FAROFA
FILOSÓFICA
“Poema de Natal” por Vinícius de Moraes
Vinicius
de Moraes (1913–1980) nunca entendeu a poesia como algo distante da vida.
Poeta, diplomata, dramaturgo e compositor, ele escreveu a partir da experiência
— do amor vivido, da amizade concreta, do tempo que passa e da morte que ronda.
Sua obra dissolve fronteiras: entre literatura e música, entre lirismo e
pensamento, entre emoção e lucidez. Vinicius não escreveu para explicar o
mundo, mas para habitá-lo com intensidade.
Essa
postura faz de sua poesia uma espécie de filosofia prática. Não há nela
sistemas nem teorias, mas uma ética do viver: amar sabendo que passa, esperar
sem negar a finitude, encontrar sentido mesmo onde não há promessa de conforto.
Publicado
em meados da década de 1940 e incorporado posteriormente a antologias, o Poema
de Natal talvez seja um dos textos mais radicais de Vinicius sobre o tema.
Aqui, o Natal não aparece como festa, mas como pausa. Não há alegria
obrigatória nem redenção fácil. O poema fala de memória, despedida, silêncio e
atenção — como se o nascimento celebrado no Natal exigisse, antes de tudo,
consciência da finitude.
Vinícius
de Moraes via
Poema
de Natal
Para
isso fomos feitos
Para
lembrar e ser lembrados
Para
chorar e fazer chorar
Para
enterrar os nossos mortos
Por
isso temos braços longos para os adeuses
Mãos
para colher o que foi dado
Dedos
para cavar a terra.
Assim
será a nossa vida
Uma
tarde sempre a esquecer
Uma
estrela a se apagar na treva
Um
caminho entre dois túmulos
Por
isso precisamos velar
Falar
baixo, pisar leve, ver
A noite
dormir em silêncio.
Não há
muito o que dizer
Uma
canção sobre um berço
Um
verso, talvez, de amor
Uma
prece por quem se vai
Mas que
essa hora não esqueça
E por
ela os nossos corações
Se
deixem, graves e simples.
Pois
para isso fomos feitos
Para a
esperança no milagre
Para a
participação da poesia
Para
ver a face da morte
De
repente nunca mais esperaremos…
Hoje a
noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos
imensamente.
Vinícius
de Moraes. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar
Editora, 1974, p. 223 Via viniciusdemoraes.com
Vinicius
transforma o Natal em metáfora da condição humana: somos feitos para lembrar e
ser lembrados, para perder, para velar, para falar baixo diante do mistério. O
poema não promete consolo; oferece companhia. Não embala; desperta. Sua força
está justamente nessa recusa do sentimentalismo, tão comum às datas
comemorativas.
“Poema
de Natal” desloca a pergunta central: não se trata de como celebrar, mas de
como estar. Estar atentos. Estar presentes. Estar à altura da fragilidade que
nos constitui. Talvez o Natal, em Vinicius, seja isso: um convite à gravidade
simples de existir — onde, apesar de tudo, ainda nascemos imensamente…
Vinícius
nos convida a repensar a data para além dos rituais automáticos. Talvez o Natal
não seja alegria obrigatória, mas consciência: da fragilidade da vida, da força
da memória e da responsabilidade que temos uns com os outros.
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