Chico Bento e a goiabeira maraviósa: a antiga luta do
progresso contra a natureza
A força do filme está na sua simplicidade - romântica,
idealizada e ingênua. O seu encanto vem exatamente de ser simples.
Por Carlos Caldas
Há mais de dez anos tenho o privilégio de escrever sobre
filmes e séries para o portal Ultimato Online, mas pela primeira vez o faço a
respeito de um filme para crianças. Para crianças? Não. Chico Bento e a
goiabeira maraviósa não é para crianças – é para todas as idades.
Quem não gosta do Chico Bento? Talvez seja a única criação
do Maurício de Sousa que rivaliza em popularidade com a Mônica. Há motivos para
tal: o Brasil durante séculos foi um país predominantemente rural. A
urbanização é um fenômeno relativamente recente na nossa história, de modo que
mesmo brasileiros “de apartamento” ouviram seus avós contando histórias “da
roça”. No (in)consciente coletivo brasileiro há o imaginário de um ambiente
rural idílico, bucólico, uma espécie de paraíso no mundo, uma terra sem males
para a qual todos desejam voltar. Não é mera coincidência que novelas
televisivas ambientadas em zonas rurais e músicas que tratem dos temas ligados
à vida no campo façam tanto sucesso.
Maurício de Sousa conseguiu captar muito bem este “espírito”
nas aventuras do Chico Bento, um menino ingênuo que fala com um típico sotaque
caipira paulista, mineiro ou goiano (o “l” vira “r”, então ele não diz “calça”,
mas “carça”), desrespeita a norma culta da língua portuguesa, é obediente e
respeitoso para com os mais velhos, leal em suas amizades... Como não gostar de
histórias assim?
Tendo este pano de fundo, foi com entusiasmo que soube do
lançamento do filme live action do Chico Bento, que aproveitando as férias de
janeiro, assisti com a minha filha caçula. Que grata surpresa! A turma está
toda lá: os pais do Chico, a Vó Dita, seus amigos Zé Lelé, Zé da Roça e o Hiro,
a professora da escolinha rural, o Nhô Lau, que ao mesmo tempo é amigo e uma
espécie de adversário do Chico e, claro, a Rosinha, seu interesse romântico
platônico. A caracterização está simplesmente perfeita: o elenco está idêntico
aos quadrinhos, como se tivessem mesmo pulado das páginas das revistas para a
vida real.
E por falar em elenco, há que se destacar o carismático ator
mirim Isaac Amendoim, de apenas 11 anos, que deu vida ao Chico Bento na tela.
Os produtores fizeram um anúncio no Instagram à procura de meninos que pudessem
interpretar o personagem. Isaac foi o escolhido entre 3 mil crianças1 Mineiro
de Cana Verde, o menino Isaac Duarte Freire (Amendoim é seu vulgo), já tinha
experiência nas redes sociais, pois já há alguns anos tem atuado como
“influencer”. Mas não apenas ele – todas as crianças do elenco mirim estão
muito bem em seus papeis, interagindo com os adultos com muita naturalidade.
O roteiro do filme é simples, como simples são os roteiros
das HQs do Chico Bento, e é nesta simplicidade, romântica, idealizada e ingênua,
é que está a sua força. O encanto do filme vem exatamente de ser simples. A
produção acertou em cheio ao roteirizar o filme seguindo roteiros de tantas e
tantas histórias do Chico nas HQs.
Mas com esta leveza o filme apresenta um dilema, uma questão
muito séria: o antigo conflito entre a natureza e o progresso. Em nome do
progresso é lícito devastar e destruir a natureza? Quem conhece as HQs do Chico
sabe que ele é louco por goiabas, e sempre ataca as goiabeiras do vizinho Nhô
Lau (vivido por Luis Lobianco, do Porta dos Fundos). No filme, o Dotô Agripino
(interpretado por Augusto Madeira), fazendeiro ricaço, pai do Genesinho (Enzo
Henrique), um menino tão arrogante como seu pai, quer construir uma rodovia
para “trazer o progresso” para a Vila Abobrinha, a cidadezinha rural onde vivem
nossos personagens, uma vila que está em um tempo e um espaço não
identificados, mas com a qual todos os leitores das histórias e espectadores do
filme se identificam imediatamente. Só que o projeto da rodovia passa pelas
terras do Nhô Lau, e a goiabeira teria que ser derrubada. Este é o conflito ao
redor do qual a narrativa fílmica do diretor Fernando Fraiha se desenvolve.
Chico ama a goiabeira, e por amá-la, convoca seus amigos para ajudá-lo em um
plano mirabolante para impedir que a árvore seja derrubada. As crianças terão
que enfrentar a oposição de seus pais, encantados com o discurso do Dotô
Agripino que a rodovia trará progresso para a região. Alerta de spoiler: no
fim, tudo dará certo, e a “goiabeira maraviósa” será preservada.
Mas todos nós sabemos que na vida real nem sempre é assim.
Na vida real no mundo inteiro o “progresso”, atrelado ao dinheiro, destrói,
desmata, devasta a natureza. Em nome do suposto progresso permite-se que a
Amazônia e o Pantanal sofram uma destruição ambiental sem precedentes. Afinal,
é preciso gerar espaço para pastagens e plantar soja, pois isso gera dinheiro,
rios de dinheiro. Mas para quem? Apenas para os já ricos latifundiários. Em
nome do progresso terras de povos indígenas são invadidas, águas são
contaminadas com metais pesados, como o mercúrio, biomas terrestres e marítimos
são destruídos. Diante de tais cenários dantescos fica fácil entender o dito
paulino que afirma ser o amor ao dinheiro a raiz de todos os males (1Tm 6.10).
Chico Bento e a goiabeira maraviósa não é apenas distração e
diversão. É mais que isso. O filme faz bem a quem o assiste, assim como as HQs
do Chico. Mas também provoca uma reflexão muito necessária e atual: na
sociedade capitalista é ilógico dar à natureza prioridade em relação ao lucro
financeiro. Mas quem crê que a primeira obrigação que o Criador deu ao ser
humano foi cuidar do jardim (cf. Gn 2.15), e que este mundo deve ser um jardim,
não irá pautar sua conduta pelo padrão ímpio que afirma ser o lucro mais
importante que a natureza. Neste sentido, o filme de Fernando Fraiha, a
despeito de toda a sua singeleza, nos faz um alerta seríssimo que não pode ser
ignorado.
Nota
1. Quem é Isaac Amendoim? O influenciador mirim que encantou
Maurício de Souza e virou Chico Bento nos cinemas. O Globo. Acesso: 11/02/2025.
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