A paz seja com vocês!
Por Ziel Machado
Vivemos
um período de muitas perdas. Algumas dessas perdas são mais fáceis de
identificar; outras, de tão profundas, nem sequer nos demos conta. Estas
ainda não se transformaram em lágrimas para que possam ser desaguadas.
Permanecem ocultas, mas ativas. Algo dentro de nós indica que as coisas
não estão como deveriam estar. A partir de conversas com várias pessoas,
vou descobrindo os diferentes nomes que têm sido dados a esse
sentimento de inadequação: medo, angústia, apreensão. Tenho ouvido
pessoas que se sentem ameaçadas, acuadas, abatidas, presas, trancadas
por fora e por dentro.
Em meio a essa situação
emocional, algumas pessoas vão retornando às suas atividades. Nas
igrejas, gradualmente, vemos um retorno cuidadoso aos cultos
presenciais, o que nos traz muita alegria pelas possibilidades dos
reencontros, e, ao mesmo tempo, vamos descobrindo o tamanho do desafio
que esse retorno significa para muitos. Tenho a impressão de que será
necessário elaborar uma “teologia pastoral para o retorno”, uma leitura
bíblica que seja de companhia, uma “liturgia do regresso”.
A
realidade pré-pandemia não exigia de nós muitas explicações para
justificar o nosso hábito de frequentarmos as atividades presenciais no
templo. Em termos comparativos, os evangélicos têm uma frequência
superior às atividades da igreja em relação a outras comunidades de fé.
Faz parte de nossa tradição a alegria de “irmos à casa do Senhor”. Hoje
se faz necessário explicar as razões que fundamentam nossa participação
nos encontros presenciais. Temos o desafio de diferenciar o que é
cuidado, precaução, e o que é ansiedade e temor.
Esse
retorno está levantando novas questões e apresentando novos desafios.
Será necessário um cuidado especial com todo esse processo, pois ele
está marcado por outras questões com potencial para desmobilizar a
comunidade, desafios situacionais que fazem com que as pessoas repensem
seus hábitos de frequência aos cultos e, até mesmo, de filiação
religiosa.
No Evangelho de João (20.19-23), vemos
uma situação muito semelhante à que estamos vivendo. Após a narrativa
dos importantes eventos daquela manhã de domingo, o apóstolo João
descreve o que se passou no entardecer daquele dia tão especial. Os
discípulos estavam trancados, escondidos, com medo dos líderes judeus.
Não sabemos quantos estavam na sala, mas o texto nos permite dizer que
Judas e Tomé não estavam presentes. Jesus surge no meio dos discípulos e
declara: “Paz seja com vocês!” (Jo 20.19).
É
possível imaginar que não somente as portas estavam fechadas; havia medo
alimentado por um combo de sentimentos que mantinham o coração dos
discípulos também fechados. Considerando o contexto, é possível
identificar outros sentimentos presentes naquela situação, tais como
frustração, abatimento, fragilidade, tristeza, apreensão. Os discípulos
estavam fora do alcance dos líderes judeus, mas não do Cristo
ressurreto. Ele entra nesse espaço com sua saudação de paz e muda a
realidade. Após o susto vem a surpresa e, em seguida, a alegria.
A
presença de Jesus altera o estado de humor dos discípulos: “Eles se
encheram de alegria quando viram o Senhor”. A realidade externa não
havia mudado, continuava hostil e ameaçadora, mas naquela sala e
naqueles corações a realidade era outra. Jesus lhes mostra suas feridas,
aquilo que a realidade externa havia produzido em seu corpo. Ali,
diante deles, estava o Cristo ressurreto, marcado pela realidade da dor,
mas não destruído por ela, e suas cicatrizes agora davam testemunho de
sua definitiva vitória. Por que continuar temendo o que os ameaçava do
lado de fora? Que poder as ameaças realmente têm de ter a palavra final?
Essa visita surpreendente de Jesus Cristo inverteu muito mais do que um
estado emocional. Sua presença alterou, de forma definitiva, uma
perspectiva da história, recolocou os “pingos nos is”.
A
experiência dos discípulos é análoga à nossa situação nestes tempos de
pandemia. Também nós nos trancamos como forma de nos proteger de uma
ameaça externa. A descoberta agora é que não apenas nos isolamos
fisicamente; nosso coração também foi afetado por esse isolamento,
nossas emoções foram alteradas e estamos lutando com vários sentimentos
sob a descrição geral de medo.
Assim como era para
os discípulos, o nosso entorno continua adverso, com o potencial de
ferir, com a possibilidade de matar. É necessário que o Espírito de
Cristo, o Espírito Santo, nos visite, para que a alegria e o poder da
ressurreição nos façam rever nossa condição e a situação de nosso
coração. Sua presença entre nós nos fará reconsiderar a realidade que se
encontra por trás das portas fechadas e as realidades trancadas de
nosso coração. O nosso entorno, que permanecerá hostil e ameaçador,
ainda que mudem a forma e a intensidade da ameaça, não mais será o “dono
da situação”. Não seremos mais pautados por ele, vivendo de forma a
fazer eco às suas ameaças, pois somos acolhidos e abrigados sob a mesma
paz com a qual Jesus saudou os discípulos.
Mas que
paz é essa? O mesmo evangelho faz declarações importantes que a
descrevem. Nos capítulos 14 e 16 temos algumas revelações: ela é um
presente de Deus, é plena e nos protege do medo (14.27); é uma paz que
só se encontra em Cristo (16.33); é capaz de produzir uma alegria que
nada nem ninguém podem retirar (16.22). Assim como aconteceu com os
discípulos, essa paz muda, por completo, nossa disposição emocional, do
medo à alegria. Como temos cantado muitas vezes, “não olho as
circunstâncias, olho o seu amor. Não me guio por vistas, alegre estou”.
E, ainda que levemos em conta as circunstâncias, elas não mais nos
pautam. A paz em nossa alma é fruto da presença do Senhor ressurreto.
O
texto de João 20.21 relata que o Senhor, uma vez mais, declara aos
discípulos: “A paz do Senhor seja com vocês”. Com essa segunda
declaração, o Senhor inaugura um outro movimento de mudança. Se na
primeira vez ele altera a realidade emocional do grupo de discípulos,
agora ele vai mudar a atitude diante do mundo hostil e o lugar de
permanência dos discípulos. Com base na mesma paz, ele diz: “Assim como o
Pai me enviou, eu os envio” (v. 21). A paz de Cristo não nos motiva a
uma fuga da história; ao contrário, ela nos lança no coração da
realidade hostil, ela muda nossa atitude na história e permite um
reencontro vocacional, com o chamado para fazer a vontade de Deus, seja
qual for a circunstância. Somos chamados a ser a presença do Cristo
ressurreto em um mundo hostil, não mais temendo essa realidade
ameaçadora, mas seguros do poder da ressurreição que encontramos nele.
Somos enviados para continuar a proclamar o evangelho do reino e fazer
as obras desse reino.
A paz seja com vocês! Foi
com essa declaração que Jesus lidou com o medo dos discípulos. Foi com
essa declaração que os enviou ao mundo. É com essa mesma paz que o
Senhor entra em nossos lugares trancados e nos assegura a sua paz. E com
essa mesma paz ele nos envia para seguir na proclamação de seu
evangelho e enfrentar a hostilidade do mundo no qual vivemos movidos,
inspirados e afiançados na paz do Senhor. Essa paz nos assegura uma nova
presença (o Cristo ressurreto), uma nova capacitação (o Espírito Santo)
e uma nova perspectiva para lidar com este mundo hostil (a vitória
sobre a morte).
A paz seja com vocês!
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