A morte da família
Em
1971, o psicanalista britânico David Cooper publicou o livro The Death
of the Family [A morte da família]. Cooper foi um dos precursores e
árduo defensores do movimento antipsiquiátrico. O movimento considerava
que a teoria psicoanalítica dava atenção aos transtornos neuróticos mais
elementares e não dava conta de lidar com as enfermidades mais graves
como a psicose e a esquizofrenia, o que resultava na internação dos
“loucos” em manicômios para excluí-los da sociedade. Para o autor e o
seu movimento, a institucionalização desses indivíduos tinha em sua base
a classificação deles como ameaças à sociedade, que por sua vez, era
alimentada por uma sociedade construída a partir de uma estrutura
familiar capitalista burguesa de traços claramente patriarcais e
monogâmicos. O movimento sustentava que “na família, repressiva por
essência, se origina a loucura, pois sua finalidade consiste não somente
de reproduzir as formas de dominação ideológica como também da
internalização dessa ideologia na estrutura psíquica dos indivíduos”1.
O livro pretende ser um manifesto político deliberadamente contra a
estrutura familiar burguesa e quer propor que “uma vez abolida essa
falsa estrutura familiar, só resta assegurar que nunca mais se possa
restabelecê-la” (p. 78).
O desmantelamento da família
É
evidente que a intenção desse autor não era apenas tratar de uma nova
abordagem ao tratamento de casos graves de psicose e esquizofrenia os
quais a psiquiatria não dava conta. A intenção envolve uma revolução
política e social que interferisse diretamente na estrutura familiar.
Difícil
é mensurar o impacto das ideias de Cooper nas políticas e estratégicas
de estados que possuem uma visão materialista histórica e até que ponto
as pautas que atacam a estrutura familiar estão diretamente
influenciadas por essas ideias. Mas o que se pode notar com frequência
na vida pública é que, em nome dos direitos individuais, há uma
crescente e deliberada ação de diminuir a influência dos valores e moral
da família na sociedade e, principalmente, de redesenhar a estrutura
familiar de modo a servir os interesses de uma revolução social e
política.
Essa obra chama a atenção para alguns
fatores. Primeiro, Cooper está correto que uma sociedade se molda a
partir de suas estruturas nucleares. É a estrutura familiar e os valores
morais que impactam em grande parte como as relações humanas se
desenvolverão na sociedade. É verdade também que essa estrutura muitas
vezes perpetua relações não saudáveis na sociedade. Cooper, entretanto,
vê apenas elementos nocivos da influência da família no indivíduo e
atribui muitos males da sociedade a essa estrutura familiar.
Em
segundo lugar, é óbvio que ao atacar a estrutura familiar e vislumbrar
uma sociedade sem a família “burguesa capitalista”, Cooper defende
alguma forma de estrutura social e política. A realidade é que o
desmantelamento da influência da família no indivíduo tem a intenção de
tornar o estado a autoridade e controle absolutos sobre os indivíduos.
Naturalmente, isso é visto como o ideal dessa perspectiva, mas não há
como ignorar o objetivo de controle e dominação do estado sobre os
indivíduos, consequentemente, a perda não só de direitos básicos, mas,
sobretudo, da liberdade dos indivíduos de pensarem, se expressarem e se
constituírem como família.
Terceiro, é no mínimo
um idealismo, se não uma ilusão, achar que uma vez extinta a família as
relações de dominação se dissiparão. Cooper quer fazer crer que a
família reforça o poder da classe dominante e serve de paradigma de
controle para todas as instituições sociais, portanto, tem uma
capacidade destruidora. Assim, uma vez extinta, resolve-se o problema do
poder das classes dominantes. No entanto, isso não assegura em nada que
uma vez desfeita a estrutura familiar, alguma outra instituição social
ou ideologia não ocupe o lugar de dominação dos indivíduos.
Para famílias imperfeitas (inclusive cristãs), a graça de Cristo
Na
perspectiva cristã, a família é vista positivamente como uma estrutura
que proporciona vivência e experiências para o desenvolvimento dos
indivíduos e, consequentemente, da sociedade. É verdade que não é a
família em si que garante a saúde emocional, física e espiritual dos
indivíduos, da igreja e da sociedade. Somente a graça de Deus e a
conformidade com o caráter de Cristo que, em última instância, moldam a
maturidade do indivíduo. Infelizmente, há também no meio cristão muitas
vezes uma idealização da família que pode levar à estigmatização e
marginalização de famílias que não se enquadrem ao modelo “ideal”
cristão. Isso também é sinal de uma estrutura doentia. O fato de nossas
igrejas terem famílias predominantemente compostas pelo núcleo familiar
do pai, mãe e/ou filhos não diz que os cristãos são, em geral, formados
de famílias nucleares “equilibradas”; pelo contrário, pode dizer que
nossas comunidades não dão espaço para famílias de composição diversa ou
tidas como “disfuncionais” pelos padrões cristãos. Mas a resposta não
deve ser abolir a família ou abolir as igrejas que não acolhem famílias
destruídas, por qualquer motivo que seja. A resposta deve
necessariamente passar pela graça restauradora de Cristo dos indivíduos,
famílias e de uma sociedade disfuncional.
Mesmo a
família cristã pode perpetuar relações não saudáveis, pois ela é
formada de pessoas imperfeitas e afetadas pelo pecado humano. Não
aprendemos apenas o amor, a solidariedade, a fraternidade, a cooperação,
o perdão, as práticas espirituais e o serviço cristão na família.
Aprendemos também o egoísmo, o individualismo, a rivalidade, a
dominação, a manipulação, a espiritualização de nossas doenças, o
materialismo e tantos outros males. Por isso, carecemos continuamente do
amor, do perdão, da graça e da instrução de Cristo em nossas vidas.
Acima de tudo, precisamos continuar acreditando na família como dádiva
de Deus e como importante célula da sociedade, e não acreditar que seja
uma estrutura ultrapassada para um estado moderno que se institui como
defensor dos direitos individuais contra a influência da família.
Nota
1 Cooper, D. La muerte de la família. Cidade do México: Editorial Planeta, 1986.
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