Condenação
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*Uma casta acima da lei*
A condenação de uma jornalista por divulgar dados públicos
mostra que a toga virou escudo. E o Judiciário, uma corporação que intimida
críticos e se protege sob o manto da honra ofendida
A condenação da jornalista Rosane Oliveira e do jornal Zero
Hora pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) a pagar R$ 600 mil
por divulgar a remuneração de uma desembargadora é mais do que um erro
judicial: *é uma violência contra a democracia liberal*. A sentença não só
ignora o direito fundamental de acesso à informação, como representa um ataque
frontal à liberdade de imprensa – um dos pilares de qualquer sociedade aberta.
A desembargadora Iris Medeiros Nogueira, quando presidente
do TJ-RS, teve vencimentos de R$ 662 mil em um único mês – quase 15 vezes o teto
constitucional – reportados com base em dados do Portal da Transparência. *A
própria sentença reconhece que os dados publicados eram “públicos e verídicos”,
mas condena a jornalista por uma suposta “linguagem sarcástica” e “abalo à
imagem” da magistrada. Trata-se de uma decisão que pune não o erro, mas a
irreverência; não a calúnia, mas o incômodo causado a uma casta acostumada a
não ser contrariada. É autoritarismo em sua forma mais pérfida, sob o disfarce
de tutela da honra.*
O episódio é só um sintoma da arbitrariedade crescente de um
Judiciário que se comporta como casta extrativista: *uma elite blindada por
prerrogativas autoatribuídas que subverte instrumentos do Estado para preservar
seus privilégios e amordaçar seus críticos*.
Os juízes brasileiros institucionalizaram a violação ao teto
salarial constitucional. Subterfúgios como a “venda” de férias (de 60 dias),
auxílios não remuneratórios e licenças especiais são empregados para fabricar,
manter e ampliar privilégios. Segundo levantamento da Transparência Brasil
feito com 18 dos 27 tribunais do País, *todos receberam em 2023 salários médios
brutos acima do teto constitucional: 69% ultrapassaram entre R$ 100 mil e R$
499 mil, e 15% em mais de R$ 500 mil.*
A lógica corporativista é reforçada por mecanismos de
autoproteção. *Juízes delinquentes frequentemente recebem como “punição” a
aposentadoria com vencimentos integrais*. O assédio judicial à imprensa também
se tornou rotineiro: jornalistas vêm sendo alvos de processos milionários por
expor abusos de poder, numa manobra que visa a silenciar o jornalismo
investigativo por intimidação financeira. Editoras, colunistas e até humoristas
são arrastados aos tribunais por criticarem decisões judiciais ou reportarem
fatos incômodos a membros da magistratura.
A metástase chega até a cabeça. O Supremo Tribunal Federal
(STF) também tem dado mostras de intolerância à crítica pública. Desde 2019, o
STF ordenou buscas e apreensões contra jornalistas e influenciadores sem
participação formal do Ministério Público, no âmbito do chamado “inquérito das
fake news”, conduzido de ofício pela Corte, numa perversão processual inédita.
Em 2021, o Tribunal confirmou uma indenização imposta ao jornalista Rubens
Valente por publicar um livro-reportagem sobre Gilmar Mendes – apesar de o
conteúdo ser factual, sem ataques pessoais e baseado em dados públicos. Também
foi o STF que, em 2019, determinou a retirada do ar de uma reportagem da
revista Crusoé sobre o ministro Dias Toffoli, num dos episódios mais
vergonhosos de censura judicial da Nova República. É esse o Poder que quer
regular as redes sociais?
Essa simbiose entre privilégio e autoritarismo corrói o
Estado Democrático de Direito. Quando a magistratura abandona sua função
contramajoritária equilibrada e se converte em corporação blindada, não há mais
freios nem contrapesos reais. A corrupção discutida aqui não é a do dinheiro em
envelopes – é a corrupção institucional, a desfiguração das funções
constitucionais do Judiciário, tornando-o instrumento de acúmulo patrimonial,
interferência política e repressão contra quem ousa revelar seus erros à
sociedade.
É constrangedor para este jornal repetir o óbvio: não há
democracia sem imprensa livre. E não há imprensa livre onde jornalistas são
condenados por dizer a verdade. *O Judiciário brasileiro, ao agir como senhor
feudal da informação e inimigo da crítica, trai seu papel constitucional e
ameaça a própria República que deveria proteger. Um poder sem limites, mesmo
vestido da mais fina toga, se torna tirania*.
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