O dia em que fui mais feliz – Uma abordagem literária do
Salmo 84
De todas as alegrias que alguém experimenta num certo
período de tempo, há sempre uma que supera as demais
Por Délio Porto
De todas as alegrias que alguém experimenta num certo período
de tempo, há sempre uma que supera as demais. Trata-se de um dia especial,
marcado por algo raro e encantador, do qual se diz: “Foi o mais feliz”. O
personagem do Salmo 84 passou por esse tipo de experiência quando visitou o
templo. Essa poesia narra tal acontecimento e nos surpreende ao mostrar como
coisas ordinárias tangenciam o extraordinário. O leitor do salmo é conduzido à
seguinte pergunta: o que foi feito do dia em que fui mais feliz?
Na abordagem literária de um salmo deve-se imbuir, principalmente,
de um desejo de apreciação da poesia utilizada na transmissão da mensagem. A
riqueza dos textos poéticos passará despercebida se a leitura se ater apenas à
busca de conselhos de natureza devocional e emocional; ou se apoiar numa
perspectiva estritamente gramatical ou lexical; ou ainda, se orientar sob a
imposição de conceitos doutrinários. Tais abordagens não estão atentas à beleza
nem à criatividade poética.
A relevância de uma abordagem literária não significa ter de
necessariamente recorrer a conceitos da teoria literária e da hermenêutica. Um
leigo nesses assuntos pode fazer uma leitura proveitosa de um poema apenas
lembrando que a linguagem poética usa uma forma diferente de comunicação.
Dentre os vários aspectos a considerar na busca do significado
de uma poesia, dois se destacam na aplicação da leitura de um salmo. O primeiro
é a apreciação das imagens, ou ideias visuais sugeridas. O segundo é a
consideração da estrutura do texto poético, isto é, o modo como as ideias foram
tecidas e dispostas. É preciso ler várias vezes o salmo, anotar as impressões
que as figuras de linguagem sugerem e perceber o encadeamento, o ritmo e a
repetição das ideias.
O uso de paralelismos é comum nos salmos. Esse recurso
literário, presente no Salmo 84, emprega ecos de imagens. Para melhor
percebê-los, o salmo foi dividido em três trechos que funcionam como estrofes.
Observe as ideias repetidas no início e no final de cada trecho.
Salmo 84 (versão NAA)
Ao mestre de canto, segundo a melodia “Os lagares”. Salmo
dos filhos de Corá
1 Quão amáveis são os teus tabernáculos, Senhor dos
Exércitos!
2 A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o
meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo!
3 O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si,
onde acolha os seus filhotes, perto dos teus altares, Senhor dos Exércitos, Rei
meu e Deus meu!
4 Bem-aventurados os que habitam em tua casa; louvam-te
perpetuamente.
5 Bem-aventurado é aquele cuja força está em ti, em cujo
coração se encontram os caminhos aplanados!
6 Quando passa pelo vale árido, faz dele um manancial; de
bênçãos o cobre a primeira chuva.
7 Vão indo de força em força; cada um deles aparece diante
de Deus em Sião.
8- 9 Senhor, Deus dos Exércitos, escuta a minha oração;
ouve-me, ó Deus de Jacó! Olha, ó Deus, escudo nosso, e contempla o rosto do teu
ungido.
10 Pois um dia nos teus átrios vale mais que mil; prefiro
estar à porta da casa do meu Deus a permanecer nas tendas da perversidade.
11- 12 Porque o Senhor Deus é sol e escudo; o Senhor dá
graça e glória; não recusa nenhum bem aos que andam retamente.
Ó Senhor dos Exércitos, feliz é aquele que em ti confia.
No primeiro trecho (v. 1-4), o paralelismo aparece nas
palavras “teus tabernáculos” e “tua casa”, que são ideias equivalentes. O
segundo trecho (v. 5-7), “aquele cuja força” faz eco com “indo de força em
força”. No terceiro trecho (v. 8-12), a expressão “o Senhor Deus, escudo nosso”
ecoa “o Senhor Deus é sol e escudo”.
As imagens poéticas do primeiro trecho apresentam o
tabernáculo, local da habitação de Deus, como um lugar amável e feliz. No
centro do trecho está a exultação daquele que frequenta os pátios dessa casa. O
personagem foi tomado pela percepção de acolhimento tal como a dos passarinhos,
livres para instalarem ali os seus ninhos. Ao fazer essas alusões, o poeta
transmite ao leitor a alegria da pessoa que se percebe bem recebida na casa de
Deus, à semelhança do acolhimento em um lar.
No segundo trecho surge a ideia da força como uma potência
do coração, representada pela disposição fácil e segura para seguir o caminho
que conduz ao comparecimento diante de Deus. Para um coração animado, como o
deste personagem, essa rota é uma estrada aplainada. No centro desse trecho
está a satisfação da sede do peregrino por tal encontro, quando uma fonte de
água substitui a sequidão.
O terceiro trecho utiliza a imagem do escudo para simbolizar
a proteção de Deus, cuja face se ilumina como a luz e como o calor do sol sobre
os que nele confiam. No centro do trecho aparece novamente a ideia de habitar o
pátio da casa de Deus. Ao ponderar outras possibilidades de acolhimento, de
outros lares e seus moradores, o salmista as rejeita por estarem comprometidas
com valores que não agradam a Deus. O dia mais feliz em mil dias é este vivido
no interior dos átrios do tabernáculo. Essa é uma imagem que transmite um
sentimento muito especial de segurança, fruto de uma experiência incomparável a
qualquer outra vivida pelo personagem nos últimos três anos.
Sem comentários:
Enviar um comentário