REFLEXÃO 02
O ano que durou 445 dias por confusão no calendário
,O projeto de Júlio César de organizar o confuso calendário
romano quase naufragou devido a um erro básico de contagem
Houve uma época em que o calendário era muito confuso. A
festa da celebração da colheita, por exemplo, caía no meio da primavera.
Era o século 1º a.C. Segundo os rituais, deveria haver
verduras e legumes prontos para comer durante a festa. Mas bastava o agricultor
olhar para o campo e ficava claro que ainda faltavam vários meses para a
colheita.
O motivo era o primeiro calendário romano. Ele ficou tão
desregulado que importantes festivais anuais tinham cada vez menos semelhança
com o que acontecia no mundo real. Até que Júlio César (100 a.C.-44 a.C.) quis
corrigir esse sistema que não fazia mais sentido.
Não era uma tarefa fácil. Era preciso acertar o calendário
do Império Romano e ajustá-lo para a rotação da Terra sobre seu eixo (um dia) e
sua órbita em torno do Sol (um ano).
A solução encontrada por César nos deu o ano mais longo da
história. Ele acrescentou meses ao calendário e os retirou em seguida, fixou o
calendário às estações e criou o ano bissexto. Foi um projeto enorme, que quase
deu errado devido a uma peculiaridade da matemática romana.
Legenda da foto,Os dias de festa e de jejum, entre outras
datas importantes em Roma, eram sujeitos aos caprichos de um calendário que
mudava de forma imprevisível ano após ano
O ano de 46 a.C. pode ter sido complicado, mas não tanto
quanto o anterior, segundo a professora de história Helen Parish, visitante da
Universidade de Reading, no Reino Unido.
O primeiro calendário romano era determinado pelos ciclos da
Lua e do ano agrícola. Observando com os olhos modernos, a impressão é que está
faltando alguma coisa.
A linha do tempo da escalada da tensão entre Venezuela e
EUA, dos bombardeios no Caribe ao
O ano tinha apenas 10 meses. Ele começava em março
(primavera do hemisfério norte) e o décimo mês do ano – o último – era o que
conhecemos hoje como dezembro.
Seis desses meses tinham 30 dias e quatro tinham 31. Ao
todo, o ano tinha 304 dias.
Como ficavam, então, os dias restantes?
"Os dois meses do ano em que não havia trabalho a se
fazer no campo simplesmente não eram contados", explica Parish.
Em outras palavras, o Sol nascia e se punha, mas
oficialmente não havia se passado nenhum dia no primeiro calendário romano.
"Foi aí que começaram a surgir as complicações", segundo a
professora.
Em 731 a.C., o segundo rei de Roma, Numa Pompílio (753
a.C.-673 a.C.), decidiu melhorar o calendário romano. Ele acrescentou meses
adicionais para cobrir o período de inverno.
"Qual o propósito de um calendário que cobre apenas uma
parte do ano?", questiona Parish.
A resposta de Pompílio foi acrescentar 51 dias ao
calendário, criando os meses que hoje chamamos de janeiro e fevereiro. Esta
extensão aumentou o ano-calendário para 355 dias. O número pode parecer
estranho, mas foi escolhido de propósito.
Este número faz referência ao ano lunar (12 meses lunares),
que tem 354 dias de duração. Mas, "devido à superstição romana com os
números pares, foi acrescentado mais um dia, totalizando 355", segundo
Parish.
Nesta reorganização, os meses foram dispostos de forma que
todos tivessem números ímpares de dias, exceto fevereiro (28).
"Por isso, fevereiro é considerado de má sorte e a
época de purificação social, cultural e política", segundo Parish. "É
o momento em que você tenta apagar o passado."
Para a professora, o calendário de Pompílio foi um bom
progresso, mas ainda faltavam cerca de 11 dias para atingir o ano solar de 365
dias e algumas horas.
"Mesmo esse calendário melhorado de Pompílio ainda fica
dessincronizado com as estações com muita facilidade."
Perto do ano 200 a.C., o calendário estava tão adiantado que
os romanos registraram como tendo ocorrido em 11 de julho um eclipse solar
quase total observado em Roma no que hoje seria o dia 14 de março.
Quando o calendário atingiu esse ponto de "erro tão
catastrófico", nas palavras de Parish, o imperador e os sacerdotes romanos
recorreram à inserção pontual de um mês "intercalado" adicional,
chamado mercedônio, para tentar realinhar o calendário às estações.
Mas isso não funcionou muito bem. Havia, por exemplo, a tendência
de acrescentar o mercedônio quando autoridades públicas favorecidas estavam no
poder e não para alinhar rigorosamente o calendário às estações.
O historiador e escritor clássico Suetônio (69-c. 141)
queixava-se de que "muito tempo atrás, a negligência dos pontífices havia
desordenado muito [o calendário], com seu privilégio de acrescentar meses ou
dias segundo sua própria vontade, de forma que os festivais da colheita não
caíam no verão, nem o das uvas, no outono."
O que nos traz de volta a Júlio César.
No ano de 46 a.C., já estava programada a inclusão de um
mercedônio. Mas o astrônomo Sosígenes de Alexandria, consultor de César,
afirmou que o mês adicional não seria suficiente daquela vez.
Seguindo o conselho de Sosígenes, César acrescentou mais
dois meses nunca vistos antes ao ano de 46 a.C. – um com 33 e outro com 34 dias
– para alinhar o calendário ao Sol. Estas adições criaram o ano mais longo da
história, com 445 dias, ou 15 meses.
Após 46 a.C., o mercedônio, os dois meses novos e a prática
de meses intercalados como um todo foram abandonados. Se tudo corresse bem,
eles não seriam mais necessários.
"Então, voltamos a ter um calendário mais parecido com
o que reconhecemos", conta Parish. "Excelente! Isso parece familiar e
renovador!"
Legenda da foto,Os eventos agrícolas e as comemorações
religiosas eram intimamente relacionados na Roma Antiga. O difícil era
acompanhar essas datas com o instável sistema de calendário da época
Mas, infelizmente, alinhar o calendário ao Sol é uma coisa –
mantê-lo alinhado é outra, bem diferente. O inconveniente é que a quantidade de
dias (rotações da Terra) em um ano (órbitas da Terra em torno do Sol) não é um
número redondo.
"É onde todo o problema começa", explica o
astrônomo Daniel Brown, da Universidade Trent de Nottingham, no Reino Unido. O
número de rotações terrestres em uma volta do planeta em torno do Sol é de
cerca de 365,2421897... dias.
Em outras palavras, a Terra acrescenta quase um quarto de volta
a mais sempre que completa uma órbita em torno do Sol. Por isso, Sosígenes
calculou que acrescentar um dia a cada quatro anos – em fevereiro – ajudaria a
compensar o desalinhamento.
Este sistema teria funcionado muito bem, pelo menos por
algum tempo, não fosse a forma idiossincrática em que os romanos contavam os
anos.
"Eles olhavam para os anos e contavam: um, dois, três,
quatro", explica Parish. "Depois, eles recomeçavam a partir de quatro
– então, eles contavam: quatro, cinco, seis, sete. Depois, eles começavam em
sete – eram sete, oito, nove, 10."
"Eles contavam acidentalmente um desses anos duas
vezes. Não levou muito tempo para perceber o início do desalinhamento."
Isso foi corrigido no reinado de Augusto. Os anos bissextos
passaram a acontecer a cada quatro anos em vez de três e o calendário juliano
começou a funcionar bem.
"Júlio César está quase chegando aonde o calendário
precisa estar", afirma Parish.
Novas correções
O calendário juliano poderia ter sido o calendário
definitivo, se a rotação da Terra, de fato, completasse exatamente um quarto de
volta a mais todos os anos. Mas essa diferença é um pouco menor, em cerca de 11
minutos.
"Ou seja, lentamente ainda estamos ficando
dessincronizados", segundo Brown.
Legenda da foto,A menor diferença entre o calendário humano
e o movimento da Terra em torno do Sol gera uma discrepância que se acumula ao
longo do tempo
A solução surgiu apenas muito tempo depois, em 1582, quando
o papa Gregório 13 fez novos ajustes no calendário.
"Foi a correção feita pela reforma do calendário
gregoriano – observar esse ponto e adaptar um pouco mais o calendário, cuidando
para que [o ano bissexto] não seja apenas a cada quatro anos, mas para pular
essa regra a cada 100 anos", explica Brown.
"Mas, depois, eles observaram que isso não coincide
completamente – a compensação é excessiva. Por isso, a cada 400 anos, você não
pula a regra."
É por isso que o ano 2000, por exemplo, foi bissexto: porque
ele é divisível por 100 e por 400.
Para Parish, "tudo isso parece muito organizado",
mas é aqui que a política começa a influenciar o curso do tempo. "É um
calendário implementado por uma bula papal e, na verdade, não tem valor fora da
Igreja e da tutela do bispo de Roma."
Houve pessoas que se queixaram de que o papa, na verdade,
roubou 10 ou 11 dias do seu tempo ao ajustar o calendário, segundo Parish.
Ainda assim, ao longo dos séculos, cada vez mais países passaram a adotar o
calendário gregoriano.
"Mas, gloriosamente, eles não adotaram todos ao mesmo
tempo", afirma Parish. "Se arrumou o calendário, mas passou a haver
calendários em diferentes países seguindo modelos muito distintos."
Essas discrepâncias fazem com que "você possa ter a
situação mais bizarra, na qual uma resposta escrita na Inglaterra para uma carta
que chegou da Espanha pode parecer ter sido enviada antes da chegada da
primeira", explica Parish, "porque a Inglaterra está na frente da
Espanha no calendário."
Desde que foi amplamente adotado e sincronizado
internacionalmente, o calendário gregoriano passou a oferecer alguns milênios
de precisão. Mas ele ainda não é perfeito.
Na verdade, em meados do século 56, "alguém irá coçar a
cabeça e dizer, 'espere um minuto, hoje deveria ser segunda, mas na verdade
parece terça-feira'", segundo Parish. "Acho que provavelmente é uma
margem de erro que iremos acabar aceitando."
Pelo menos, o calendário gregoriano nos fez ganhar algum
tempo, até que chegue essa segunda-feira. Ou será que é terça?
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site
BBC Future.
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