte por suicídio, que chega até nós como uma tragédia. Muitos
familiares negam por toda a vida o suicídio de um ente querido. A morte
intencional atinge todos aqueles que estão próximos da pessoa. Além da dor de
perder um ente querido, cada membro da família tem que lidar também com o
possível sentimento de culpa que, em geral, recai sobre as pessoas, ficando
difícil aceitar que o ato suicida é de responsabilidade apenas daquele que o
praticou. Além do mais, no suicídio a vítima e o assassino estão na mesma pessoa.
Da mesma forma que se pode sentir compaixão, sente-se também raiva da pessoa
que se foi.
Cabe aqui uma reflexão que talvez possa se transformar em
atitudes de acolhimento e cuidados que, com certeza, podem preparar melhor o
ser humano para os infortúnios de se viver e ainda podem amparar aqueles que,
diante de um sofrimento podem responder com o ato suicida.
Depressão não é frescura
Só a série em si ou a proposta de um jogo, para que se
coloque um fim na vida, não são os únicos motivos que podem levar uma pessoa a
dar cabo de si mesma. Eles podem sim, detonar uma alavanca já acionada por
outras, que desestimulam o viver.
Há várias causas que podem ser apontadas como
desencadeadoras do ato suicida. Uma delas é a depressão que pode se tornar
grave e desequilibrar todo o sistema límbico (responsável por controlar as
emoções), levando seus portadores a desistirem de viver. Portanto, é importante
que pais e responsáveis fiquem atentos às alterações de humor de uma criança ou
adolescente para cuidarem dos processos depressivos antes que eles se tornem
graves.
Embora a porcentagem de depressivos que se matam seja
pequena, é importante lembrar que depressão não é frescura! Por isso o
depressivo precisa de um olhar amoroso, seja qual for a causa da sua depressão.
Alguma tristeza profunda está alojada na pessoa e o deprimido necessita de um
espaço no qual ele possa ver o que o entristece tanto, e encontrar recursos
para elaborar e encontrar novas alternativas de vida.
Outra causa de suicídio pode ser a consciência de uma morte
eminente. Na Bíblia temos um exemplo assim. Quando Saul se conscientizou que o
grupo inimigo se aproximava e ele não teria escapatória, ele mesmo se matou (1
Cr 10.4). Temos também os suicidas religiosos que se matam por alguma causa que
consideram nobre ou porque acreditam encontrarem uma vida melhor.
Mas a causa mais comum, ou ainda, a causa que mais dá
sustentação para optar pela morte, é uma avaliação inadequada que a pessoa faz
de si mesma.
O suicídio é o desenrolar de um processo. O fato de uma
pessoa desejar estar morta por que a vida se fez pesada demais, não significa
que ela já vai se matar. Mas pode ser o início de um caminho que vai desembocar
no suicídio.
Desejo de estar morto X desejo de se matar
Na Bíblia, no livro de Números, capítulo 11, vemos Moisés
sentindo o quanto era pesado lidar com o povo no deserto e pediu a Deus que o
matasse. Jó, depois que perdeu todos os filhos e todas suas posses e anda se
viu cheio de feridas pelo corpo todo, desejou ter sido um aborto e pediu a Deus
que lhe desse a morte (Jó 6.9-11). Elias, depois de grandes feitos, diante de
ameaça de morte feita pela rainha, se sentiu inútil e pediu a morte para Deus
(I Reis 19.4). Mas nenhum deles deu continuidade, transformando o desejo de
estar morto em desejo de se matar.
Por vezes, a vida fica pesada demais, e o desejo de não
estar vivo pode acontecer. Mas se já tivermos construído uma consciência
adequada da própria importância e do sentido da vida, encontraremos outras
respostas à situação de pavor que estamos vivendo, que não seja a morte. No
caso desses três personagens bíblicos, foi o sentido resultante da fé no Todo
Poderoso que os ajudou a expressar o que sentiam e, de alguma forma, a
recuperar a força que precisavam para dar continuidade à vida.
A construção do valor de uma pessoa
A construção de autovalia adequada, como o desenvolver da
fé, pode ser recurso apropriado para que uma pessoa encontre alternativas
diferentes ao dar cabo à própria vida, ante as situações desesperadoras tão
comuns aos seres humanos.
Todo bebê ao nascer precisa ser adotado pelos próprios pais.
Se não por estes, necessita ser adotado por pessoas que realmente possam
cooperar para que esta criança vá construindo um olhar adequado para o valor
intrínseco que cada ser humano tem.
Na adoção do próprio filho ou do filho gerado por outrem são
necessárias, no mínimo, três atitudes:
1) Aceitar as características naturais da personalidade
herdada e dos dons e habilidades daquela criança. Isto significa ter prazer em
aceitar se a criança é quieta ou agitada; se é sociável ou não, enfim aceitar o
que é natural e específico dela.
2) Acolher esta criança com amor e afeto. Lembrando que o
colo, o tocar seu corpo, sua pele, o abraço e o aconchego vão ajudá-la a
construir uma base de segurança nas possíveis desventuras da vida.
3) Aprovar e reconhecer os feitos desta criança, destacando
as qualidades que existem através das garatujas, riscos, borrões ou qualquer
outro feito, à medida que a criança cresce. Algumas pessoas são exageradamente
críticas e condenam todo e qualquer feito da criança, criando nela a crença de
que é incapaz, desajeitada e tudo que faz é errado. É preciso aprender a ver o
que de bom está por trás da construção de um feito, por mais simples que ele
seja. E nem pensar em comparação. Cada um tem seu valor e sua contribuição no
mundo. Ninguém vale mais que o outro porque desempenha alguma tarefa com mais
facilidade ou com mais perfeição.
Pais e educadores que conseguirem desenvolver em si mesmos
estas atitudes muito estarão colaborando para o fortalecimento de uma avaliação
adequada da criança para consigo mesma e para com o outro.
Além de ajudarmos uma criança ou adolescente a construir e
acreditar no seu valor, podemos também aprender a dar espaço para que eles expressem
seus sentimentos, sem condenação. É natural e normal sentir. Sentimos medo,
raiva, tristeza, vergonha e culpa. Quando se pode expressar esses sentimentos é
possível reagir a eles com comportamentos e atitudes saudáveis. É legitimo uma
criança sentir raiva e, quando aceitamos e compreendemos que sua raiva é
normal, podemos ajudá-la a elaborar o sentimento e, em geral, escolher um
comportamento adequado sem violência. O nocivo é quando pais e educadores
tentam proibi-la de sentir ou afirmam que é feio ou ruim sentir.
Há pouco tempo, enquanto eu caminhava pela rua, ouvi uma mãe
dizer para uma menina que aparentava oito anos de idade, diante de algo
acontecido: “Você está com vergonha? Não precisa sentir vergonha”. O adequado
seria: “Do que você ficou com vergonha? É normal ficar envergonhada. Mas tem
coisa que precisamos fazer mesmo quando sentimos vergonha. Você pode me contar
quando sentir vergonha e eu posso tentar lhe ajudar. Ok?”. Desta forma,
transmitimos à criança a segurança de que ela é normal e adequada.
Somos importantes para Deus
Outra ferramenta que temos é a fé que professamos. Como
cristãos, aprendemos o valor e o respeito ao corpo, um espaço sagrado.
Primeiro, porque o corpo foi criado por Deus e ele mesmo
considerou-o como obra-prima, conforme o descrito em Gênesis: “...É muito bom”!
Homem e mulher inteiros, inclusive com os órgãos genitais. E somos formados por
Deus no ventre. O rei Davi tinha esta consciência: “O Senhor me formou no
ventre da minha mãe...”! (Sl 139).
Segundo, porque Cristo deixou claro que o Santo Espírito de
Deus habita em nós. João, discípulo de Cristo, afirmou que Deus deu-nos poder
de nos tornarmos filhos dele (Jo 1.12). Somos morada de Deus.
Terceiro, porque somos importantes para Deus. Ele nos deu
talentos antes de nascer. Somos especiais e únicos. Não foram encontrados ainda
dois DNAs e nem duas digitais iguais. Além disso, Deus nos capacita com
habilidades e dons especiais para servirmos uns aos outros.
Quarto, porque não nascemos por acaso. Somos o resultado de
um “sim” de Deus. O Rei Davi sabia disso e afirmou que Deus nos forma no ventre
da nossa mãe e está conosco desde que éramos apenas um embrião (Sl 139.15).
Quinto, porque qualquer castigo que uma pessoa possa
entender que ela precisa passar por algum erro cometido, Cristo já passou. “O
castigo que nos traz a paz estava sobre ele” (Is 53.5)! Em muitos casos, se
matar é uma forma de se punir por causa do peso da culpa. Mas em Cristo, não é
preciso se punir por nada. Pode-se confessar e reconhecer que errou e a
promessa é de que somos mais que perdoados. Muitos suicidas se culpam por algo
que entendem que é imperdoável e entram em um processo de autocondenação. Na
Bíblia temos o caso de Judas, que quando soube que Cristo estava preso e que
fora condenado à morte como um bandido, percebeu que tinha cometido um erro
terrível e quis voltar atrás, devolvendo o dinheiro ganho por ter traído Jesus.
Seu dinheiro não foi aceito e Judas continuou no processo de se condenar. Em
seguida, enforcou-se (Mt 27.5). Ele poderia ter ido até Cristo, mas não foi.
Optou por matar-se.
Sexto, porque quando estamos cansados e desanimados, o
convite de Cristo é para irmos até ele: “Vinde a mim todos que estão cansados e
desanimados e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Às vezes, fica difícil viver, ou
por causa das injustiças, ou por causa das perdas dolorosas. Mas há um mistério
inexplicável disponível para aqueles que praticam a fé cristã. O Cristo que
trilhou o caminho da injustiça, da dor, e da humilhação vem caminhar com toda a
pessoa que clama.
Então, podemos concluir que a vida vale a pena, mesmo quando
passamos pelos vales da sombra da morte!
Nota: Publicado originalmente no jornal O Clarim.
Reproduzido com permissão.
• Esther Carrenho é psicóloga clínica, teóloga e autora do
livro Depressão: tem luz no fim do túnel.
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