Festa Junina: a origem da celebração pagã que virou
religiosa e 'caipira' no Brasil
CRÉDITO,LUCIANO FERREIRA / PCR
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Para um brasileiro, pode ser difícil entender como as
estações do ano são capazes de influenciar o imaginário e a própria organização
da sociedade.
Mas em países de clima temperado ou frio, onde primavera,
verão, outono e inverno são mais demarcados, é contagiante a alegria com que o
verão é celebrado, depois de meses de dias curtos, temperaturas frequentemente
negativas e poucas possibilidades de interação social.
É por isso que desde os tempos mais antigos, as primeiras
civilizações europeias já tinham festas específicas para celebrar tanto a
chegada da primavera — a volta da vida desabrochando — quanto o solstício de
verão — o ápice do sol, o dia mais longo do ano.
E, segundo pesquisadores, são esses dois tipos de
celebração, depois abraçados pelo catolicismo, que explicam a origem das festas
juninas, que no Brasil acabariam sendo reinventadas com um sotaque próprio.
Quem foi São João, o profeta que teria batizado Jesus
Os cristãos escravizados que teriam ajudado a escrever a
Bíblia e espalhar o Evangelho
"As origens são mesmo as antigas festas pagãs das
antigas civilizações, ligadas aos ciclos da natureza, às estações do ano.
Sociedades antigas realizavam grandes festividades, com durações longas, até de
um mês, sobretudo nos períodos de plantio e de colheita", contextualiza o
pesquisador de culturas populares Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da
Universidade de São Paulo e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade
Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp).
"A primavera era bastante comemorada, como o reingresso
da vida mais dinâmica, o rebrotar da natureza e das atividades depois do
período do inverno, sempre de muita dificuldade, luta pela sobrevivência e
recolhimento", comenta ele.
Se nessa época do ano o que se via era a explosão da
natureza, a vida social espelhava isso. "Os grupos humanos realizavam
grandes festividades dedicadas à própria natureza, muitas vezes rendendo
homenagens aos antigos deuses relacionados à natureza, à vida animal, à vida
vegetal de um modo geral. Eram festas comunitárias com muita alegria, muita
alimentação e reunião de pessoas em grande número: foi o que deu origem às
festas juninas que a gente conhece no Brasil e em outras partes do mundo."
Autora do livro Festas Juninas: Origens, Tradições e
História, a socióloga Lucia Helena Vitalli Rangel, professora na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a origem das festas
juninas está nos "rituais de fertilidade agrícola" de diversos povos
— da Europa, do Oriente Médio e do norte da África.
"Os [mitológicos] casais férteis Afrodite e Adonis,
Tamuz e Izta, Isis e Osíris eram homenageados nesses rituais, pois
representavam a reprodução humana, numa época de evocação da colheita",
afirma.
"Eram rituais para que a colheita fosse farta e para
abençoar o próximo período agrícola. Era período de congraçamento, de partilha
e estabelecimento de alianças entre as comunidades. Eram rituais de fartura e
abundância em todos os sentidos, no âmbito alimentar e na relação entre as
famílias: casamentos, batizados e compadrio."
"No hemisfério norte o solstício de verão era o auge do
período ritual e do trabalho agrícola coroado pela colheita", acrescenta a
socióloga.
Vale ressaltar o óbvio, para que não fique um certo
estranhamento ao leitor menos atento: no hemisfério norte, origem de tais
celebrações, as estações do ano são invertidas em relação ao hemisfério sul,
onde está o Brasil.
Apropriação cristã
Mas onde então entram os santos nessa história? Na festa
junina contemporânea, estão presentes algumas das figuras mais populares do
catolicismo — e isso acabou impregnado de tal forma na celebração que a
religiosidade se misturou ao folclore e às tradições populares, transcendendo
os ritos normatizados pela Igreja Católica.
O primeiro dos santos juninos é Antônio (? - 1231), frade
franciscano de origem portuguesa que ficou conhecido pelo que fez na Itália no
início do século 13. Com fama de milagreiro, foi canonizado pela Igreja onze
meses depois de sua morte — trata-se de um recorde até hoje não superado na
história do catolicismo.
No imaginário popular, Antônio se tornou o bonachão santo
das coisas perdidas, sobretudo nos países europeus, e o casamenteiro,
principalmente em Portugal e no Brasil. Simpatias, promessas e orações
específicas marcam a devoção a ele. E sua presença nos festejos juninos
geralmente está ligada a essas tradições — a Igreja fixou o 13 de junho, data
da morte dele, como dia consagrado ao santo.
Em 24 de junho, o catolicismo celebra o nascimento de João
Batista (2 a.C - 28 d.C.). É o santo máximo das comemorações juninas — há
versões que apontam que originalmente eram "festas joaninas" e não
festas juninas; e, sobretudo no nordeste brasileiro, a Festa de São João é um
evento de dimensões impressionantes.
Bandeirinhas de festa junina
CRÉDITO,GETTY IMAGES
Legenda da foto,Festas juninas acabariam sendo reinventadas
no Brasil
Personagem de historicidade controversa, João Batista é
apontado como primo de Jesus Cristo e aquele que o batizou.
Em seu livro 'O Ramo de Ouro', o antropólogo escocês James
Frazer (1854-1941) diz que ocorreu um processo histórico "de
acomodação", deslocando para a figura de São João Batista a comemoração do
solstício de verão.
Por fim, o mês de junho ainda tem a data do martírio de São
Pedro (? - 67 d.C) e São Paulo (5 d.C. - 67 d.C.), dois dos pioneiros do
cristianismo. Pedro foi um dos 12 apóstolos de Jesus e acabou depois considerado
o primeiro papa do catolicismo.
Paulo de Tarso, por sua vez, é reputado como um dos mais
influentes teólogos da história. Parte significativa dos textos que compõem o
Novo Testamento da Bíblia é atribuída à sua pena. É dele, portanto, a autoria
de parcela considerável da ressignificação de Jesus Cristo após sua morte na
cruz — em outras palavras, é possível dizer que Paulo é responsável pela
transformação de Jesus em um mito.
Uma observação necessária: apesar de a Igreja celebrar em
conjunto a memória do martírio de Pedro e de Paulo, por tradição este último
nem sempre é associado aos festejos juninos.
À medida que o catolicismo foi se transformando em religião
do status quo, sobretudo a partir da cristianização do Império Romano, no ano
de 380 d.C., diversos rituais tratados como pagãos acabaram sendo abraçados e
apropriados pela Igreja. "A Igreja Católica não pôde desmanchar essas
práticas", reconhece Rangel.
Com os rituais de primavera e verão, não foi diferente.
"Várias dessas festividades foram adaptadas", conclui Ikeda.
"Aos poucos passaram a ser tratadas como festas em honra aos santos
juninos."
"Mas é importante notar que mesmo dentro do ciclo
cristão, esses santos estão ligados tematicamente com aquelas mesmas ideias, os
mesmos princípios das festividades [dessa época do ano] das antigas
civilizações", pontua o pesquisador.
Santo Antônio, por exemplo, é o casamenteiro — em uma
leitura lato sensu, poderia ser encarado como o santo da família, da unidade
familiar, da reprodução humana. "São João também está ligado, sobretudo
nos interiores do Brasil, a essa questão dos relacionamentos afetivos.
Tradicionalmente, faz-se muito casamento no Dia de São João", diz Ikeda.
"Ele também traz a característica da fartura [que
remete aos períodos de plantio e de colheita, em oposição aos rigorosos
invernos], dos alimentos, das bebidas, aquilo que chamamos na antropologia de
repasto ritual ou repasto cerimonial", afirma o pesquisador.
De modo geral, na leitura proposta por ele, todos os santos
juninos estão ligados aos ciclos da natureza — fogo, água, fertilidade,
abundância. Está aí São Pedro e a ideia de que ele é quem controla o tempo.
"Vejo uma relação entre eles e os antigos rituais, uma relação ainda
presente. Embora a gente não perceba mais, eles têm essa ligação com os
elementos fundamentais da existência humana", comenta.
Nas festas populares essas forças da natureza se fazem
representadas, muito além da mesa farta. Os mastros juninos que são erguidos
representam a potência dos troncos, das árvores que resistem ao inverno. A
fogueira é a luz: ilumina, aquece, afugenta animais ferozes, assa os alimentos.
Na releitura contemporânea, portanto, as festas juninas
"guardam as reminiscências das ancestrais aglomerações festivas",
conforme frisa Ikeda.
Paçoca, pamonha, pipoca, bolo de fubá, canjica, curau, pé de
moleque, maçã do amor. Vinho quente e quentão. Brincadeiras de pular fogueira e
dançar a quadrilha. Chapéu de palha, camisa xadrez, calça com remendos.
Bombinhas e rojões, fogos de artifício. Bandeirinhas coloridas penduradas em
varais de barbante.
No Brasil, as festas juninas foram reinventadas e se
tornaram uma exaltação das raízes caipiras. E muito além da religiosidade,
tornou-se tradição, folclore. Como se o ciclo se fechasse: o que nasceu como
ritual gregário, de celebração social, e depois foi apropriado por uma religião
dominante, acabou na cultura popular sendo devolvido ao sentido original — ou
seja, a festa pela alegria de festejar.
Não à toa, a folclorista Laura Della Mônica registrou em seu
livro Os Três Santos do Mês de Junho que "respeitar as festas e orações
dedicadas a cada um dos três santos do mês de junho, segundo a tradição, é
obrigação e dever de todos nós, pelo menos culturalmente". O "todos
nós" é o brasileiro. Porque mesmo nascida no Velho Mundo, as festas
juninas assumiram uma identidade própria em território nacional.
"A colonização da América colocou novamente a questão
[da apropriação cultural] para os jesuítas e todos os religiosos que se
instalaram no continente sul-americano", pontua a socióloga Rangel.
"No caso do Brasil, houve uma coincidência do
calendário. No inverno seco, o solstício de inverno marca o período dos
trabalhos agrícolas mais importantes. Do mesmo modo que, para os povos do
hemisfério norte é o período de rituais de fertilidade, [a festa por aqui
também vem] com as mesmas características, congrega as famílias na evocação da
abundância."
As tradições regionais guardam suas especificidades, como
era de se esperar em um país de dimensões continentais. "Sempre foram
festas e rituais populares", salienta Rangel.
"No Brasil temos expressões regionais muito fortes: o
São João nordestino, o Boi Bumbá da região norte, o Boi de Mamão no sul,
Cavalhadas no centro-oeste e as festas do Divino Espírito Santo e muitas
regiões, particularmente no estado de São Paulo."
A pesquisadora comenta que "conforme os padres vão
chegando nas paróquias, começam a interferir nas comemorações". É quando
vem o sincretismo: a festa popular também é festa católica, a quermesse
organizada pela igreja também tem os rituais populares.
"Até hoje as paróquias, as igrejas, realizam festas
juninas. Só não estão realizando neste período em função da pandemia de covid.
Mesmo que as maiores festas estejam predominantemente tendo somente o caráter
festivo, mais comercial, de exploração pelo ganho financeiro, as igrejas
continuam fazendo comemorações aos santos juninos", pontua Ikeda.
"Embora muitas pessoas não católicas também participem
das festas, embora predomine uma visão genérica que as festas juninas não
guardam mais relação com a religiosidade, há ainda um relacionamento das
igrejas com esses santos juninos."
Para ele, a evolução da festividade consiste no fato de que
"toda aglomeração possibilita o incentivo ao comércio". "E a
alimentação está neste centro, na busca mesmo do repasto cerimonial e
festividades, danças e músicas que sempre estiveram ligados aos antigos
rituais."
Ikeda lembra que a as festas populares têm uma importância
antropológica por serem "práticas gregárias que ciclicamente comemoram a
própria constituição, a própria existência das comunidades enquanto
coletividade, a reunião de grupos humanos que preservam uma história
comum".
"No caso da feste junina, esse vestir-se de caipira,
simbolicamente, é um instrumento de importância até emocional e psicológico
para as pessoas se sentirem com a identidade ligada ao passado, aos pais e avós
que praticavam aquilo, comemorando de forma parecida", analisa o
pesquisador.
Então, 2021 será o segundo ano consecutivo em que o Brasil
não terá, ao menos de modo ostensivo, a tradição das festividades com
bandeirinhas coloridas. Doutora em História das Ciências da Saúde e autora do
livro A Gripe Espanhola na Bahia, a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza
afirma que esse cancelamento não ocorreu nem na epidemia de 100 anos atrás.
Isto porque a gripe chegou ao Brasil bem depois dos festejos
de 1918. E, no ano seguinte, a epidemia estava controlada. "A gripe
espanhola não teve nenhuma interferência no São João. Os primeiros registros da
doença apareceram em setembro de 1918 e a doença foi se extinguindo aos poucos.
Em Salvador, ele não avançou para o ano de 1919. Houve alguns surtos, em
lugares mais remotos, até 1920, mas sem caráter epidêmico."
É de se supor, inclusive, que as festividades de 1919 tenham
sido ainda mais animadas. "Passada a epidemia de gripe espanhola, tudo o
que as pessoas queriam eram esquecê-la", afirma Souza.
Em 20 de junho de 1919, entretanto, surgiram os primeiros
registros indicando uma epidemia de varíola na capital da Bahia.
"Começaram a aparecer um caso aqui, outro ali, mas
ainda sem a força suficiente para poucos dias depois interditar os festejos de
São João", nota a pesquisadora.
"As autoridades sanitárias demoraram muito para
reconhecer que ocorria uma epidemia terrível de varíola. Autoridades públicas
só costumam reconhecer a existência de uma epidemia quando se torna inevitável
devido ao acúmulo de adoecimentos e mortes, quando o número de doentes e mortos
ultrapassa a normalidade esperada para os casos da doença. Isso demora um
tempo."
Rangel ressalta, inclusive, que até a primeira metade do
século 20, as festas juninas eram muito menores, restritas a familiares e
pequenos grupos comunitários. Muito menos do que os eventos de hoje em dia.
"Eram festas de arraial, de quintais, de quermesses", diz.
"Elas só se transformaram em grandes espetáculos na
segunda metade do século 20, na esteira da espetacularização do carnaval.